Pode-se filosofar a propósito de tudo quanto desperta a nossa admiração ou provoca a nossa dúvida. É sempre possível e válido dar um enquadramento filosófico aos projetos que empreendemos e, em particular, a este que aqui nos propomos descrever.
É difícil estabelecer a natureza do Caos, pois sofreu várias interpretações e mudanças. O seu nome tem origem no verbo grego χαίνω que significa “separar”, “ser amplo”, e expressa assim o espaço vazio primordial.
No projeto aqui descrito encontraremos Caos no ruído. O ruído é um som de natureza caótica, sem uma ordem, como se fossem diversos sons misturados num único, alguns mais longos e outros mais curtos, uns mais graves e outros mais agudos.
A categoria de ruído que procuramos é o denominado ruído branco, por referir-se a sons que mascaram outros sons que podem ocorrer naturalmente num ambiente. Usaremos uma fonte simples e acessível de ruído branco, um recetor de rádio FM sintonizado numa frequência não preenchida pela emissão de qualquer estação de rádio.
No processamento de sinais o ruído pode ser entendido como um sinal aleatório. Em processamento de sinal, o ruído branco é um sinal aleatório com igual intensidade em diferentes frequências, o que lhe dá uma densidade espectral de potência constante.
Conjeturemos um mecanismo informático gerador, através de um processo que teoricamente será verdadeiramente aleatório, de sequências de zeros e uns ou binárias.
Para gerar números verdadeiramente aleatórios é necessário o uso de processos absolutamente não-determinísticos. Importa lembrar que os sistemas informáticos atuais baseiam-se totalmente em procedimentos determinísticos; por esse motivo geradores de números aleatórios baseados unicamente em algoritmos computacionais apelidam-se de geradores pseudoaleatórios.
Em sânscrito, o termo para o zero é shúnya. Como substantivo, shúnya refere-se ao nada, ao vácuo, à inexistência. No budismo e no taoísmo, o zero representa o vazio anterior à criação; no islamismo é a essência da divindade.
O zero é, muitas vezes, associado a um círculo, contendo dentro dele todos os demais números e suas implicações. É a origem de todos os números, a divindade que cria. Comparativamente, Caos foi considerado por Hesíodo, o maior representante da antiga cosmogonia grega, como a primeira divindade a surgir no universo, portanto o mais velho dos Deuses, também conhecidos como Deuses primordiais. Caos representava, ao mesmo tempo, uma forma indefinida e desorganizada, onde todos os elementos se encontravam dispersos, e uma divindade rudimentar capaz de gerar. É possível, por conseguinte, encontrar semelhanças entre o zero e Caos.
Ao contrário de 0, que é feminino e recetivo, o número 1 possui uma energia masculina e uma força ativa e criadora. Em religiões monoteístas, o número 1 representa Deus. Ele simboliza a união de forças e o direcionamento de energias. Para os pitagóricos a unidade, 1, simbolizava a harmonia, a ordem ou o princípio do bem (o Deus único, o símbolo da Divindade). No pitagorismo o 1 não era um número. Os números representavam a multiplicidade e o 1 era a antítese disso. O 1 era a própria unidade. Comparativamente, a tradição mitológica grega mais antiga apresenta Eros, deus grego do amor, como força ordenadora e unificadora. Hesíodo, na sua Teogonia, considera também Eros, um deus primordial. Além de o descrever como sendo muito belo e irresistível, atribui-lhe também um papel unificador e coordenador dos elementos, contribuindo para a passagem do caos ao cosmos, ou seja, ao mundo organizado.
Tendo sugerido correspondências do zero/0 com Caos e da unidade/1 com Eros, pretendemos, com este projeto, percorrer o caminho que separa estes dois pólos, ou seja, ir de um estado indefinido e desorganizado representado por Caos à ordem induzida por Eros.
Presente em praticamente todos os sistemas operativos Microsoft Windows, a livraria multimédia de apoio ao programador “winmm.dll” disponibiliza uma função áudio de baixo nível denominada “mciSendString”. Esta função permite a gravação de um ficheiro formato WAV contendo uma recolha áudio proveniente do dispositivo de gravação definido por defeito no sistema informático, normalmente uma porta microfone.
