A Estrela Vénus nos “Lusíadas” – 2ª parte

A fonte em que o poeta colheu as informações astronómicas de que usou tão escrupulosamente foi o Almanach perpetuum de Abraham Zacuto, onde podia ver os tempos de entrada do Sol nos signos, as conjunções e oposições do Sol e da Lua, e onde, por um cá!culo elementar, podia saber, em qualquer época, a posição relativa dos dois astros companheiros
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Leia a 1º parte deste artigo aqui

O período sinódico de Vénus não é de 584 dias exactos; mais precisamente, era considerado de 583 dias e 56 minutos (I) do dia, o que significa 583d 22h 24m. cinco revoluções sinódicas gastam, pois, 2919 dias e 40 minutos do dia ou 2919 dias e 16 horas’, o que não perfaz rigorosamente oito anos, faltando para isso 2 dias e 8 horas. Assim quando o centro do epiciclo volta a C1 o planeta não está já em V1, mas sim adiante do auge cerca de 1º, 5, que é o movimento do epiciclo correspondente a 2d 8h, e a posição de Vénus na eclíptica estará um pouco a oriente do Sol. Por isso as 8 tábuas do Almanach de Zacuto são seguidas da tabela Equatio Veneris, que dá, para qualquer número de revoluções de 8 anos, os dias e horas correspondentes, tomando para base 2d 8h por cada uma destas revoluções.

Como utilizar este número de dias e horas para se obter o lugar verdadeiro de Vénus em qualquer data? É o que se explica no Almanach perpetuum, edição de Leiria, no «Canon decimus, de vero loco Veneris habendo» (pág. 18), onde se formulam duas regras equivalentes. Estas regras, porém, redigidas cm latim por Mestre José Vizinho, foram julgadas de difícil aplicação. O processo resume-se em juntar ao dia do mês da data proposta o número de dias fornecido pela tabela Equatio Veneris e com a data resultante entrar na tábua respectiva, a Tabula segunda, por exemplo, tratando-se do ano 1498, como vimos. Mas o lugar de Vénus assim obtido não fica ainda exacto. Como as tábuas foram calculadas para o movimento do planeta, não só no epiciclo mas também ao longo do deferente, e como a correção a fazer, correspondente a 2d 8b por cada revolução de 8 anos, é só para movimento do epiciclo, tem de deduzir-se do lugar, dado pela tábua, o movimento no deferente que é igual ao do Sol, isto é, tem de deduzir-se o movimento próprio do Sol durante aqueles dias que se acrescentaram à data  proposta. Tinham assim de usar-se também as tábuas solares. Embora Isto não fosse muito difícil, o certo é que o canon  decimus da famosa obra de Zacuro foi considerado de complicada aplicação. 

João Lucílio Germano, que em Veneza dirigia a publicação de obras astronómicas, resolvendo fazer uma nova edição do Almanach perpetuum pediu ao astrónomo sevilhano Afonso de Córdova que formulasse uma regra mais simples para o cálculo do lugar de Vénus pelas mesmas tábuas de Zacuto.  Este desempenhou-se da missão e julgou o seu novo cânon tão importante que o dedica, no verso do frontispício da edição veneziana de 1502, a D. Afonso de Portugal, bispo de Évora.  Era este bispo filho de D. Afonso, Conde de Ourém, que era filho de D. Afonso, 1.0 duque de Bragança; bisneto, portanto de D. João I e primo de D. João II. Foi este rei que, em 1485, o nomeou para o bispado de Évora, cargo que exerceu até ao ano de 1522, em que morreu. O P.e Francisco da Fonseca na sua Evora Gloriosa, Roma, 1728, chama-lhe Mecenas dos letrados. O astrónomo sevilhano na carta-dedicatória, por declarar que sabe quanto o bispo português se deleitava com a obra de Abraham ZacutoJ dIz-lhe: «qui eruditissimorum  semper tutelam sustinuisti». Note-se corno na época dos descobrimentos, um prelado poderoso, parente do monarca, se interessava pela astronomia.

Afonso de Córdova, doutor em Artes e Medicina, fala de um erro de Zacuto. É um simples erro de notação numa das tábuas para o cálculo das latitudes de Vénus, senão apenas uma notação menos conveniente. O astrónomo  

sevilhano com soberba prosápia, diz do salmantino que ele não compreendera o que escreveu, «mon intellexerit». Abraham Zacuto era um judeu espanhol nascido, por 1460, em Salamanca, em cuja Universidade foi professor de astronomia, vindo para Portugal em 1492, quando da expulsão dos judeus de Espanha. D. João II fê-lo seu astrónomo, e astrónomo continuou sendo de D. Manuel. Depois da expulsão dos judeus de Portugal, ordenada em Dezembro de 1496, Zacuto fugiu para Túnis, acabando por morrer em Damasco, por 1535. Em Veneza aproveitavam-lhe a famosa obra, para a editar, e ainda lhe apoucavam a inteligência. 

