“As ciências também foram implantadas entre os gregos, tanto as contemplativas como todas aquelas que dependem do conhecimento, que originam realmente a visão da alma e purificam a mente da cegueira que motivam outras ocupações, com a finalidade de poder ver os princípios autênticas e causas de tudo, em geral”.
Jâmblico
O Sistema Pitagórico do Conhecimento (μάθημα) consistia em quatro ramos: aritmética (o estudo dos números), geometria (o estudo das figuras e suas medidas), música (a doutrina da harmonia ou teoria musical) e astronomia (o estudo da estrutura do universo). Todos os quatro ramos da doutrina Pitagórica foram fundidos numa palavra – μάθημα (ensino ou conhecimento) ou μαθηματικά.
Para Pitágoras, a matemática era mais do que uma ciência: Deus manifesta-se nas leis matemáticas que tudo governam, a compreensão dessas leis, e até mesmo simplesmente o exercício da matemática, poderia levar-nos mais próximo de Deus. Ao criar o mundo, Deus usou a aritmética, a geometria, a música e a astronomia. A aritmética era necessária para tornar o mundo integral, a geometria proporcionou às coisas as suas formas. Graças à música cósmica, os elementos permanecem e mantêm a sua correlação uns com os outros e cada um com o todo. Ao nível da astronomia, Deus criou o mundo na forma de um sistema inabalável do movimento dos corpos celestes e obrigou a alma humana a olhar para cima e para dentro.
A Aritmética seria então o estudo do número em si mesmo, das leis eternas da natureza. A Geometria expressa as formas que surgem do número e cumpriria a função de dirigir a alma para a compreensão do que sempre é, através de símbolos e formas. A Música ou movimento harmónico, é o estudo de proporções e medidas nas artes, para que o ser humano aprenda a harmonia do Universo. A Astronomia permite ao homem a contemplação e o conhecimento dos seres perfeitos.
O ensino de Pitágoras baseava-se fundamentalmente nos números, a magia e a psicologia profunda, não de um ponto de vista exclusivamente intelectual, mas sim através de uma profunda vivência dos conhecimentos e tomando como base a mais completa das disciplinas.
Proclo afirma que, as disciplinas matemáticas foram inventadas pelos Pitagóricos, “para criar uma reminiscência das preocupações divinas, as que, através destas imagens, se esforçam para alcançar”. A filosofia pitagórica reveste os ensinamentos teológicos com símbolos matemáticos e transmite-os usando uma linguagem científica e abstrata (Os Seis Livros de Proclo, Sobre a Teologia de Platão, p.12).
No mundo ocidental, as ciências matemáticas são inevitavelmente associadas com o nome Pitágoras e seus seguidores. Não devemos esquecer que muito tempo depois do desaparecimento das escolas pitagórico-platónicas (incluindo o hermetismo e gnosticismo), o aspeto sagrado do número ainda florescia entre filósofos e místicos, como Pacioli, Paracelso, Cusano, Bruno, Ficino, Da Vinci, Kepler, Newton, etc.
Os pitagóricos consideravam as relações numéricas reveladas por eles como símbolos da realidade divina. De acordo com Proclo (no seu Comentário sobre o Primeiro Livro dos Elementos de Euclides), “entre os pitagóricos encontramos alguns ângulos dedicados a certos deuses, outros a outros. Assim, Filolau concebe o ângulo de um triângulo sagrado para alguns, e o ângulo de um quadrado, para outros, atribuindo diferentes ângulos a diferentes deuses, ou o mesmo ângulo a mais do que um deus e vários ângulos para o mesmo deus, de acordo com várias energias contidas nele”.
Proclo escreve: “Certamente, então Filolau dedica o ângulo do triângulo aos quatro deuses: Cronos, Hades, Ares e Dionísio… Cronos dá o ser a todas as essências húmidas e frias, Ares engendra toda a natureza abrasadora, Hades tem controle de toda a vida terrestre e Dionísio supervisiona a geração húmida e cálida, o seu símbolo – o vinho é húmido e cálido. Todos estes são diferentes quando se refere à sua ação sobre as coisas secundárias, mas eles estão unidos uns com os outros, e é por isso que Filolau os agrupa numa unidade sob um ângulo”. (Proclo, Comentário sobre o Primeiro Livro dos Elementos de Euclides, p.167).
