Buscando eu, outrora, a verdade através da Física e da Metafisica, sem jamais a poder descortinar, alguém me disse ter ela estabelecido o seu poiso entre as coisas naturais e as transnaturais, isto é, na Matemática. Ávida e alegremente acorro; e, como general avisado, ainda que veja as portas da cidade inimiga abertas não entra temerariamente nela mas, temendo insídias, manda adiante exploradores para que tudo sondem e examinem e, ao atacar de surpresa uma província hostil, não deixa atrás de si nenhuma defesa ou fortaleza do inimigo que não destrua e aplane; assim eu, logo ao pôr os pés no átrio das Matemáticas, hesitei, temendo de todos os lados, desconfiado e suspeito, o dolo. As vantagens foram palpáveis. Sem essa desconfiança teria caído em terreno minado, qual é o que se cava no campo da Matemática, não tão grande e vasto como no da Física e da Metafísica, mas por isso mesmo mais difícil e perigoso.
Não vou discutir, presentemente, se as disciplinas matemáticas se devem contar entre as demais ciências, o que não ousaria afirmar pois estas dependem mais dos sentidos que da razão e, por isso, são mais certas, se algo de certo existe neste mundo. De facto, a verdadeira ciência pretende conhecer antes de mais a Deus, depois a Natureza, sua escrava, interna e externamente ou, no dizer de Aristóteles, conhecer as coisas pelas suas causas. Ora, comparar lado com lado, ângulo com ângulo, figura com figura, o todo com as partes, proporções com proporções, inscrever figuras umas nas outras, investigar finalmente as demais propriedades de ambas as quantidades, pode denotar engenho e agudeza; não é, no entanto, científico.
No que diz respeito, por exemplo, à Astronomia, aumentastes os círculos concêntricos, excêntricos, epiciclos; tecestes óptimas teorias, como sempre o pensámos, sobre a trepidação, número dos céus que se multiplicam com toda a facilidade e outras coisas semelhantes, necessárias, sem dúvida, úteis à observação e indicação dos fenómenos e à conservação da economia eclesiástica. Tudo isto, óptima e firmemente, como vós mesmo o afirmais, procurou corrigir Copérnico, admitindo que a Terra era móvel e os céus imóveis, mas partindo de um falso suposto. Nem foge à tua perspicácia, a que nada escapa, quão frívola seja a sagacidade e engenho daqueles que dividem o céu em compartimentos e, contemplando o aspecto dos planetas e astros, atiram o pobre Nero para as pontas do punhal, logo no primeiro momento do nascimento: tão longe vão o furor e a temeridade do engenho humano!
Mas voltemos à Geometria, que deve ser certíssima pois se serve da régua e do compasso. Há nela, no entanto, muitas fendas como se vai ver. Não bastam, em repetidos casos, os sentidos. Quando estes falham, recorre-se à inteligência. Ambos, por vezes, quer juntos quer separados se enganam, sobretudo a razão. Muito me tem servido em tudo o bom senso ainda desprovido, não digo de razão, mas de qualquer argumento, prova ou demonstração. Há muito de duvidoso na Matemática, não só nos princípios, mas também nos seus desenvolvimentos. Supõe antes de mais pontos, duvidando se e como existem, e também linhas e superfícies: aqueles totalmente indivisíveis; as linhas dividindo-se segundo o comprimento, as superfícies segundo a largura. Admite, por outro lado, como certas outras coisas como algumas definições, por exemplo a de ângulo (na qual não concordais com Peletário3, e até nós duvidaremos dela, um dia), e a de proporções (sobre esta discordais vós de Orôncio e de Peletário), bem como de algumas proposições, qual a décima terceira do livro i de Euclides, que vós, com Gémino” e Proclo”, afirmais não pertencer ao número dos axiomas (Proclo, no entanto, ao querer prová- -lo, comete uma petição de princípio, como vós julgais, e é mais obscura, aqui e ali, a prova, que o que se pretende provar), e a décima quarta, que o mesmo Procło demonstra contra a natureza do princípio; enfim, muitas outras coisas, que por brevidade omito, que são obscuras e se prestam a discussão. Parece que, de novo, se admite uma quantidade contínua e indivisível, o ângulo de contingência, contra o que Aristóteles parece e crê ter demonstrado. Mas disto, se me derdes licença, trataremos noutra ocasião.
Sabeis que Aristóteles foi óptimo matemático e conheceu o ângulo de contingência. Conclusão: os matemáticos vêem-se seriamente embaraçados, porque os seus princípios e regras não concordam, com o que se ensina, ao tratar das coisas naturais; e ainda que concordassem, nem por isso seriam mais certos, pois muito do que se ensina, a respeito das coisas naturais, é duvidoso e discutível.
