Quer o poeta significar que Vénus era realmente estrela de aIva na :sexta~feira. 18 de Maio de 1498. em que
Enxergaram terra alta pela proa?
Sendo assim qual a fonte onde colheu esta informarão astronómica? No Roteiro1. revisto por Herculano, marca-se a partida de Melinde para Calicute na terça-feira, 24 de Abril de 1498, e o primeiro acontecimento registado na travessia do Oceano Indico é o aparecimento, no domingo 29. da estrela do Norte, que havia muito tinham deixado de ver na sua derrota pelo hemisfério austral, de onde agora saíam, atravessando de novo o equador: «e ao domingo seguinte ouvemos vista do norte, o qual avia muito que deixáramos de ver». É bem natural este registo do reaparecimento de uma estrela tão importante para a navegação, mas não seria também para admirar que Camões encontrasse referencia à estrela da manhã em algum outro Roteiro da viagem, hoje desconhecido. Não teria ele, porém, ao seu alcance processo de que soubesse usar para verificar a posição de Vénus a respeito do Sol naquele dia?
Como estrela da tarde aparece Vénus no final da batalha do Salado, em III, 115:
Já se ia o Sol ardente recolhendo
Pera a casa Tetis, o inclinado
Pera o Ponente, o Véspero trazendo,
Estava claro dia memorado,
Quando o' poder do Mouro grande e horrendo
Foi pelos fortes Reis desbaratado
Com tanta mortindade, que a memória
Nunca no mundo viu tão grão vitória.
O Véspero vem aqui simplesmente como símbolo da tarde, sob influência da Crónica de D. Afonso IV, de Rui de Pina2, em que se diz que a batalha durou «da óra da terça em que começaram a pellejar atee vespera que durou a batalha»? Ou o poeta introduziu o Véspero, sabendo bem que, na tarde de 30 de Outubro de 1340. ele brilhava acima do horizonte?
Camões tinha processo fácil de saber as longitudes do Sol e de Vénus ern qualquer época, como vamos expor, e podia portanto verifIcar se o planeta estava a oriente do Sol, sendo então estrela da tarde (Véspero), ou se estava a ocidente do Sol, sendo então estrela da manhã (Lúcifer).
O ilustre Sub-Director do Observatório da Tapada da Ajuda, Sr. Frederico Oom, na sua crítica extremamente benévola do nosso livro A astronomia dos Lusíadas, faz esta importante comunicação a respeito daquelas duas estâncias:
«Ou o soubesse por velha tradição, hoje perdida, ou por laborioso cálculo, o certo é que em 30 de Outubro de 1340 Vénus fulgia (com intenso brilho à tarde. ao terminar
… o claro dia memorado.»
«Ainda menos, portanto, nos admirou verificarmos do mesmo modo que na travessia de Melinde à índia,
a amorosa estréia scintilava
Diante do Sol claro, no horizonte
Mensageira do dia…
e que é um facto astronómico incontestável ter sido Vénus estrela da manhã durante toda a viagem do Gama pelo Oceano Índico» !3
O Sr. Frederico Oom, que à sua reconhecida autoridade científica alia uma vasta cultura literária, encontrou assim em plena verdade o seu admirado poeta, tendo aplicado as fórmulas que a moderna astronomia fornece para o cálculo das posições de Vénus. Este resultado constitui já uma forte presunção de serem do conhecimento de Camões os dois factos astronómicos: Lúcifer brilhando na alvorada dos dias da travessia do Oceano Índico, e o Véspero na tarde da batalha do Salado. Essa presunção transforma-se, porém, em certeza conhecendo-se o cânon, o processo simples de cálculo com que ele podia verificar os lugares de Vénus no zodíaco em qualquer época, cânon que há bastante tempo procuramos, e que acabámos por encontrar.