A grande obra de Zacuto, reconhecida de tamanha utilidade, era considerada difícil! de aplicar, principalmente no cálculo do lugar de Vénus para as revoluções pretéritas ou futuras, isto é, para os anos anteriores ou posteriores à revolução primeira dos oito anos das tábuas do Almanach, as quais começam no ano de 1473, que era chamado Radix, raiz do almanaque, por nele começarem a maior parte das tabelas. Afonso de Córdova, a rogo de J. Lucílio Germano, resolveu compor um cânon facílimo para se ter a longitude de Vénus pelas mesmas tábuas; e por causa dos que ladram contra os sábios dá, a seguir, as razões da sua regra:  «Ratio canonis Alfonsi».

Estas razões são as mesmas do cânon de Zacuto e estão já contidas no que deixamos dito na breve exposição que fizemos da teoria ptolomaica do planeta. O que o sevilhano apresenta de novo, para evitar o uso das tábuas solares, é adoptar um movimento constante para o Sol em cada dia. Como, porém, o sol avança mais rapidamente pelo zodíaco nas estações de outono e inverno do que na primavera e verão, em vez de adoptar os  59′ de movimento médio para todo o ano, toma 57’ por dia desde Março a Setembro, e 61′ nos meses restantes. É uma simplicidade obtida à custa do rigor. Afonso de Córdova começa por tratar do caso mais simples em que o ano dado é algum dos oito do Almanach. O segundo caso é o do ano posterior.

Almanach perpetuum (excerto). Domínio público

Apliquemos o cânon a procurar o lugar verdadeiro de Vénus em 24 de Abril 1498, dia em que a frota do Gama largou de Melinde. A diferença 26 = 1498 – 1472, dividida por 8 dá o resto 2 e o quociente 3: 26 = 8 X 3 + 2. Tem, pois, de usar-se a 2a das 8 tábuas, indicada pelo resto. Entra-se com o quociente 3 na tabela Equatio veneris (pág. 224 da edição fac-simile da de Leiria) e em frente do número 3 encontra-se: 7 dias, 2 horas e 24 minutos. Acrescentando estes 7 dias à data 24 de Abril, resulta o dia 1 de Maio. Entrando agora com esta data na Tabula Veneris annus 2 (pág. 271), acha-se, para o dia 1 de Maio, o lugar de Vénus em 9° 42′ do signo do Touro. Como 1 de Maio fica entre Março e Setembro, resta multiplicar 57’ pelos 7 dias acrescentados, o que dá 399 = 6° 39′. Subtraindo 6º  39′ de 9º 42′, temos finalmente o lugar verdadeiro de Vénus, no dia 24 de Abril de 1498, em 3° 3′ do signo do Touro.

Já atrás vimos a facilidade com que se obtinha, pelas 4 tábuas solares, o lugar do Sol em qualquer época, e como aplicação, achamos o Sol em 13° 4′ do signo do Touro. Neste dia estavam os dois astros no mesmo signo, Vénus em 3° 3′ e o Sol mais para orieme, em 130 4′, a uma distância, portanto de 10º. Assim quando o Sol despontou no horizonte naquele dia, já Vénus estava acima, numa elongação de dez graus contados na eclíptica; era então estrela da manhã.

O mesmo singelo cálculo, aplicado a qualquer dos dias posteriores, dá Vénus a ocidente do Sol durante a travessia do Oceano Índico. Para o dia I de Junho, obtém-se Vénus em 19° 29′ do signo dos Gémeos e o Sol em 19º 21’ do mesmo signo. Então já o planeta estava a oriente do Sol, começando a ser estreia da tarde. A conjunção superior teve lugar em 31 de Maio, segundo o Almanach perpetuum.

A armada do Gama partiu de Melinde na terça-feira, 24 de Abril. No domingo, 29, voltaram a ver a estrela do norte.  Na sexta-feira, 18 de Maio (1), avistaram uma terra alta, havendo 23 dIas que tinham partido de Melinde. No sábado, 19, não puderam tomar conhecimento da terra pelos muitos chuveiros e trovoadas. No domingo, 20, pousaram enfim duas léguas abaixo de Calecut. Durante a travessia Vénus foi sempre a estrela de alva, como acabamos de verificar.