Por fim, há muitos outros problemas, dos quais se duvida com motivo; se não aplicamos com todo o cuidado a força da razão, bastas vezes não atingiremos a meta, ainda mesmo apoiando-nos em demonstrações, como bem o mostrais a Peletário, homem aliás tão douto, a propósito do ângulo de contingência, ou ainda a este mesmo e a Orôncio, a respeito da definição e natureza da proporção. Vedes, pois, quanta perturbação acarreta consigo a ambiguidade de um só teorema: se estremece, virá a terra tudo o que nele se apoia. Tanto importa olhar, bem fundo, aos alicerces do edificio, não aconteça que este, como se dá com um mau pedreiro, apenas acabado de construir, venha a terra.
Vede quão grande seja a miséria humana, e como esta se conjuga, por vezes, com a boa sorte! Acontece, com efeito, erguer-se mesmo sobre débeis alicerces, o edifício que se pedia; não raro, também, a ciência progride, partindo de princípios absurdos ou obscuros. É o que se dá, precisamente, nos que edificam no mar ou em lugares pantanosos. Arremessam, ao acaso, enormes blocos até à superfície das águas, para de seguida construírem o que pretendem, segundo as regras da arte: assim, também, a Astrologia, de falsas suposições (que há aí de mais falso do que tantos, tão grandes e tais círculos, epiciclos, e inventar tudo o mais; ao próprio sabor, idear os céus imóveis, e a terra móvel, crer que toda a terra e todos os mares formam uma esfera, equivalente a um ponto: tudo isto são princípios astrológicos) consegue acertar com as razões dos eclipses e demais coisas celestes. A Aritmética, igualmente, de uma regra, que os Árabes chamam Catain, e nós do Falso, deduz o que pretende; do mesmo modo, o dialéctico, de premissas falsas, conclui, com admirável lógica, por vezes, a verdade; e, finalmente, vós próprio que por meio da linha quadradora, engenhosamente lançada, pondo de parte apenas alguns detalhes, ensinais a realizar a quadratura do círculo. Disse que a Astrologia deduz com bastante verdade, o que pretende; conheceis, sem dúvida, quanto se tem trabalhado, ultimamente, na reforma do Calendário, onde haverá sempre que melhorar.
Mas já muito faz o homem com pretender aproximar- -se da verdade. Eu, quanto está da minha parte, examino tudo, cuidadosa e escrupulosamente, para me ajustar com ela, afastando-me o menos possível. Ora, examinando, um dia, nos vossos doutíssimos e substanciosos comentários a Euclides, a prova de Proclo à décima quarta proposição do liv. 1, e que há bem pouco vos enviei, pareceu-me que Proclo se enganara no seu raciocínio. Não quero, com isto, menoscabar, por pouco que seja, a estima daquele varão sapientíssimo, e menos ainda a vossa, pois estais acima de toda a crítica ou inveja; o facto, porém, só virá aumentar o vosso renome. Costumam os frecheiros arremessar as seus dardos para o alto, e sucede, convosco e connosco, vós magnates e nós desprezíveis, o que se passa com ricos e pobres. Mais facilmente se anicha certa negligência ou esquecimento nos cantos da casa do príncipe do que aparece no casebre do pobre e, enquanto o rico progride às mãos cheias, o miserável corre atrás de um tostão.
Por isso, não me julguei, por então, bastante digno; passaram já muitos anos, para vos importunar com semelhantes ninharias, pois sabia terdes, entre mãos, importantíssimas questões. Mas sempre venceu o amor da verdade, e a oportunidade de certo mensageiro, ou até, como sói dizer-se, o influxo não sei de que constelação, ou melhor, um conjunto de circunstâncias, levaram-me a molestar-vos agora, contando já fazê-lo, ainda outra vez, mais tarde. Esta, a desgraça dos grandes homens: serem importunados e perseguidos pelos pequenos, como Hércules pelos pigmeus. Não vos admireis, portanto, ilustríssimo senhor, se eu, um desconhecido de vós e de todos, na ciência e na realidade, vos venha, mais uma vez, interromper, um tanto, nos vossos importantíssimos estudos. Estou certo de que o fareis de boa vontade, dada a virtude que nos atraiu a vós, e a caridade a que vos consagrastes totalmente; concedei-me mais, ainda, este benefício, pois só é tal, quando não espera retribuição, tanto mais que é próprio da vossa religião ou, melhor, de toda a sociedade humana, ligar os homens entre si por meio de obséquios. Respondes- tes, pois, às dúvidas que se me apresentaram ao espírito contra Proclo, argutamente e em poucas palavras; mais, no entanto, do que esperava. Julgava, eu, ter demonstrado tão claramente o que pretendia, que me persuadi ser impossível, caso não me tivesse enganado, dar-se-me qualquer resposta cabal, e se aquela demonstração fosse de Euclides, desesperaria, de vez, de alcançar a certeza em Geometria, ainda que não confio muito nela, como terei talvez ocasião de o mostrar, mais tarde. Vós, com todo o vosso engenho e sinceridade, procurastes defender o exímio Proclo. Contudo, a vossa douta resposta, não só me não arrancou o escrúpulo, como mais me confirmou nele. Vou, pois, expor a minha opinião sobre isso em poucas palavras.
