Há cerca de 3000 anos, os egípcios desenvolveram um sistema de numeração, decimal, ou seja, assente na base 10, sistema que se manteve até aos dias de hoje. Usavam a escrita hieroglífica e a escrita hierática. A primeira, pintada ou talhada, era utilizada em monumentos e templos. A mesma dispunha de um símbolo para representar a unidade (o 1) e ainda outros (todos diferentes) para designar cada uma das potências de 10, do 10 ao 1000 000.
Assim, na escrita hieroglífica, eram usados os símbolos apresentados na figura 1:
Esse sistema, puramente aditivo, dispunha os símbolos aleatoriamente na vertical ou na horizontal, sendo cada um adicionado as vezes que fossem necessárias até representar o número desejado. Outra característica é o facto de a escrita com hieróglifos não ser posicional, o que significa que os símbolos podiam ocupar qualquer posição, sem que fosse alterado o seu valor.
A figura 2 apresenta alguns exemplos de números escritos com hieróglifos:
Relativamente à escrita hierática, esta possuía muitos mais símbolos, um para cada algarismo de 1 a 9, um para cada dezena de 10 a 90, uma para cada centena de 100 a 900 e um para cada milhar de 1000 a 9000, como se pode ver na figura 3. Este sistema era posicional, ou seja, os símbolos assumiam valores diferentes de acordo com a sua posição.
Essa escrita era mais prática porque implicava o uso de menos símbolos na representação de um número.
A figura 4 mostra alguns exemplos de números escritos na linguagem hierática.
Como se pode verificar, no caso do número 48, uma vez que pode ser decomposto em 40 + 8, escrevia-se da direita para esquerda, primeiro o símbolo representando o 40 e de seguida o do algarismo 8.
Da mesma forma e tendo em conta que 2486 se decompõe em 2000 + 400 + 80 + 6, da direita para a esquerda, a ordem dos símbolos é a seguinte: primeiro, o 2000, depois o 400, seguido do 80 e finalmente, o 6.
Essa escrita era mais usada na resolução dos problemas do dia-a-dia e a mesma está presente em papiros, onde encontramos registos de tabelas de cálculo, bem como de resolução de problemas que se destinavam à aquisição de conhecimentos por parte dos escribas.
Os papiros constituem umas das provas matemáticas mais importantes do Antigo Egito, uma vez que mostram, com registo escrito, a habilidade deste povo, nesta época tão longínqua. O mais conhecido é o “Papiro de Rhind”, datado de 1650 a.C. e cujo nome se deve ao inglês que o adquiriu, em Luxor, no ano de 1858. Este papiro é também denominado “Papiro de Ahmés”, por ter sido copiado por um escriba conhecido com esse nome, a partir de um documento com dois séculos de idade. O “Papiro de Rhind”, cujas dimensões são de aproximadamente 6 metros por 33 centímetros, apresenta-se como um manual prático, em linguagem matemática, onde se encontram cerca de 85 problemas e respetiva resolução, o que permite entender a metodologia matemática utilizada por esse povo. É notória a riqueza desses conhecimentos.
Estes problemas envolvem questões aritméticas, frações, equações lineares e geometria.
Entre outras tabelas, o “Papiro de Rhind” apresenta uma tabela de frações do tipo
onde o número n é ímpar e está compreendido entre 5 e 10, a saber
mostrando assim como estas se podem decompor. Mostra também uma tabela de frações do tipo
com m a assumir valores compreendidos entre 2 e 9, indicando assim uma outra forma de exprimir as frações
As tabelas apresentam também as frações decompostas em frações unitárias, ou seja, frações cujo numerador é igual a um. Os egípcios viam a fração unitária como o inverso de um número inteiro. No entanto, aceitavam utilizar a fração
para a qual existia um símbolo específico. A seguir, apresentam-se dois exemplos de decomposições:
Exemplo 1:
No caso de n=3, teremos:
Exemplo 2:
No caso de n=3 e m=5, teremos:
Na decomposição de uma fração, os egípcios não gostavam de repetir a mesma fração unitária, tal como seria possível fazer no caso do exemplo 2, ao escrever
Por isso usavam essas tabelas para conseguir uma decomposição sem repetição, ou seja,
no caso desse mesmo exemplo.
Estas técnicas utilizadas pelos egípcios são demonstrações dos elevados conhecimentos matemáticos que esse povo possuía.
