COSMOS – DEZ DONS DO DEMIURGO

1 O Criador. Pixabay

(Primeira parte)

Segundo a tradição pitagórica, foi o primeiro a usar o termo Cosmos para descrever a ordem e harmonia inerentes ao nosso universo, visto como um sistema ordenado, belo e regido por uma série de leis. As suas partes estão unidas num todo coerente, estruturado e harmonioso, dentro do qual cada componente tem o seu lugar e os princípios opostos são ordenados, aplicados e controlados.

Este termo também indica uma ordem política e moral. Ou seja, o estado aristocrático (ideal) e o homem espiritual (o filósofo platónico) representam o meso e o microcosmo, pois têm todas as características do universo criado pelo demiurgo.

Demiurgo, modelo eterno, matéria:

Alguns autores consideram o demiurgo (artesão) como um deus criador e autor do universo, separado da esfera das ideias; outros dizem que o demiurgo é a personificação da mente cósmica que em si mesma contém o mundo das ideias que serve de modelo do cosmos. Em qualquer caso, o demiurgo é a causa eficiente do universo, e sendo «bom não nasce nele nenhuma inveja». Sendo estranho à inveja, ele queria que todas as coisas nascessem o mais parecidas possível com ele. Para a geração do universo, além de Deus» – chamado «a melhor das causas» e a esfera das ideias, entendida como «o mais belo dos modelos» – a matéria também é necessária, definida como «o mais desordenado dos substratos». A matéria é ama e mãe, recipiente de tudo o que nasce e é gerado, de tudo o que é visível e sensível; é uma certa espécie invisível e sem forma, não é nenhum dos elementos, mas dela nascem todos os elementos e coisas sensíveis.  

… É necessário que tudo o que tenha nascido tenha nascido da ação de uma determinada causa. No entanto, descobrir o autor e pai deste Cosmos é um grande feito, e uma vez descoberto, é impossível divulgá-lo de forma a chegar a todos.

Mas ainda é necessário, ao lidar com o Cosmos, perguntar-se de acordo com qual dos dois modelos (modelo eterno ou modelo gerado ou nascido) aquele que o fez, o fez… se o Cosmos é belo e o demiurgo é bom, é evidente que ele põe o seu olhar no modelo eterno.

Caso contrário, o que não podemos assumir, teria olhado para o modelo nascido. É absolutamente claro para todos que ele teve em conta o modelo eterno. Pois o cosmos é o mais belo de tudo o que foi produzido, e o demiurgo é a mais perfeita e melhor das causas. [Timeu, 28c, 29].

… Uma vez que todas as coisas estão em desordem, Deus introduziu em cada uma delas uma relação consigo mesmo, e em relação umas com as outras, certas proporções. …. Porque até aquele momento, nem uma única delas participou de todo na ordem, se não acidentalmente. Absolutamente nenhuma delas era digna de receber qualquer dos nomes que agora lhes damos, tais como fogo, água, ou qualquer outro deste género. Tudo isto foi ordenado por Deus desde o início, até ao momento em que esse Todo, ser vivo único, foi formado, que contém em si mesmo todos os seres vivos mortais e imortais vivos. [Timeu, 69c] 

Universum. Creative Commons

Dez dons do Demiurgo 

Propclo, nos seus comentários sobre o Timeu, divide a atividade do Demiurgo em dez dons que «o Deus que é sempre» fornece «ao Deus que um dia deveria nascer».

1. Percetibilidade: A primeira dádiva do Demiurgo ao cosmos é ser sólido, tangível e visível. O cosmos é percetível em virtude de ser composto de fogo e terra, e por dois outros corpos, de ar e água, que servem de intermediários entre aqueles. Os quatro elementos, quando são organizados em proporção, estruturam todas as coisas e fazem-nas existir e percetíveis desde o primeiro momento da criação. As coisas não são caóticas, nem são sem forma; elas podem ser percebidas e apreendidas. 