(1) Castanheda diz: «E hûa sexta feyra que forão dezessete de Mayo»; e depois: «E ao domingo vinte de Mayo.». Não pode ser 20 no domingo e 17 na sexta. É erro que também vem no Roteiro, atrás citado que foi a fonte de Castanheda. No manuscrito do Roteiro estão os números em caracteres romanos; escrever XVII por XVIII é erro de cópia, fácil de explicar.

Vamos aplicar o cânon de Afonso de Córdova «in annis preteritis», para uma época anterior ao ano de 1473, raiz das tábuas, procuremos o lugar de Vénus em 30 de Outubro de 1340, o célebre dia da batalha do Salado.

Subtraímos 1340 de 1472 e dividimos a diferença 132 por 8, o que dá 132 = 8 X 16 + 4. Mas agora tem de tomar-se uma revolução a mais, considerando, em vez desta Igualdade, a igualdade 132 = 8 X 17 – 4, porque de 1471. para 1º 40’ tem de contar-se para trás, e a ordem de numeração das 8 tábuas é para diante. Assim, desde 1472, descontando 17 revoluções completas (136 anos) obtém-se o ano 1336, anterior a 1340, e regressando quatro para diante, atinge-se esse ano. Teremos pois de usar a Tabula Veneris annus 4, e entrar na tabela Equatio Veneris  (pág. 224) com o número 17, de revoluções, em frente do qual achamos: 40 dias, 5 horas e 36 minutos.

Temos agora de subtrair aqueles 40 dias à nossa data de 30 de Outubro, o que dá 20 de Setembro, e com a data assim obtida entrar na Tábula quarta (pág. 219)’ Aqui se encontra, para lugar de Vénus em 20 de Setembro, 15° 48′ do signo de Escorpião. Os 40 dias, desde 20 de Setembro a 30 de Outubro devem ser considerados «a septembri ad martium»; resta pois multiplicar 61′ por 40, o que dá 2440′ = 40° 40′ . Como 30º completam um signo, em vez de 40° 40′, dizia-se; 1 signo 10º 40’. Tem de acrescentar-se um signo, 100 40’ aos 15° 48′  do signo de Escorpião, obtendo-se assim 26° 28′ do signo de  Sagitário, que se segue ao de Escorpião. Tal é o lugar verdadeiro de Vénus naquele memorável dia, segundo o Almanach perpetuum.

Para termos o lugar do Sol no mesmo dia, 30 de Outubro de 1340, como este ano é bissexto, vai-se à Tabula quarta solis  (pág. 40), que dá, para 30 de Outubro, o Sol em 16º 34’ 47’’ do signo de Escorpião. Esta tábua corresponde ao ano de 1476, e como entre 1340 e 1476 medeiam 136 anos, e é 136 = 4 X 34,  temos de procurar na Tabula equatlonis solis (pág. 41) a correcção de precessão correspondente a 34 revoluções de 4 anos,  e achamos 1º exacto. Como se trata de um ano anterior à Raiz, subtrai-se 1° de 16° 34′ 47’’, obtendo~se 15º 34’ 47’’ ou mais simplesmente, 15° 35J do signo de Escorpião.

Em 30 de Outubro de 1340 estavam, pois, segundo o Almanach, o Sol em 15º 35′ de Escorpião. e Vénus, a oriente, no signo imediato, em 26º 28′ de Sagitário a uma distância de 1 signo, 10º 53′, ou de 40° 53′. Quando o Sol desapareceu no horizonte na tarde da célebre batalha, Vénus ficava ainda muito acima, com uma elongação de 41° contada na eclíptica. Era estrela da tarde, Véspero.

Tendo atingido antes a elongação máxima, o formoso astro ia a aproximar-se do Sol, para a conjunção inferior. Neste percurso o planeta adquire o seu brilho máximo, quando a 38° ou 39° do Sol na tarde da memorável vitória do Salado, Vénus refulgia pois ao poente, demorando-se sobre o horizonte, com intenso brilho.

Acabamos de ver como Camões, com as 4 tábuas solares e as 8 tábuas venusinas contidas no Almanach perpetuum podia, pelo processo elementar do cânon de Afonso de Córdova, saber a posição da estrela Vénus a respeito do Sol em qualquer época verificando se ela brilhava no poente ao descer das primeiras sombras e o nascente nos primeiros alvores do dia. 