Aqui é fácil ver a união e a simpatia que os Pitagóricos observaram entre as relações numéricas, as forças divinas e os elementos da natureza. Porque o Número é a base da criação e a natureza fundamental da lei da correspondência.
Assim, a década contém todos os tipos de relações numéricas, e estas relações são a base tanto dos processos naturais, como da vida da alma humana. As relações numéricas constituem a essência da natureza, e nesse sentido os Pitagóricos dizem que “tudo é número”. Portanto, o conhecimento da natureza só é possível através do conhecimento dos números e das relações numéricas.
As matemáticas são a linguagem mais abstrata que a humanidade conhece. Os números são símbolos eficazes e paradigmas dos princípios divinos.
A própria análise da doutrina Pitagórica sobre a essência da década mostra que os Pitagóricos se concentraram no problema das relações ou proporções numéricas, que também foram chamadas de harmonias (αρμονία – comunicação, acordo, harmonia) – pelos Pitagóricos.
É o conceito de harmonia, extraído das pesquisas matemático-musicais, que será o fundamento da doutrina pitagórica. Para o Pitagorismo, a harmonia foi uma ideia universal que se estendeu a todas as áreas da natureza e da vida humana. Foi entendida como o princípio ordenador do cosmos, uma vez que através da harmonia se ordenam os diversos elementos que constituem o mundo. Também, foi reconhecida como uma virtude, como um bem universal, como o pilar da amizade e como a base da beleza.
A ordem, a proporção e a medida, são as partes fundamentais que compõem a harmonia. Não é por acaso que Aristóteles, falando dos Pitagóricos, não separa a sua doutrina da harmonia da doutrina do número… “Uma vez que, eles viram que as modificações e as relações da escala musical se poderiam expressar em números; visto que todas as outras coisas na sua natureza total pareciam ser modeladas em números e os números pareciam ser as primeiras coisas em toda a natureza, eles assumiram que os elementos dos números eram os elementos de todas as coisas e o céu inteiro era uma escala musical e um número”.
De acordo com muitos testemunhos, Pitágoras descobriu a ligação das relações numéricas e da harmonia musical. Ele descobriu que em certas relações de comprimentos de cordas, estas produzem um som agradável (harmónico), enquanto noutras – um desagradável (dissonante).
Xenócrates testemunha sobre o ensino de Pitágoras acerca das expressões numéricas dos intervalos harmónicos. Ele é citado por Porfírio: “Pitágoras, como disse Xenócrates, descobriu que os intervalos na música, também, não têm a sua génese sem número, pois são uma comparação de quantidade a quantidade. Assim, ele considerava quando aparecem intervalos concordantes e discordantes e todo o harmónico e desarmónico em geral”.
A descoberta atribuída a Pitágoras traz-nos de novo à década e ao sagrado quaternário. “Pitágoras descobriu que se fazemos consistentemente o som de uma corda completa, a metade, os dois terços e os três quartos, então conseguimos obter a nota principal, a sua oitava, a sua quinta e finalmente a sua quarta. Assim, a relação dada pelo comprimento da corda será de 1:2 para a oitava, 2:3 para a quinta e 3:4 para a quarta. Estes números representam uma progressão na qual há quatro termos e três intervalos”. (A.O. Makovelsky, Pré-socráticos).
Os quatro números (1, 2, 3 e 4) dos quais surgem estas proporções, adquirem uma componente metafísica: são os números com os quais estão construídas as consonâncias e, portanto, são os números com os quais está construído o Universo.
Os Pitagóricos não só encontraram métodos estritamente matemáticos para construir harmonias musicais, mas criaram os fundamentos para a doutrina do ethos (ήθος – costume, hábito, natureza) de cada modalidade.
“E não é apenas em questões relacionadas com os dæmons ou deuses que se pode ver a força manifestada pela natureza e pelo poder do Número, mas também está presente em todos os trabalhos e todos os pensamentos humanos, em todos os lugares, certamente, e ainda nas obras de arte e de música,” escreveu Filolau.
Os Pitagóricos atribuíram uma capacidade mágica e de cura à música; mas deram uma ênfase especial à música como um importante meio de educação ética. Segundo Aristóxeno, “os pitagóricos praticavam a purificação (κάθαρσις) do corpo através da medicina e a purificação da alma através da música”.