«Evidentemente, é necessário que o que produz seja corpóreo e, consequentemente, seja visível e tangível. E nenhum ser visível poderia nascer assim, se fosse privado de fogo; nenhum ser tangível poderia nascer sem algum sólido (volume), e nenhum sólido existe sem terra. Assim, Deus, ao começar a construção do corpo do mundo, começou, para o formar, a tomar fogo e terra.» [Timeu, 31b].

2. Analogia: O segundo presente é a analogia (proporção), que une os quatro elementos (e as divisões da Alma do Mundo nas proporções do cânone musical). O corpo do mundo está harmonizado por uma proporção geométrica que é o princípio orientador e a imagem da unificação divina. A proporção entre os elementos, a partir dos quais o corpo do mundo é produzido, confere-lhe amizade ou filiação em relação a si próprio, ou seja, contribui para a sua preservação.

Portanto, o cosmos é eterno, não só pela vontade do Demiurgo, mas também pela natureza do seu corpo. Amizade e harmonia interior; estar de acordo consigo próprio é ser feliz. Como disse Pitágoras, o universo existe e é mantido pela harmonia.

Cadmus e Harmonia. Dominio Público

«No entanto, não é possível que dois termos formem sozinhos uma bela composição, sem um terceiro. Pois é necessário que, no meio deles, haja algum laço que os relacione ou ligue… Pois Deus colocou ar e água no meio, entre o fogo e a terra, e arranjou estes elementos em relação uns aos outros, na medida do possível dentro da mesma relação, de modo que o que o fogo é para o ar, o ar é para a água, e o que o ar é para a água, a água é para a terra. Desta forma, uniu e moldou um céu que é visível e tangível ao mesmo tempo.

Através deste procedimento, e com a ajuda destes corpos, que definimos da forma referida em número de quatro, o corpo do mundo foi produzido, harmonizado por uma proporção. Destas condições possui a amizade, de modo que, voltando sobre si mesmo num Todo único e idêntico, pôde nascer indissolúvel graças a qualquer outra potência que não é o que o uniu». [Tim 31b-32c]

3.Totalidade, Integridade, Singularidade: O Cosmos é um Todo formado por partes perfeitas. Está completo no sentido em que contém o Todo em cada um dos elementos existentes. Portanto, é único e perpétuo, uma vez que não há nada com que outro cosmos possa ser feito, e não há nada externo que o possa destruir ou fazer perecer.

A organização do mundo absorveu a totalidade de cada um destes quatro corpos. O seu construtor, de facto, o compôs de todo o fogo, de todo o ar, de toda a água, e de toda a terra, e não deixou de fora do mundo nenhuma parte de nenhum elemento, nem nenhuma qualidade. E assim o combinou, primeiro, para que o Todo pudesse ser, tanto quanto possível, um ser vivo perfeito, formado de partes perfeitas; em segundo lugar, para que pudesse ser único, sem nada mais que pudesse nascer outro ser vivo da mesma espécie; e finalmente, para que pudesse estar livre da velhice e da doença.

… Eis o que causa e segundo o cálculo o Deus moldou esse Todo único, com a ajuda de absolutamente todos os Todos, e o tornou perfeito e inacessível à velhice e à doença. [Timeu, 32c-d]

4. Forma perfeita: Deus deu ao cosmos uma forma esférica e circular, a forma mais perfeita e semelhante a si mesma e ao paradigma que serviu como modelo. A forma esférica do cosmos também contribui para a sua divindade. Todos os sólidos regulares podem ser inscritos na esfera, e o cosmos, sendo esférico e circular, é unificado ao máximo, ou seja, imita o Um, a mente cósmica e demiurgo, e torna-se divino.

Quanto à sua figura, deu-lhe a que melhor lhe convém e a que tem afinidade com ele. De facto, para o ser vivo que deve envolver todos os seres vivos em si, a figura que lhe convém é a figura que contém em si todas as figuras possíveis. É por isso que Deus formou o mundo de forma esférica e circular, com distâncias iguais em todas as partes, desde o centro até às extremidades. Esta é a mais perfeito de todas as figuras e a mais integralmente semelhante ao si mesma. Pois Deus pensou que o semelhante é mil vezes mais bonito do que o contrário. [Timeu, 33b]

 

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