Essas frações e respetivas decomposições eram usadas na resolução de problemas, como consta no “papiro de Rhind”.
Este documento mostra ainda a forma como os egípcios usavam a multiplicação, uma das operações aritméticas: duplicavam sucessivamente um dos números e somavam alguns dos resultados, como mostra o seguinte exemplo:
Consideremos a seguinte multiplicação: 21 × 22
Primeiro escreviam em colunas os números, de tal forma que cada linha correspondesse ao dobro da anterior.
Neste caso, a primeira coluna começa com o 1 e a segunda com o 22:
De seguida, eram selecionadas as linhas da primeira coluna, cuja soma igualasse o primeiro fator da multiplicação, neste caso, a primeira, terceira e quinta linhas, pois 1 + 4 + 16 = 21.
Procedia-se, então, à soma dos valores correspondentes à mesma linha, mas da segunda coluna. Neste caso, teríamos 22 + 88 + 352 = 462, o que corresponde ao resultado de 21 × 22.
Na verdade, o que os egípcios faziam era aplicar a propriedade distributiva da multiplicação, relativamente à adição, a saber,
( 1 + 4 +16 ) × 22 = 1 × 22 + 4× 22 + 16 × 22
Encontram-se também no documento problemas de natureza algébrica, envolvendo equações lineares. O método usado na sua resolução é a denominada “falsa suposição”. Como exemplo, vejamos um dos problemas do papiro, cujo enunciado pode traduzir-se por:” Qual é a quantidade cuja soma com o seu sétimo iguala 19?”
Para a sua resolução e tendo em conta que um sétimo de 7 dá 1, considera-se como suposição que essa quantidade é 7. Uma vez que 7+1 não iguala 19, mas sim 8, a resposta certa obtém-se multiplicando 7 por
ou seja
fração que depois de decomposta corresponde a
O escriba procedia sempre a uma verificação para certificar a veracidade do resultado.
Também no campo da geometria, os escribas egípcios utilizavam métodos surpreendentes. Por exemplo, num dos problemas que constam no “papiro de Rhind”, está registado que a área de um círculo, de diâmetro 9 unidades, equivale à de um quadrado com aresta igual a 8 unidades.
Analisando o raciocínio, tal como indicado na figura 5, se dividirmos o diâmetro de uma circunferência em 9 partes iguais, tomando como unidade de área a quadrícula, o octógono que o aproxima tem uma área que se pode calcular subtraindo à área do quadrado de lado 9, a área dos quatro triângulos de base e altura 3 (triângulo [ABC]).
Assim, começando por calcular a área do triângulo [ABC] e sabendo que a mesma se obtém através de metade do produto da base pela altura, obteremos
ou seja,
A área dos 4 triângulos corresponderá a
ou seja 18.
A área do quadrado sendo igual ao quadrado da aresta, 92, ou seja 81, teremos para a área do octógono 81 – 18 = 63, ou seja, quase 64, que corresponde à área do quadrado de lado 8 unidades.
Foi dessa forma que os escribas chegaram à conclusão que a área de um círculo se obtinha elevando ao quadrado a diferença entre o diâmetro do círculo e a sua nona parte. Em linguagem matemática, equivale a escrever a seguinte expressão para a área do círculo de diâmetro d:
sendo r o raio do círculo.
Se compararmos com a expressão exata para a área de um círculo, πr2, isso equivale a considerar
ou seja, uma aproximação muito boa.
Também sabemos que os escribas egípcios tinham a capacidade de calcular o volume de uma pirâmide truncada, de uma forma equivalente à que usamos hoje.
A escassez de documentos arqueológicos não nos permite concluir se os egípcios tinham consciência da natureza aproximativa ou exata dos seus métodos. No entanto, os registos sugerem que esse povo tão distante tinha uma grande capacidade de abstração. Tal como acontecia com os babilónios, eles usavam a Matemática para resolver problemas práticos do quotidiano.
Bibliografia
História das Ciências, Dir. Philippe de la Cotardière, Volume 1
A história do papiro de Rhind, Luiz Carlos Pitzer e Jéferson Deleon Fávero
Imagem de capa
Estela da Princesa Nefertiabet a comer; 2589–2566 aC; calcário e tinta; altura: 37,7 cm, comprimento: 52,5 cm, profundidade: 8,3 cm; de Gizé; Louvre (Paris). Creative commons