Jâmblico escreve: “… Prescreveu e estabeleceu para os seus discípulos as chamadas adaptações e terapias, concebendo de maneira divina combinações de certos sons diatónicos, cromáticos e harmónicos, através dos quais facilmente orientava e reconduzia a uma situação contra as paixões da alma, que recentemente tinham aparecido e se desenvolvido entre eles inconscientemente, ou seja, aflições, explosões de raiva, paixões, invejas estranhas, medos, desejos de todos os tipos, ambições, apetites, orgulhos, fraquezas e violência. Através de melodias apropriadas, direcionava a virtude para cada uma dessas condições, como se fosse uma combinação de remédios salvadores.”
A ideia dos Pitagóricos de que a estrutura do universo está baseada em relações matemáticas fá-los assegurar que as coisas “imitam números”, que a ordem das coisas é semelhante à ordem dos números. Os números e as proporções matemáticas manifestam-se na estrutura das coisas. Toda a natureza é inerente à harmonia una, estável, eterna (divina) e autorregeneradora. A harmonia redime a imperfeição e a discórdia, levando à estabilidade e ao equilíbrio.
Fragmentos do trabalho “Sobre a Natureza” de Filolau dá-nos mais informações acerca de como os conceitos de “número” e “harmonia” se encontram relacionados para os Pitagóricos. Todo o universo, para Filolau, foi formado a partir de dois princípios opostos: o Limitado e o Ilimitado. Como se podem ligar um ao outro? Com a ajuda da harmonia.
Nos fragmentos de Filolau define-se a harmonia como “o resultado dos contrários, a unicidade da multiplicidade e o acordo entre os discordantes”. Esta é a definição de harmonia na música e também serve como princípio básico da organização do mundo na qual os opostos se unem na base da harmonia musical, a consonância.
Se a harmonia é uma combinação do limitado e do ilimitado, a união desses dois opostos, então a harmonia é um número, porque o número também surge do limitado e do ilimitado.
Se tudo é número, tudo é “ordem” e o mundo inteiro aparece como um cosmos (κόσμος, termo que significa exatamente “ordem”, “a medida adequada”), que procede dos números. Pitágoras foi o primeiro que denominou Kosmos ao conjunto de todas as coisas, pela ordem que há nelas.
“Dizem os sábios, Cálicles, que ao céu, à terra, aos deuses e aos homens os governam a convivência, a amizade, a boa ordem, a moderação e a justiça, e por essa razão, amigo, chamam a este conjunto “cosmos” (ordem) e não desordem e selvajaria” (Platão, “Górgias”, 507e).
Segundo Aristóteles, os Pitagóricos basearam o seu conceito de posição dos corpos celestes em números; no movimento dos corpos celestes eles viram outra confirmação da tese de que tudo no mundo é organizado “de acordo com o número”. A analogia entre as relações numéricas na música e a astronomia criaram o característico conceito Pitagórico de “harmonia das esferas“. Os céus movem-se sob a harmonia numérica, e produzem “música divina das esferas, harmonias maravilhosas, não percebidas pelos nossos ouvidos, acostumados a elas como algo habitual”. O movimento dos corpos celestes é como uma dança ao redor do fogo do mundo, acompanhada pela música, a qual pela sua beleza e harmonia é tão superior à música da terra, já que os corpos celestiais são mais perfeitos do que os da terra e mais poderosos, – e assim como excedem com a sua massa e velocidade, a massa e a velocidade dos corpos terrestres.
“Deste modo, Pitágoras… tendo realizado um estudo aprofundado da natureza do número, afirmou que o cosmos canta e é construído de forma harmoniosa, e foi o primeiro a reduzir o movimento dos sete planetas ao ritmo e melodia.” (Hipólito, Ref. I, 2, 2, Dox. p. 555).
Assim, na astronomia, na música, na geometria e na aritmética, os Pitagóricos viram proporções numéricas e relações harmónicas, cujo conhecimento é o conhecimento da natureza e estrutura do universo, mas não se deve esquecer que a sua ciência perseguia uma finalidade filosófica e mística, descobrir o perfeito kosmos do mundo, a fim de reproduzi-lo na sua própria alma.