Concedeis-me, primeiro, que Proclo podia, como eu afirmo e provo, demonstrar a sua tese com menos palavras, como vos provastes, bem mais brevemente do que Euclides, muitas das suas proposições. Mas, acrescentais logo, isso não é defeito. Eu julgo o contrário, apoiando-me na opinião geral, de que em vão se diz, em longo arrazoado, o que se pode exprimir em poucas palavras; e que é grandíssimo defeito, num mestre, explicar qualquer assunto com grandes discursos, mas confusos, podendo-o fazer claramente em poucas palavras, sobretudo na Matemática, onde, quanto for possível, nos devemos estribar nos sentidos. Por tal motivo, louvo-vos grandemente, porque sabeis ensinar muitas coisas com método e facilidade, nem concordo com o douto Peletário que criticava o aproximar figura a figura, corpo a corpo, ao querer comprovar a mútua igualdade ou desigualdade, como reza oitavo axioma do liv. 1 de Euclides. A minha opinião é, exactamente, a contrária; tudo o que podermos conseguir a olho com o compasso e régua, devemo-lo fazer, sem nos metermos no caminho longo da demonstração, senão no caso dos sentidos falharem; tão avesso sou a grandes, longos e difíceis raciocínios que, por vezes, só tornam mais escuro o que, de si, é claro!
Se tivesse de construir um triângulo equilátero sobre determinada linha AB, contentar-me-ia com abrir o compasso e,
medido o comprimento da linha dada, colocá-lo-ia de A a B e de B a C (o mesmo se poderá fazer para a outra parte da linha) e de Ca A, até encontrar o ângulo ABC, e uma vez encontrado, o que é facílimo, de um só golpe traçaria o triângulo sem ter que provar tratar-se de triângulo equilátero, pois o compasso o manifestaria, sendo muito
mais fácil acreditar na medida dos três lados, do que na confecção de dois círculos primeiro, para depois traçar os lados. Do mesmo modo, se tivesse de dividir um ângulo recto, em duas partes iguais, operação que vós ensinais a fazer mais facilmente do que Euclides, traçaria duas linhas iguais AB e AC, e depois a recta AD, que daria origem a dois ângulos absolutamente iguais, provando, deste modo, o que pretende o 8 axioma do liv. 1, e a 4,5 e 8 proposições do mesmo, muito mais facilmente do que o faz Euclides no 9 do liv. 1. Sentimos, contudo, prazer na dificuldade e andamos à cata de desvios, para que nos não taxem de empiristas ou pouco versados na matéria, pretendendo mostrar, pela razão, o que é patente aos sentidos, invertendo assim a ordem das coisas. Muito teria que dizer a tal respeito, o que omito, agora, por brevidade, esperando escrever, sobre isso, em tempo mais oportuno.
