Há uns meses atrás, tivemos a oportunidade de anunciar a publicação do livro “Viagem Iniciática de Hipátia”. Hoje temos o prazer de oferecer aos nossos leitores uma entrevista com o autor:
1. Uma civilização…. É um ser vivo?
Sim, claro, como uma árvore, ou um rio, que às vezes se estagna e quase morre para renascer; ou como uma montanha. Ou melhor ainda, como um ser humano com os seus conglomerados de inúmeras células, para além da sua organização e unidade de destino.
Uma civilização sempre nasce como uma semente de almas escolhidas com uma força anímica enorme e uma forte projecção histórica. Nasce como um impulso espiritual (no sentido mais profundo e menos “religioso” desta palavra) dentro da trama viva de uma cultura e uma tradição. Cresce procurando a luz do sol do seu Ideal, desenvolve-se superando as mil vicissitudes que deve enfrentar, floresce, dá a sua mensagem de beleza e os seus frutos ao mundo; envelhece, deteriora-se moralmente na sua debilidade e finalmente morre… talvez para renascer novamente, com outro nome e forma, numa nova terra e sob um céu diferente. Essa é a história da Humanidade, se a observarmos com olhos de Filósofo, quando somos capazes de perceber uma ordem natural no caos aparente que a sucessão dos acontecimentos passados pressupõe.
2. No seu romance, reflecte uma época em que os interesses egoístas e materiais são colocados à frente dos valores filosóficos e morais. Foi realmente assim? Não é uma forma velada de criticar a nossa época?
São os ciclos da vida, o Sol de uma civilização começa a morrer e as sombras crescem. Roma também morreu porque deixou de outorgar os benefícios da civilização e converteu-se numa sociedade de consumo que devorava os frutos do mar, da terra e dos céus, cada vez mais débil moralmente.
Por outro lado, não é necessário criticar a nossa época, basta examinar os interesses que nela primam e a sucessão de acontecimentos. Quando uma civilização cresce e se expande sonha com o seu futuro, e trabalha para ele. O presente é um ponto de apoio nada mais, para dar vida ao seu Ideal. Na sua decadência, refugia-se em fantasias e não consegue imaginar o que há mais além, trabalha para um presente que tudo consome e o futuro fica órfão.
Seria interessante perguntar às pessoas como imaginam o futuro daqui a 50 ou 100 anos, por exemplo.
3. Para além de Hipátia, parece que o protagonista do livro é a “Sabedoria dos Mistérios”, da qual se fala mais do que dela própria. O que são esses Mistérios? Como conhecê-los se estão ocultos?
As Escolas de Mistérios, Maiores ou Menores, sempre foram o coração de toda a forma civilizatória, de onde se impulsionava toda a mística e religião, toda a forma artística e política, de onde se geravam os paladinos do seu tempo em todas as áreas de conhecimento e trabalho. Tinham um programa para poder desenvolver, como diz Confúcio, o princípio da Razão Celestial presente no ser humano; ou, como diz Platão, abrir os olhos da Alma para um mundo arquetípico. Aqueles que eram educados nestas Escolas reencontravam-se a si próprios, despertavam o mais profundo e autêntico da sua verdadeira natureza, conseguiam selar um pacto com o seu próprio destino, examinando a vida a partir de uma dimensão muito superior ao que é comum.
As Escolas de Mistérios eram ao mesmo tempo Universidades, Templos nos quais se rendia culto à Alma da Natureza e às Casas de Fraternidade e vida.
4. Hipátia investigava a luz. O que sabiam os antigos sobre a luz que nós não sabemos, o que medimos da sua velocidade?
Medir a sua velocidade, coerência e propriedades ópticas é importante, mas talvez não seja tudo. Também na Índia Védica se mediu a sua velocidade com grande precisão, embora não saibamos como. Talvez os filósofos alexandrinos soubessem mais sobre a natureza e o significado da luz do que nós agora. Por exemplo, desde quando se sabe que os seres vivos irradiam luz, e não apenas refletem a que vem do Sol? Ou, por exemplo, já na Índia e no Tibete se ensinava que o maravilhoso espetáculo de luz das auroras boreais vinha da electricidade (Fohat) precedente do Sol que viajava pelo espaço e penetrava nos polos da Terra, ou que na quintessência da luz desaparecem o tempo e espaço (tal como nos ensinaram depois Tesla, falando sobre os relâmpagos, e Einstein com a sua Teoria da Relatividade).