Jâmblico disse-nos que os números que governam a natureza são as energias que fluem dos deuses, e se queremos assimilar-nos a elas, devemos usar a sua linguagem, ou seja, alinhar-nos com as harmonias que sustentam o cosmos.
“Para os Pitagóricos, a cosmologia, considerada como o estudo do que era para eles um kosmos, no pleno sentido grego, abrange e engloba a teologia, a antropologia, a ética, as matemáticas e qualquer outro ramo da sua filosofia. … A filosofia cósmica, que abrange tudo, fornece boas razões para assumir que os fundamentos do sistema — a explicação numérica da realidade, bem como a transmigração, o parentesco universal e a assimilação do homem à divindade – pertencem todos à cosmologia, tal como foi ensinado pelo próprio Mestre na sua forma original. Sabemos que o motivo para estudar o kosmos é colocarmo-nos em estreita harmonia com as suas leis.” (Guthrie-W.K.C., História da filosofia grega).
Porfírio, na sua biografia de Pitágoras (Vita Pyth. 19) transmite um testemunho de Dicaiarcos um aluno de Aristóteles, que resume os ensinamentos de Pitágoras as estes quatro pontos: que a alma é imortal; que as almas mudam de lugar, passando de uma forma de vida a outra; que tudo o que aconteceu retorna em certos ciclos e que nada acontece realmente de novo; e que todos os seres animados devem ser considerados como relacionados entre si.
As ideias da imortalidade da alma e a metempsicose estão evidenciadas por fontes bastante primitivas (Xenófanes, Heródoto e Empédocles) e são o fundamento dos ensinamentos religiosos e éticos dos Pitagóricos.
A mais antiga evidência – os versos de Xenófanes – relaciona a doutrina da metempsicose com Pitágoras, mas isto, no entanto, não implica que ele foi o seu ancestral. De acordo com a tradição, Pitágoras adotou a doutrina da metempsicose do Orfismo, o primitivo movimento religioso. De acordo com Íon de Quios, Pitágoras atribuiu alguns de seus escritos e poemas a Orfeu.
Heródoto indicou a origem egípcia da doutrina da metempsicose, observando que “os Egípcios também são, além disso, os primeiros que sustentaram a doutrina de que a alma do homem é imortal e de que, quando o corpo perece, esta se introduz noutro corpo”, de um animal e ao completar o ciclo de todos os animais num período de 3 000 anos reintroduz-se no corpo de um homem. Disse que os gregos adotaram esta doutrina, uns antes e outros depois, como se fosse de sua própria invenção. Os órficos e os pitagóricos também adaptaram o costume egípcio de não usar roupas de lã, que consideravam “impuras”. A proibição da lã e o vegetarianismo têm as suas raízes na doutrina da metempsicose.
Tanto fontes anteriores como posteriores, notam a naturalidade da ideia do movimento circular da alma. Diógenes Laércio disse que Pitágoras foi o primeiro a ensinar que a alma descreve um círculo de necessidade/inevitabilidade (kuklos anankes), vestindo-se com um e depois com outro corpo em cada volta. Numa passagem de “A Teologia da Aritmética” lê-se que a alma de Pitágoras encarna periodicamente cada 216 anos. Podemos mencionar que este número, além de ser o cubo de seis, o número perfeito, multiplicado por outro número perfeito, o dez, nos dá a duração de um mês do ano platónico (2 160 anos), o período que marca um passo evolutivo no plano individual e coletivo.
“… Ele conhecia a sua própria alma, quem era, onde tinha acedido ao seu corpo, as suas vidas anteriores, e ele oferecia provas evidentes.“
A muitos dos seus associados recordou-lhes as vidas vividas pelas suas almas antes de serem vinculadas ao seu corpo atual e por argumentos irrefutáveis declarava-se a reencarnação de Euforbo, o filho de Pantos. Ele remontou a sua origem a essas épocas passadas, afirmando que tinha sido primeiro Euforbo, depois Atalides, depois Hermótimo, depois Pirro e finalmente Pitágoras. Através dele próprio demostrava aos seus discípulos que a alma é imortal e, entre aqueles que foram purificados, acede à memória da sua vida anterior. Não é difícil entender que essas cinco reencarnações têm um significado simbólico e matemático, como muitas outras coisas que pertencem ao ensino esotérico.
