Isto é ainda mais surpreendente, porque o quadrado mágico que preside a pintura, sob o sino imóvel, é o de Júpiter, e não o deste Deus, que seria, talvez, mais apropriado. É o mesmo quadrado mágico de Júpiter que vemos na catedral de Gaudí em Barcelona.
O ano de composição foi 1514, pois aparece ao lado do selo do autor, abaixo, no lado direito (números que também surgem no dito quadrado mágico na última fila).
Todos os elementos, símbolos, que aparecem no quadro, são, de fato, da irradiação e do poder de transformar a realidade própria do Deus Júpiter, que é o Logos, ou intérprete dos desígnios do Destino nas ações, na forma, na vida, num plano e obra que devem ser executados fielmente. Como diria Giordano Bruno, Júpiter é a alma intelectiva, ou “alma que reencarna” (Manas) das tradições teosóficas: o rei, o capitão da embarcação que a guia para o bom porto, a razão superior e ordenante e, ao mesmo tempo, aquela que a impulsiona para a frente. Mas, precisamente, a melancolia, regida por Saturno, e além do cetro ou ação de Júpiter (mesmo como planeta) é o que paralisa toda ação, o tempo é suspenso, as ferramentas de trabalho no chão e desordenadas; o cão, em vez de acordar e observar, dorme; o anjo ou inspiração que traça as medidas dos Sonhos para que sejam então executados, imóveis e franzidos a testa; o cubo que é a sede ou trono, ou altar de Júpiter, truncado e deformado (na forma de um romboedro truncado); ninguém sobe a escada até ao topo, o cadinho arde no fogo sem que nele se derrame qualquer metal, o equilíbrio não é pesado e preguiçoso, dorme em equilíbrio, o badalo do sino não bate no seu metal sonoro, o putti da música, vagueia, o lago ou o mar não respira as suas ondas de prata e esmeralda, A esfera encontra-se imóvel no chão. Não sabemos se a areia do relógio cai ou não, só que, a julgar pelo que se vê, chegou ao meio do seu percurso, meio pitagórico, um momento de pausa ou descanso, e mesmo com risco de morte, o mesmo da sexta hora em Roma (apenas o Sol no Meio do Céu) que dá a etimologia da palavra “sesta”.
Então, o que significa o quadrado mágico de Júpiter? Podemos interpretá-la como a presença deste Deus, que governa o poder vital, mas que é anulado pela melancolia. Ou, talvez, pelo contrário, que ele está lá para exorcizá-lo, para devolver vigor e movimento à cena. Embora eu incline mais para a primeira interpretação.
O que sabemos é que o cometa é o único que está em movimento, com tudo o que isso implica. E talvez, simbolicamente, essa seja a chave. O cometa indica que a hora soou, que a hora de semear, de fazer, e até de colher, já chegou ao seu fim. Um conceito semelhante ao da 25ª hora do poeta e escritor romeno Virgil Georghiu. Tudo o que se faça a respeito é inútil, assim como nenhuma tentativa de dar vida a um cadáver é inútil, mesmo que sejamos capazes de mover galvanicamente os seus membros. E esta é a causa de tamanha melancolia. Não é o pôr-do-sol do Sol, que precedeu o entardecer, faz com que o gado volte ao seu rebanho, que as ferramentas sejam salvas e que as obras sejam gradualmente concluídas, uma vez que o próprio Sol descansará. Não! É o cometa, que ninguém sabia que viria, como a espada de um Deus justo, como a morte, ou o anúncio dela, que vem quando ninguém espera, e embora possa ser feito, e criar e transformar o mundo ao nosso redor, que sentido tem já fazê-lo, ou que sentido tem já divertir-se, brincando, quando este chega… É a quintessência da melancolia, anunciada aqui pelas asas abertas de um morcego, um animal muito apropriado para a ocasião.
Mas, dada a natureza desta revista, vamos concentrar-nos mais nos elementos da sua matemática e geometria:
1. A figura de maior tamanho da cena alegórica é um cubo truncado, em perspetiva, e daí, os seus ângulos são deformados; ou então diretamente um romboedro truncado. O ângulo em que o faz é de 108º, e 72º (ângulos que definem o pentágono regular) e 126º.
O cubo ou altar é o trono do Deus na mentalidade antiga (e ainda falamos da cadeira ou pedra cúbica em que o professor se sentava para ensinar suas lições). O facto de ser levantado, girado e truncado talvez signifique que a ação de Júpiter, a ação vital do Logos, detém-se, permanece em suspensão.
O diagrama que forma a projeção desta figura sobre o plano é surpreendente, pois é a estrela de seis pontas dentro de um hexágono, formando o chamado “gráfico de Dürer”, símbolos de Vishnu na Índia, como o poder transformador e conservador da Natureza.
Ver detalhes nas páginas seguintes:
https://mathworld.wolfram.com/DuerersSolid.html https://web.archive.org/web/20100215034300/
http://www.uclm.es/aB/magisterio/ensayos/pdf/revista3/r3a15.pdf
2. A esfera, símbolo da perfeição absoluta, e que deve ser levada até o topo, jaz no chão, imóvel.
3. A Escadaria dos Sete Passos é um símbolo da estrutura septenária da realidade, à qual já dedicamos vários artigos nesta revista. Os sete planos da natureza ou elementos pelos quais ela passa, e dos quais o Ser-Esfera está revestido, mas, neste caso, ninguém sobe através dela.
4. O cone duplo, formado pela ampulheta, é a matriz de todas as figuras chamadas cônicas: espiral, elipse, circunferência, parábola e hipérbole.
5. O equilíbrio, símbolo da dualidade, e de tudo o que é dual (masculino-feminino, espírito-matéria, razão-sentimento, etc.) e também do número seis pelos dois triângulos equilibrados que seguram seus pratos, e mesmo de 4 (o Quadrado da Justiça Perfeita ou Harmonia pela Oposição), no meio dos sete números, tentando harmonizar os de cima com os de baixo.
6. O compasso, que além de medir distâncias e ângulos e desenhar círculos, está aberto a 36º que é o triângulo do pentágono estelar e que estava associado à mente divina.
7. O cometa forma com o horizonte um ângulo de 45º que define o triângulo retângulo isósceles, ou seja, 1, 1 e √2 com todos os seus fatídicos significados pitagóricos e platónicos, como um triângulo que traça o quadrado da matéria, além de ser o primeiro irracional. Um bom ângulo para marcar destino e consumação.
8. A semi-circunferência de um arco-íris, outro dos símbolos de “chegou a hora”, embora isso seja interpretado mais como um bom presságio.
9. O Quadrado Mágico de Júpiter, números 4 x 4, e que analisaremos em detalhes na próxima edição da revista.
Tal como Leonardo da Vinci, o seu homólogo nascido em Nuremberga no génio e na pintura, atribuiu enorme importância à Geometria Sagrada, aos Sólidos Platónicos e aos significados filosóficos que contêm. E nesta alegoria, que retrata a melancolia que devora o presente e, portanto, a vida, descobrimos a importância de não parar, de não abandonar e assim empreender a ação justa e necessária, sabendo que em algum momento o cometa, como emissário de um superior e sublime, dirá que chegou a hora, que o combate entre Hórus e Seth deve ser interrompido, até uma nova ocasião.
José Carlos Fernández
Lisboa, 30 de Março de 2023