A função “mciSendString”, ao ser invocada, permite definir a frequência da amostragem do ficheiro WAV. Numa situação real, com a frequência da amostragem a cifrar-se nos 11025 hertz e cada amostra a corresponder a 1 byte de informação e para um período de escuta de, a título simplificativo, 64 segundos, será disponibilizado ao software um conjunto de 11025×32=705600 bytes de informação.
O nosso mecanismo informático deverá gerar, com base no ruído branco produzido pelo recetor de rádio FM, bits e não bytes. No sentido de maximizarmos a aproximação ao ideal do verdadeiramente aleatório, para cada byte disponibilizado ao software somente o bit menos significativo será utilizado, ou seja, o bit mais sensível.
Seguidamente pode ser visualizada, a título exemplificativo a representação na base 2 e na base 10 do número 162. Apenas o bit mais à direita, o mais sensível, no caso 0, será utilizado na etapa seguinte.
Base 2 | 1 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | |
Base 10 | 1×27 | + 0x26 | + 1×25 | + 0x24 | + 0x23 | + 0x22 | + 1×21 | + 0x20 | = 162 |
Na posse do conjunto de 705600 bits de dados, a fase seguinte do ciclo de processamento poderá ser tão simples quanto separá-lo sequencialmente em cadeias de, por exemplo, 32 bits cada. Cada cadeia poderá então ser convertida para um número na base 10 pertencente ao intervalo entre 0 e o maior número representável por 32 bits, ou seja, a cadeia de 32 1’s. Ao dividirmos o nosso número pela cadeia de 32 1’s, ou seja, por 232-1=4294967295, obtemos um valor fracionário, compreendido entre 0 e 1, que pode ser representado em formato decimal.
Do mesmo modo que Hesíodo atribui a Eros um papel unificador e coordenador dos elementos, contribuindo para a passagem do caos ao cosmos, também este mecanismo é capaz de organizar o nosso conjunto em sequências, por exemplo, de 32 elementos individuais, categorizá-los pela posição dos elementos diferenciadores, os 1’s, e finalmente uni-los num só valor.
Continuando a descrição do mecanismo com base na situação real exemplificada, o ciclo de processamento disporá nesta etapa de 705600/32=22050 valores decimais aleatórios, com uma distribuição tendencialmente uniforme entre 0 e 1. Emparelham-se então os 22050 valores obtendo-se 11050 pares.
Os 11050 pares de valores podem ser visualizados como coordenadas num sistema cartesiano onde o primeiro elemento do par será a abcissa, habitualmente representado pela letra x, e o segundo elemento do par a ordenada, habitualmente representado pela letra y.
Se no Caos tudo está diluído, Eros é a força que produz a união e a composição dos corpos. Este emparelhamento de valores pode, mais uma vez, ser enquadrável nos princípios personificados por Eros, deus cujo nome significa amor.
Na matemática, um ponto do plano pode ser representado em coordenadas cartesianas ou em coordenadas polares. As coordenadas polares são um sistema bidimensional em que cada ponto é determinado por uma distância e um ângulo em relação a um ponto fixo de referência. O ponto de referência, análogo à origem ou par (0,0) no sistema cartesiano, é chamado de pólo. A distância a partir do pólo, frequentemente denotada por r, é chamada coordenada radial ou raio, e o ângulo, frequentemente denotado por θ (theta), é chamado coordenada angular.
Para toda esta mecânica produzir o efeito específico ou consequência desejada, obrigatoriamente terão de ser estabelecidas diferenciações ou, em outras palavras, os 11050 pares de valores terão de ser classificados. Esta específica classificação organiza os pares de valores, expressos em coordenadas polares (r, θ), em dois grupos, que designamos por E e I, com base na coordenada radial de cada um:
Grupo E = {(r, θ) tal que r>1} e grupo I = {(r, θ) tal que (r, θ) não pertence a E}
A figura 8 revela que a área do quadrado definido pelas fronteiras dos conjuntos E e I iguala a unidade. Também é percetível que a área definida pelas fronteiras do conjunto I iguala ¼ da área de um círculo, que representaremos por A(C), centrado na origem (0,0) e de raio unitário. Convencionando A(E) e A(I) como representações simbólicas das áreas definidas pelas fronteiras dos conjuntos E e I, podemos fazer as seguintes deduções:
A(E) + A(I) = 1 ⬄ A(E) + A(C) / 4 = 1 ⬄ A(C) / 4 = 1 – A(E) ⬄ A(C) = 4 (1 – A(E))
Este resultado mostra que ao estimarmos A(E), a área definida pelas fronteiras do conjunto E, estaremos a estimar A(C), a área do círculo de raio unitário!