Aristóteles estava familiarizado com os “Mitos Pitagóricos”, segundo os quais “qualquer alma pode entrar em qualquer corpo” (Sobre a Alma, 410b 29). Numa elegia, Xenófanes tenta ridicularizar Pitágoras atribuindo-lhe uma crença de que a alma de um homem podia-se esconder num cão espancado” (Xenófanes fr. 7, Diógenes Laércio VIII, 36).
A imortalidade da alma está justificada pela ideia de que, como todos os seres divinos, está em constante movimento circular. Alcmeão, o Pitagórico (c. 500 a.C.), disse que a alma é imortal “porque é semelhante às coisas imortais”, move-se sempre porque é movida por si mesma. Se a alma está sempre em movimento, isso significa então que não morre. Platão reproduz esta prova no Fedro.
“Alcmeão assume que a alma é uma substância auto movida, em eterno movimento e por essa razão, imortal e semelhante ao divino.” (Aécio, IV 2, 2)
“Provavelmente não precisamos de mais provas para acreditar que em nós não há nada mais semelhante à divindade do que a alma. Isso é evidente não só pelo movimento contínuo e incessante que desperta em nós, mas também pela inteligência inerente à alma. Neste sentido, o Físico de Crotona disse que a alma é imortal e pela sua natureza, como os corpos divinos, evita qualquer descanso” (Porfírio, Em a Alma contra Boethos, XI, 28, 8-9).
A alma do homem divide-se em três partes: sensualidade, intelecto animal e razão; as duas primeiras também são características dos animais, e a última é imortal e reencarna apenas nos seres humanos (Alcmeão). A alma é uma espécie de harmonia, uma combinação dos contrários, e o homem é uma parte da harmonia universal (Filolau, Aristóxeno).
Alcmeão de Crotona disse, tal como foi preservado por Teofrasto, que “o homem difere de outros animais porque tem inteligência, enquanto os outros têm sentidos, mas não inteligência”. (Teofrasto, Em a sensação, 25).
“Pitágoras e Filolau chamaram à alma uma harmonia.” (Macrobio, Commentarii in Somnium Scipionis, I, 14, 19).
“Parece que existe em nós uma espécie de afinidade com os modos e ritmos musicais, a qual faz com que muitos filósofos digam que a alma é uma ‘harmonia’ e outros que possui ‘harmonia’” (Aristóteles, Política 1340 b 18-21).
A tradição menciona Hades, o sol e a lua, até mesmo a via láctea, como um assento da alma após a morte. O sol e a lua são as ilhas dos abençoados, diz um, o outro fala do julgamento sobre a alma, e o terceiro afirma que os sismos são uma participação dos mortos.
A alma é imortal, visto que é imortal aquilo de que ela foi formada ou separada. “A alma lançada à terra vai divagando no ar, semelhante ao corpo. Hermes é o administrador das almas, e por isso se chama de Condutor, Porteiro e Terrestre, a causa de que tira as almas dos corpos, da terra e do mar; as puras condu-las para o alto; mas as impuras a nenhuma se aproxima ele, nem elas entre si, são antes amarrados pelas Fúrias com laços muito fortes e indissolúveis.”
Filolau acreditava que a alma entra no corpo através de um número e através da harmonia incorpórea e imortal, e que a alma está enterrada no corpo como numa tumba, o qual também é indicado por Platão.
Também é digno de menção a observação de Filolau, dada em Stromata: “Os antigos teólogos e adivinhos também atestam que a alma, por causa de alguma punição, é unida ao corpo (swma) e enterrada nele como numa tumba (shma)“. Clemente de Alexandria. Stromata, III, 17).
Os órficos e os pitagóricos consideraram que a alma está sofrendo a punição do pecado, e que o corpo é um estojo em que a alma está encarcerada, até que se pague a pena. (Platão, Crátilo).
De acordo com E. Rohde, a doutrina Pitagórica condiciona as próximas encarnações com assuntos da vida passada. (4) A origem divina da alma e a sua imortalidade implicam a exigência de guardar a pureza da alma no seu estado terrestre atual associado ao corpo.