Mas, como dizíamos, pouca impor- tância teria o que apontámos, se a prova de Proclo fosse verdadeira. Não o é; ao contrário, C é capciosa, como provávamos, quando afirma serem os ângulos ACF e ACE iguais a dois rectos. Respondeis-me, vós, que tais ângulos se devem tomar separadamente, não enquanto
um é parte do outro, pois só desta maneira poderão igualar dois rectos. Ainda que, na minha escaramuça passada preveni esta resposta, parecendo-me tê-la refutado suficientemente, de novo volto a ela, para o mostrar mais claramente. Se eu afirmasse que o sapientíssimo Clávio, com a sua cabeça, é Jano de duas caras, haveria alguém que me acreditasse? Suponhamos que tínhamos, ambos, o mesmo pai, e que vos legara, por testamento, duas geiras de terra, equivalentes, digamos, a outros tantos ângulos rectos, e a mim me constituíra herdeiro. Ficaríeis satisfeito, se vos desse, apenas, uma medida de terra, equivalente ao ângulo ACF, que na demonstração de Proclo iguala dois ângulos rectos? Ora é precisamente disto que tratamos, pois a questão versa sobre Geometria, ou seja, sobre a medida da terra. Se vos vendesse duas geiras de terra por 2000 dinheiros, sejam estes, como fizemos acima, os dois ângulos rectos, ficaríeis contente com os dois ângulos traçados por Proclo? Não de certo; pelo menos, o meu caseiro não aceitaria, por mais que insistísseis na prova. E se, tendo-me emprestado 20, eu vos restituísse apenas 15, apoiando-me neste raciocínio: 15, mais os 5 neles incluídos, igualam 20; ora dou-vos 15; logo, paguei-vos o que devia, admitiríeis semelhante conclusão? E, se quisésseis comprar em qualquer loja, uma certa medida de pano para vestido, seja AB, e vos dessem apenas CD, acrescentando que CD+CE equivalem a AB, não seria A demasiado curto o vosso vestido? Não se oculta, em tudo isto, um sofisma?
E, se a Matemática procedesse em
tudo, assim, não seria apenas uma disciplina enganadora? Se ACF equivale a ACD+BCD, que haveríamos de dizer do enunciado 9, tão certo: o todo é maior que a sua parte?
Mas, dir-me-eis: o ângulo ACE deve-se tomar sepa- radamente, não enquanto faz parte do ângulo ACF. Mas tal resposta envolve uma contradição, como se dissésseis que se devia tomar a parte não-parte, o homem não–homem. Se eu vos imaginasse distinto do sapientíssimo Clávio, pensaria bem? E, se vos tivesse na conta de ignorante, não seria eu um louco? E, se tirasse ao vosso nome uma letra, bem insignificante e simples, Clávio não se converteria em cravo? Pergunto: quando
afirmais que o ângulo ACF equivale a um recto e meio, não compreendeis toda a quantidade e contida entre as duas rectas AC e CF? Logo, também os ângulos ACE, ECD, DCF, que são partes dela, e todos os demais ângulos que quiserdes traçar nesse espaço. Ora, quando de novo ajuntais ou tomais separadamente o ângulo ACE, onde o ides buscar? Será necessário pô-lo à vossa custa: eu não o consentirei à minha, e muito menos o ângulo ACF à
na vossa resposta, que os dois ângulos se devem tomar a seguir. Sabeis que a palavra ¿per (a seguir), usada aqui por Euclides, tem, em Aristóteles, outro sentido, querendo significar, não o lugar, mas a ordem. Por isso, preferiria traduzi- -lo por: da outra parte, de modo a compreender as linhas BC e BD, que se encontram com o ponto extremo da linha AB, e as linhas EF, e FG, que cortam a mesma recta AB no ponto F. Em todo o caso, acho melhor a expressão: a seguir, do que a que emprega Campano: em volta de sí; pois, as duas rectas EF e FG fazem, em volta de si, com AB, quatro ângulos ou rectos ou iguais a rectos. Mas isto pouca importância tem.
É certo que os dois ângulos se devem tomar da mesma parte da recta, transversal à outra, De outra maneira, como demonstrais claramente, ainda que as rectas EF e FH façam com AB dois ângulos AFH e EFB, iguais a dois rectos, não formam, contudo, uma só linha, porque o ângulo AFH deita para a parte A, e o outro EFB para a parte B. De passo, quero tirar argumento em favor da minha tese. Se o ângulo AFD (este tamanho lhe assinava Proclo), não basta para obter dois ângulos iguais a dois rectos, ainda que o dividamos por meio de qualquer recta, devendo acrescentar-se-lhe ou EFB, como vós fazeis, ou AFC, ou BFD, para termos dois ângulos iguais a dois rectos, segue-se evidentemente, que o ângulo AFD, ainda que se divida milhares de vezes, jamais igualará dois ângulos rectos. Por fim, contra a minha demonstração, em que concluía, que se a prova de Proclo tinha algum valor, se seguiria de a que duas rectas CF e FG seriam uma só linha continuada, já que constituíam dois ângulos CFG e CFA (os quais, segundo Proclo, são iguais a dois rectos), tirados de um e de outro lado, originando ângulos seguidos, e contudo, como é evidente, não são uma só linha, contra isto, digo, como subtil artífice que sois, apresentastes óptimo subterfúgio e escapatória. Vale, talvez, no foro judicial; não, porém, no da consciência.