Então, como estimar A(E)? Voltando à situação real exemplificada; porque os 11025 pares de valores estão aleatoriamente distribuídos pelo quadrado representado na figura 8, se dividirmos o cardinal do conjunto E por 11025, obtemos uma estimativa para A(E)!
É esta a etapa final do nosso mecanismo informático! A área do círculo de raio unitário representa-se com a décima sexta letra do alfabeto grego; π e lê-se Pi.
Historicamente, esta metodologia, aqui com as devidas adaptações, usando pares de valores decimais aleatórios, ambos com distribuição tendencialmente uniforme entre 0 e 1, é denominada, nos meios estatísticos, método de Monte Carlo para estimação de Pi.
Relembremos então pi ou constante circular: Pi representa a razão entre o perímetro de uma circunferência e o seu diâmetro. Pi é classificado pela matemática como um número irracional e transcendental. Irracional porque não pode ser representado por uma fração de dois inteiros e transcendental porque não é raiz de nenhuma equação polinomial de coeficientes racionais.
A transcendência desta constante é causa da não existência de solução para um dos mais famosos problemas geométricos da antiguidade, a quadratura do círculo!
Para além da transcendência matemática, a inexistência de solução para a quadratura do círculo desperta a mente filósófica para o simbolismo sagrado de pi, essa constante que relaciona duas das mais elementares formas arquetípicas, o quadrado e o círculo. O Prof. José Carlos Fernández, em O número Pi: 3,14159, revela-nos a simbologia que as antigas civilizações atribuíram a este número; aprendamos, então, a decifrar esse número chave nestes breves excertos do seu artigo:
“Na Matemática das Antigas Civilizações, PI é a origem das medidas, …, é o símbolo numérico da energia criadora (formadora), sustentadora e destruidora que rege a natureza em todos os seus planos. É um dos Números Sagrados, que expressa a irrupção do espírito na matéria, ou a cristalização em formas do indefinido, a relação entre o conhecido e o desconhecido (entre o um e o outro), entre o limitado e o ilimitado, entre o Ser e o Existir, entre a unidade e a multiplicidade, entre o permanente e o efémero, o homogéneo e o heterogéneo, …, entre o curvo e o recto: naturezas sempre dissemelhantes e irreconciliáveis. Em todas as Escolas Esotéricas de todos os tempos foi conhecido como o número chave do Movimento na Natureza, ou seja, símbolo do seu dinamismo, que nasce sempre da contradição entre estes eternos pares de opostos que mencionámos. Para estes sábios, PI, a relação não «satisfeita» entre a circunferência (com o qual todas as teogonias se iniciam), e o duplo diâmetro, é o que origina o primeiro movimento… Dizemos relação «não satisfeita» entre a circunferência e o diâmetro porque PI não se pode expressar como um número racional, como uma fracção simples, como uma relação numérica. Os infinitos decimais que se apresentam numa dança «aleatória» são a dança da própria vida, o perpétuo solve et coagula da Natureza e que a Alquimia estuda.”
Com um enquadrado filosófico e mitológico, preponderantemente baseado em passagens com origem na obra poética Teogonia de Hesíodo, a edificação de todo este processo, que intitulamos “Do Caos ao Transcendente”, partiu da diferenciação aleatória mais elementar que é possível conceptualizar; o sistema binário!
Fica, para concluir, esta frase que pretende ser a síntese de todo o artigo:
“Dá-me à sorte inúmeros 0’s e 1’s e eu te darei Pi!”