Os astrónomos modernos tem maior facilidade no estudo dos movimentos dos planetas inferiores, Mercúrio e Vénus desde que a concepção copernicana pôs nas mãos de Hélios, o governo dos planetas. Sendo as órbitas de Vênus e da Terra percorridas em torno do Sol, sabemos que quando Vénus, estrela da tarde nos parece aproximar-se do Sol retrogradando ela vai para a sua conjunção inferior que tem lugar entre o Sol e a Terra; mas quando, sendo estrela da manhã, se aproxima outra vez do astro do dia, com movimento directo. ela vai passar na sua conjunção superior para lá do Sol, sendo então a sua distância à Terra a soma da sua distância ao Sol com a deste astro à Terra. Mas no sistema geocêntrico de Ptolomeu o céu de Vénus. que era o terceiro, estava todo contido dentro, do quarto céu, que era o do Sol. Vénus executava a revolução no seu epiciclo em 584 dias, e o centro deste epiciclo era levado sobre o respectivo diferente, sempre no raio dirigido da Terra para o Sol, dando sua volta num ano. Quando Vénus passava no auge do epiciclo ia na sua conjunção superior, mas estava entre o Sol e a Terra, como quando, no ponto oposto do epiciclo ia na conjunção inferior. Este erro do sistema ptolomaico, de se suporem os planetas inferiores sempre a distancias da Terra menores que as do Sol bem como o de para a Terra se dirigirem às linhas dos nodos das órbitas planetárias, complicava muito as teorias de Mercúrio e Vénus sobretudo na determinação das suas latitudes. O problema das latitudes planetárias foi a grande dificuldade dos astrónomos até ao tempo de Kepler. Para o assunto que nos ocupa podemos, porém, prescindir das latitudes de Vénus, isto é, das suas distâncias à eclíptica. Importa-nos apenas a sua longitude, isto é, a distância, em signos e graus, da sua projecção sobre a eclíptica ao ponto de Aries. Basta-nos saber o modo de determinar o chamado lugar verdadeiro do planeta, problema que nos livros de astronomia do século XVIi se enunciava: – De Vero Loco Veneris Habendo -. A sua solução encontra-se nas duas primeiras edições da famosa obra de Abraham Zacuto, intitulada Almanach perpetuum celestium motuum. A edição de Leiria 1496, tradução para latim do original hebraico por Mestre José Vizinho, pode hoje facilmente estudar-se na reprodução fac simile feita em Munique pelos cuidados do Sr. Joaquim Bensaúde. Como esta reprodução é paginada, a ela referiremos as indicações das tabelas que usarmos. Da 2ª edição, feita em Veneza em 1502 sob a direcção de João Lucílio Germano, existe um belo exemplar na Biblioteca da Universidade de Coimbra. Esta edição apresenta como novidade uma regra mais fácil para se achar o lugar de Vénus na eclíptica, regra denominada Cânon Alfonsi, por ser seu autor o astrónomo Afonso de Córdova.
Vamos primeiro ver como se sabia da posição do sol em qualquer época, o que era extremamente simples. O Almanach perputuum traz quatro tábuas, correspondentes ao período de 4 anos do ano bissexto, que na. edição fac simile4 ocupam as páginas 33 a 40. As tábuas correspondem aos anos de 1473, 1474, 1475 e 1476 (bissexto), e são seguidas de uma pequena Tabula equationis solis (pág. 41) que dá a correcção relativa à precessão dos equinócios para um número qualquer de revoluções de 4 anos, decorridas depois daquelas datas. O uso das tábuas é indicado no «Cânon secundus de vero loco sotis habendo» (pág. 4). É muito fácil: subtrai-se 1472 do ano dado e divide-se a diferença por 4; o resto indica: o número da tábua a usar (1ª, 2ª, 3ª ou 4ª), correspondendo a 4ª ao resto zero, que é o caso do ano bissexto; o quociente serve para procurar a correcção da precessão. Assim, querendo saber o lugar verdadeiro do Sol em 24 de Abril de 1498, dia em que a armada do Gama largou de Melinde subtraímos 1472 de 1498 e dividimos a diferença 26 por 4 (26 = 4 X 6 + 2). O resto 2 indica que temos de servir-nos da tabula segunda solis que, para o dia 24 de Abril (pág. 35), dá o lugar do Sol em 12º 53′ 53″ do signo do Touro. Com o quociente 6, que indica o número de revoluções completas de 4 anos decorridas, entra-se na Tabula equationis solis (pág. 41) encontrando~se a correcção 10′ 36″, a qual somada com 12º 53′ 53”. dá para lugar para o Sol na eclíptica em 24 de Abril de 1498: 13º 4’ 29’’ do signo do Touro.
A correcção de 1’ 46″ por cada quadriénio era devida ao movimento que hoje chamamos de precessão dos equinócios, que se atribuía ao céu cristalino, ou nona esfera, a qual girando de ocidente para oriente em torno da linha dos poIos da eclíptica, arrastava consigo todas as oito esferas interiores, das estrelas fixas e errantes aumentando lentamente as longitudes dos astros sem lhes alterar, as latitudes. A rotação do cristalino levava 49.000 anos a completar-se, o que correspondia a um avanço de 1º 28′ em 200 anos. Isto sabia perfeitamente Camões que tão bem descreve o movimento da nona esfera nos Lusíadas, em X, 86:
Debaixo deste leve anda outro lento,
Tão lento e sojugado a duro freio
Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,
Duzentos cursos faz dá êle um passo.