O propósito da vida é libertar a alma do ciclo de renascimentos através da purificação e do seu retorno à vida entre os Deuses. Por exemplo, os Pitagóricos consideravam o homem como um discípulo e seguidor de Deus e preparavam-no para a sua união com o divino. A libertação e a salvação da alma são possíveis seguindo os princípios básicos da moral Pitagórica. “Os Pitagóricos ensinavam como atuar e como não atuar com vista à união com o divino: este é o princípio primordial das suas vidas – ser guiado pelo divino”. (7)
O fim da vida é o de libertar a alma do ciclo das reencarnações, e para conseguir tal fim, é necessário purificar-se. E como o objetivo final era o de voltar a viver com os deuses, os Pitagóricos introduziram o conceito de reto atuar humano como um fazer-se “seguidor de Deus”, como um viver em comunhão com a divindade. (7)
“Tudo o que os Pitagóricos definem sobre o fazer ou não fazer tem como objetivo a comunhão com a divindade: este é princípio e toda a sua vida se ajusta a este fim de deixar-se guiar pela divindade”.
“A Verdade é uma perfeição tão grande que se Deus se tornasse visível ao homem, ele escolheria a luz para o seu corpo e a verdade para a sua alma” (Pitágoras).
A ciência e a filosofia pitagóricas foram cultivadas como um meio para conseguir uma meta final. Esta meta era praticar um tipo de vida, purificar-se e libertar a alma do corpo.
Platão disse que Pitágoras transmitiu aos seus discípulos um “modo de vida” especial, que os destacava de entre os outros, posteriormente chamado “o modo de vida pitagórico” (A República, 600 A-B).
O fim da filosofia para eles era, pois, harmonizar de tal forma corpo e espírito que o corpo não fosse um bloqueio para captar as mensagens do Eu Superior humano. A melhor honra que um pitagórico poderia fazer a Deus era tornar-se espiritualmente cada vez mais semelhante a ele, utilizando inteligentemente o conhecimento. (7)
Assim, os pitagóricos foram os iniciadores do tipo de vida que eles próprios chamavam de “bios teoretikos”, ou “vida contemplativa”, ou seja, a vida em busca da Verdade e do Bem através do conhecimento que purifica e eleva o homem, e o leva à contemplação da verdade e união com o divino.
“No entanto, tudo o que estas frases definem sobre o fazer ou não fazer, busca o propósito do divino; e este é o seu princípio, e toda a sua vida está estruturada para acompanhar a divindade, e esta é a justificação desta filosofia”. (1)
A Filosofia de Pitágoras centra-se na limpeza moral e purificação da mente.
A PURIFICAÇÃO DA MENTE: A beleza e harmonia do mundo, uma coisa tão evidente, é acessível apenas para a mente preparada matematicamente. Através da contemplação dos números e da relação entre eles, os Pitagóricos subiram ao mundo puro, imaterial e real.
O caminho da ascensão a Deus, de conhecer o mundo e a si mesmo, abrange ciências matemáticas. “Aqueles que sabem calcular naturalmente e sem dificuldades, estão dotados de uma inteligência capaz de fazer progressos rápidos em todas as artes“, também na arte de viver uma vida sábia e feliz, porque “a harmonia inteligível é aquela que se baseia nos números”. Por isso, disse Pitágoras, e depois Platão, e Jâmblico, que o dever mais importante do filósofo/legislador é estudar as ciências matemáticas até que as conheça profundamente. A aritmética fornece coordenação, a geometria ritmo, a astronomia previsão e a harmonia musical disposição e distribuição. Estudar estas ciências é estudar o Ser e o movimento do Ser no universo, a sinfonia universal nascida do número, da simpatia e correlação do tudo com tudo.
De facto, a geometria é conhecimento do que sempre existe. Então… atrairá a alma até à verdade e formará mentes filosóficas que dirijam para cima aquilo que agora dirigimos indevidamente para abaixo” (Platão, “A República”, 527c). O processo da cognição é o processo de enriquecimento da consciência; o processo de reconhecimento do esquecido.