Planeta Vénus. Foto de ZCH

Tivemos que nos alongar um pouco para expor o fundamento astronómico do processo e a sua história. O Canon Alfonsi, oferecido a tão ilustre bispo português, e tão apregoado como um dos importantes melhoramentos da edição de Veneza  não podia deixar de ser do conhecimento do poeta que tanto se deleitava no estudo da ciência dos astros, como provam a belíssima. e rigorosa descrição da máquina do mundo do Canto X, e as numerosas referencias astronómicas, sempre exactas, que se encontram não só nos Lusíadas como em toda  a sua obra poética. Ele próprio manifesta este seu gosto quando na Elegia que começa  

O poeta Simónides falando…

depois de contar a tempestade que assaltou, nas alturas do Cabo de Boa Esperança, a nau S. Bento que o levou para a Índia em 1553 e a sua entrada na guerra contra o Rei da Pimenta logo que lá chegou, evoca a paz tranquila dos campos, considerando um dos maiores prazeres da vida pacífica dos lavradores bem-aventurados o poderem dedicar-se à observação e estudo dos astros:

Ditoso seja aquele que alcançou
Poder viver na doce companhia
Das mansas ovelhinhas que criou!

Este bem facilmente alcançaria
As causas naturais de tôda cousa;
Como se gera a chuva e neve fria;

Os trabalhos do sol que não repousa;
E porque nos dá a lua a luz alheia,
Se tolher-nos de Febo os raios ousa;

E como tão depressa o Céu rodeia;
E como um só os outros traz consigo
E se é benigna ou dura Citereia.

O seu gosto pela astronomia está aqui bem claro. Note-se como, a par do Sol e da Lua, acaba por especificar o formoso planeta que no céu era guiado pela deusa dos amores, «a deusa em Citera celebrada» (I, 100).

As referências astronómicas dos Lusíadas são sempre de completo rigor. O curso das Lunações durante a viagem do Cama era do seu inteiro conhecimento  para o que lhe bastava consultar a Tabula conjunctionum et oppositionum luminarium do Almanach perpetuum, onde se encontram os novilúnios e plenilúnios dos anos de 1497 e 1498 (págs. 310 e 311 da edição fac-símile).

A contagem do tempo desde a saída de Lisboa até ao desembarque na Baía de Santa Helena é absolutamente exacta:

Mas já o planeta que no céu primeiro  
Habita, cinco vezes, apressada,
Agora meio rosto, agora inteiro
Mostrava emquanto o mar cortava a armada.

Quando largaram de Lisboa no dia 8 de Julho de 1497, a lua ia na passagem de quarto crescente para lua cheia; e decorridos quatro meses, quando, em 4 de Novembro, avistaram a  baía a que puseram o nome de Santa Helena, repetia-se pela quinta vez aquele fenómeno, indo também a Lua na passagem de meio rosto para rosto inteiro.

Quando chegaram a Moçambique em 2 de Março de 1498, também a lua ia na passagem de quarto crescente para rosto inteiro, que atingiu no dia 7. Com plena verdade descreve o poeta o findar daquele dia:

Nisto Febo nas águas encerrou  
Co carro de cristal o claro dia.
Dando cargo á Irmã que alumiasse
O largo mundo, enquanto repousasse (I, 56)

Com efeito naquela tarde, de 2 de Março de 1498, o Sol desaparecia no poente e já a Lua prateada ia alta sobre o mar, a oriente do meridiano.

As referências ao planeta do terceiro céu são tão rigorosas como as que o poeta faz ao planeta «que no céu primeiro habita»

Tendo a armada partido de Melinde, com o piloto que o rei lhes dera, em 24 de Abril de 1498. os marinheiros que faziam o quarto de alva na travessia do Oceano Índico, viam luzir Vénus no oriente quando o azul do céu empalidecia aos primeiros alvores da madrugada. Nesses dias

… a amorosa estrêla scintilava  
Diante do Sol claro no horizonte.

E na tarde da memorável vitória das armas cristãs sobre as armas muçulmanas, em 30 de Outubro de 1340, quando

Já se ia o Sol ardente recolhendo  
Para a casa de Tétisl

é certo que o Véspero refulgia com intenso brilho. bastante alto sobre o horizonte do poente.

A fonte em que o poeta colheu as informações astronómicas de que usou tão escrupulosamente foi o Almanach perpetuum de Abraham Zacuto, onde podia ver os tempos de entrada do Sol nos signos, as conjunções e oposições do Sol e da Lua, e onde, por um cá!culo elementar, podia saber, em qualquer época, a posição relativa dos dois astros companheiros

O claro olho do céu no quarto assento,  
E Vénus! que os amores traz consigo (X, 89)

Imagem de capa

Composição MpF

Foto de Zoltan Tasi na Unsplash

Foto de Raimond Klavins na Unsplash

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