Como 28’ é menos que melo grau, o poeta arredonda, como deve ser, 1º 28′ em um grau, chama-lhe um em um grau, e chama-lhe um passo. É o andamento do cristalino enquanto o Sol percorre 200 vezes o zodíaco.
O cálculo do lugar de Vénus em qualquer época fazia-se de um modo semelhante. O Almanach perpetuum traz para isso oito tábuas (págs. 216 a 223) com as posições de Vénus na eclíptica em cada dia dos 8 anos que vão desde o de 1473 até o de 1480. seguidas de uma pequena tabela intitulada Equatio Veneris (pág. 224). Para se saber qual a tábua a empregar procede-se como para o Sol, mas agora o divisor é 8. Assim, para um dia do ano 1498. subtrai-se 1472 de 1498 e divide-se a diferença 26 por 8, o que dá o resto 2 e o quociente 3. 26 = 3 X 8 + 2. O resto indica que tem de usar-se a Tabula Veneris 2. Com o quociente 3, que indica o número de revoluções completas decorridas, entre-se na coluna revoluciones da tabela «equiatio Veneris» e acha-se o número que serve para se fazer a correcção necessária para se obter o lugar verdadeiro de Vénus no dia desejado. Vamos saber como essa correcção se calculava com bastante facilidade e a razão da respectiva regra.
Segundo a concepção matemática de Ptolomeu, Vénus movia-se no seu epiciclo enquanto o centro deste círculo corria sobre o deferente C1, C2 e C3. O deferente era um círculo excêntrico, mas, para simplicidade de exposição e porque isso é indiferente para o nosso caso, suporemos o seu centro no centro da Terra, em T. O círculo exterior da figura representa a eclíptica, que o Sol percorre em seu curso anual de ocidente para oriente, ocupando as posições sucessivas S1, S2, S3… como indicam as setas. O centro do epiciclo move-se, conservando-se sempre na recta tirada da Terra para o Sol: C1 em TS1, C2 em TS2, C3, em TS3… , e assim percorre o deferente no tempo de um ano. Comecemos por considerar Vénus em V1, no auge do epiciclo, quando o raio C2.V1, dirigido para o planeta, está sobre a linha Terra-Sol. TS1. Então Vénus está na conjunçãosuperior; os dois astros têm a mesma longitude. Em V2 já o raio do epiciclo C2V2 avançou sobre C2S2 o planeta projecta-se na eclíptica em V2, a oriente do Sol, S2, e é portanto estrela da tarde, Véspero. Chegará um momento em que Vénus virá passar no ponto oposto ao auge do epiciclo, em V2; estará então na conjunção inferior com o Sol, e os dois astros
projectavam-se no mesmo ponto S3. Depois, em V4 , tendo o raio C4V4, avançado sobre C4T, o planeta projecta-se em V4 a ocidente do Sol, e é então estrela da manhã, Lúcifer. Enfim, voltando o raio C5V5 a 3 tomar a direcção Terra-Sol, TS5, o planeta volta a estar no auge, em conjunção superior, como estava em V1. O tempo que separa duas conjunções superiores consecutivas é o período sinódico; abrange 584 dias.
O movimento do planeta em torno do centro do epiciclo é mais lento do que o movimento deste centro sobre o deferente em volta da Terra, gastando cinco revoluções no epiciclo o tempo de oito revoluções no deferente, isto é, oito anos. Se isto assim fosse rigorosamente, ao fim de 8 anos o centro do epiciclo estaria em C1 e ao mesmo tempo o planeta voltaria a V1, tendo lugar a 5ª conjunção superior no mesmo ponto da eclíptica. Então dali por diante voltariam a repetir-se, durante os 8 anos seguintes, as mesmas posições relativas do Sol, Vénus e Terra em cada dia. Calculadas tábuas de Vénus para um período de 8 anos, essas tábuas davam perpetuamente as posições do planeta, tendo apenas de saber-se qual a tábua a usar no ano proposto.
Continua…
Publicado na Revista “A Águia” , vol. XV (1919)
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Autoria MpF gerada por IA
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