Pitágoras “praticava uma filosofia cujo objetivo era proteger e libertar de determinados bloqueios e ataduras a mente que nos foi atribuída, sem a qual, de forma alguma, nada sensato ou genuíno se pode conhecer nem perceber, seja qual o sentido que utilizemos. Porque a mente por si mesma “vê tudo e ouve tudo; o resto é surdo e cego”. (Porfírio, Vit. Pit., 46)
“E uma vez que se encontra purificada, há que proporcionar-lhe algo que lhe seja útil. E isto é o que ele procurava na seu execução de meios: em primeiro lugar, conduzia-a à contemplação dos seres incorpóreos, eternos e da sua mesma raça, que permanecem idênticos e sem alteração, seguindo depois, pouco a pouco, por medo de que, perturbada por uma mudança repentina e imprevista, se desanimara e se cansara, em virtude da alimentação tão nociva e duradoura que havia recebido. Portanto, por causa das ciências e especulações que ocorrem na fronteira dos corpos e dos incorpóreos [numa dimensão tripla enquanto corpos, mas sem resistência enquanto incorpóreas], exercitou-se pouco a pouco nos seres reais, conduzindo com habilidade técnica os olhos da alma, desde os seres corpóreos que nunca se mantêm idênticos, nem sequer numa quantidade mínima, até à aquisição do seu alimento. Portanto, introduzindo-os na contemplação das autênticas realidades, fazia ditosos os homens. Assim, pois, o exercício das matemáticas tinha sido aceite no seu sistema” (Porfírio, Vit. Pit., 46-47).
Jâmblico refere-se a esta atividade dos Pitagóricos como “ritos matemáticos”. Mas para os efetuar corretamente, primeiro tinha que libertar a alma das suas paixões.
A PURIFICAÇÃO MORAL: A purificação moral levava-se a cabo pela prática das virtudes. Os desejos sensuais não são destruídos, mas “limpos”, “harmonizados”.
Nos seus comentários sobre os Versos dourados de Pitágoras, Hiérocles escreveu: “A filosofia prática torna bom o homem, permitindo-lhe adquirir a virtude, enquanto que a contemplativa o leva, através da iluminação da inteligência e da verdade, à semelhança com Deus. Também dissemos que era absolutamente necessário, pelo menos no que nos diz respeito, que as coisas pequenas devem preceder as grandes. É sem dúvida mais fácil acostumar a vida humana ao uso adequado da reta razão, do que modificar totalmente a sua natureza… Por outro lado, não será possível chegar a possuir a verdade, se antes não temos ordenado de acordo com a inteligência e por mediação das virtudes morais as nossas faculdades instintivas“. (ХХ, 45-48)
“… Virtude é harmonia, o é a saúde, o é toda a coisa boa, o é também Deus, e até mesmo todas as coisas existem pela harmonia“. (2)
Os Pitagóricos muitas vezes interpretam a justiça como a realização do princípio cósmico da subordinação do ilimitado ao limitado, do mal ao bem, ou seja, do inferior ao superior, o que implica que todos devem cumprir o seu dever, para manter a harmonia do mundo.
“Portanto, a virtude (άρετή), é uma espécie de meio, pois, como vimos, o seu objetivo é o que é intermediário… O mal pertence à classe do ilimitado, como os pitagóricos conjeturavam e o bom ao limitado… Por estas razões também, então, excesso e defeito são característicos do vício e o justo meio da virtude” (Aristóteles, Ética a Nicómaco, livro 2, 1106b, 27-34).
A temperança “parece-se mais do que tudo anteriormente analisado com uma espécie de modo musical ou harmonia… é que na alma do mesmo homem há algo que é melhor e algo que é pior; e quando o que por natureza é melhor domina o pior, diz-se que “ele é dono de si mesmo”… Temperança é esta concórdia, esta harmonia entre o que é inferior e o que é superior por natureza sobre o qual destes dois elementos deve governar já na cidade, já em cada indivíduo” (Platão “A República”, 430e-432a).
Nos seus pensamentos, sentimentos e ações, o homem deve encontrar uma medida adequada e a justa proporção. Isto permite-lhe viver de acordo com a justiça cósmica. A harmonia deve ser uma medida da alma, a sua lei interior, a justiça e a ordem manifestadas nela. O homem que segue a justiça cósmica é a imagem do cosmos, é um microcosmo, um todo, no qual todas as partes estão ligadas por um único sentido e propósito da existência.
Publicado em Boletim Pitágoras Nº 5, ano 2016
Bibliografia:
(Драч Г.В. «Рождение античной философии и начало антропологической проблематики»).