Dizeis, de facto, que aqueles dois ângulos se não originam ambos em F (a vossa figura tem outras letras, mas vem a dar no mesmo), sobre a linha AB, pois AFC abre-se sobre a recta AB, mas não CFG. Logo, não se segue que CF e FG devam fazer uma linha. Mas a minha afirmação ou negação, como sabeis, não faz mudar as coisas. Mais: ainda que afirme algo contra aquilo que a coisa é ou não é, a proposição continuará a ser verdadeira ou falsa. Nem qualquer quantidade, de qualquer maneira que a olhardes, ou quaisquer que sejam as figuras ou linhas que lhe inscreverdes, aumentará ou diminuirá, por isso. Assim, se dividirdes o trapézio ABCD com as rectas AC e AE, originando, desse modo, três
triângulos, não ficará, por isso, maior ou menor, e o mesmo acontecerá, se traçardes ainda a recta BF, que o dividirá em quatro ângulos e dois trapézios. Logo, quaisquer que sejam as linhas tiradas entre ACF (para, de novo, voltar-mos à minha e vossa primeira figura, jamais conseguireis aumentar ou diminuir aquela quantidade. Podereis, sem dúvida, aumentar ou diminuir o número dos ângulos; nunca, porém, obtereis, que aquela quantidade valha mais ou menos que um ângulo recto e mais meio. Mas a quantidade do meu paralogismo (é, verdadeiramente, um paralogismo à imagem da argumentação de Proclo), GCD, é igual, em tudo, à quantidade do de Proclo, ACF. Ora, se a de Proclo equivale a dois ângulos rectos, também
com a minha sucederá o mesmo. Nem é necessário, nem Euclides o afirma, que a linha AB se repita duas vezes, uma em cada ângulo, como vós quereis. Mas, concedamos que Proclo tivesse dito assim: o ângulo ACF equivale a um recto e meio, e o ângulo FCD a meio recto; logo, ambos os ângulos ACF e FCD igualam dois rectos. Não seria o mesmo e não concluiria do mesmo modo, ainda que a linha AB se não repetisse no segundo ângulo? Logo, o geómetra deve atender à quantidade, não ao traçado de linhas, que outro fim não têm senão fazer-no-la apanhar, mas sem delas depender. Concluis, & enfim, que jamais se poderá demonstrar algo contra Euclides, que não há tais paralogismos em Matemática, e que fui eu que me servi de paralogismos.
Mas eu, por ora, nada quis demonstrar contra Euclides, antes só contra Proclo. Aquele, decerto,
se hoje vivesse, não defenderia este, nem as suas obras o defendem, pois nelas nada se encontra que se pareça com esta demonstração ou paralogismo de Proclo. Se for necessário demonstrar algo contra Euclides, poderemos, talvez, fazê-lo, não num só lugar, mas em 2 proposições do liv. m, e no ângulo de contingência, o qual, ao parecer, não pode ser menor que qualquer ângulo agudo rectilíneo ou só em quantidade mínima, contra as afirmações de Aristóteles e do mesmo Euclides 1, décimo (livro). Nem, por isso, seria obrigado a aceitar o parecer de Peletário, homem aliás doutíssimo, que não admite nem tal ângulo, nem tal quantidade. Aos seus paralogismos, respondestes vós, sapientissimamente dando-lhes tal nome; donde se colhe poderem dar-se, também, paralogismos em Matemática, para não falar de outros, a que se refere Pedro Nunes, grande autoridade em Matemática, no seu livro sobre Orôncio. Mas, se fordes de opinião que não se fazem paralogismos assim, e julgardes não ser tal a argumentação de Proclo, pouco me importa o nome, contanto que admitais que a sua prova é insubsistente.
Concedo-vos, sim, que tenha eu usado de paralogismo. Só quis, neste ponto, imitar o paralogismo de Proclo, e consegui- -o, se não me engano. Sabeis que, no arguir, muito aproveita mostrar a consequência absurda do adversário, mudando simplesmente a matéria e guardando a forma. Mas quero, concedo, afirmo, ter-me enganado; desejo ser ensinado e vencido; tenho, até, sumo prazer, em descobrir os erros. Pelo que, se alguma coisa tiverdes sobre tudo isto, ser-me-ia muito grato receber resposta vossa. Não procureis saber quem sou: sou, apenas, outro Carnéades, amicíssimo, não da glória vã, mas da verdade e de vós. Adeus.
Imagem de capa
Francisco Sanches. Domínio público