5. O que é a Aritmosofia? O que são os números?
Os números são cristalizações da mente, tudo o que é inteligível é-lo através dos números e das sombras geométricas que projectam.
Os grandes matemáticos, como Paul Erdós no século XX, falam-nos desta dimensão eterna e pura, real dos números, sempre os mesmos, que nem nascem, nem mudam, nem morrem, mas que traçam o tecido de toda a vida e são o esqueleto de todas as leis da natureza. Segundo Platão, regem o tempo (a quem o Filósofo da Academia define como “o número em movimento”) e os seus ciclos, são as Formas Divinas que penetram na caverna do mundo, tornando o caos inteligível, convertendo-o em Cosmos.
A Aritmosofia, tal como por exemplo foi ensinada pelo padre jesuíta Athanasius Kircher, busca penetrar na sabedoria desses Números e nas suas propriedades, de acordo com o ensinamento do filósofo Porfírio, que dizia que toda a operação no seio da Natureza é a sombra de uma operação numérica e geométrica.
6. A Grande Pirâmide, diz no seu livro, é “o maior tratado matemático jamais escrito pelo homem … a sua antiguidade é quase cem mil anos”. Que Pirâmide é esta que gera tanta polémica e discussão sobre como e quando ela foi construída?
Segundo certas tradições herméticas, a Grande Pirâmide é muito mais antiga do que se acredita, e quando lemos a origem que é-lhe atribuída por Heródoto (e na qual se baseiam os historiadores) não podemos deixar de sorrir com a sua ingenuidade.
A Grande Pirâmide não é apenas a maior obra de engenharia que existe (pela sua magnitude e sobretudo precisão, ou se não bastasse, recordemos as propriedades ópticas das pedras calcárias de cobertura), mas o maior tratado matemático alguma vez escrito. Quanto mais cresce a nossa ciência, mais se amplia a nossa compreensão deste mistério encarnado inteligível que é a Grande Pirâmide. Agora, por exemplo, são os engenheiros acústicos que estão a maravilhar-se perante as suas propriedades.
7. Hipátia, nas suas viagens, esteve em Heliópolis. Parece que foi uma universidade de teologia e matemática. Ao mesmo tempo?
Não há referências históricas de que Hipátia tenha estado em Philae ou em Heliópolis, mas é bastante lógico e natural que na sua juventude – e dado o interesse do seu pai em dar-lhe uma educação excepcional – ela tenha visitado os ainda abertos santuários do Nilo, onde tanta sabedoria era zelosamente guardada.
Para a filosofia egípcia, Teologia e Matemática são praticamente sinónimos, já que os primeiros Deuses são os Números: e por exemplo, em Heliópolis, a Enéada Divina são os Números de um ao nove, conforme mostrado no Côvado Real de Menfis, guardado no Louvre.
Nós usamos os números para governar o mundo, eles faziam-no para tornar inteligível o Mistério, para penetrar nele com estes barcos numéricos, para viver plenamente a realidade e não apenas através dos sentidos.
8. Diz no seu livro: “Se um iniciado chegasse a Alexandria e explicasse os maiores segredos, as pessoas ficariam totalmente decepcionadas”. O que aconteceria se ele chegasse a Barcelona hoje?
Um Iniciado desenha conscientemente um círculo ou triângulo equilátero e toda a sua alma vibra, como um gongo, pois ambos falam da presença silenciosa de um arquétipo, de um mistério. Por exemplo, a circunferência é o símbolo da “eternidade dinâmica” sem princípio nem fim, e o próprio Deus nada mais é do que uma circunferência cujo centro está em toda parte.
E, no entanto, a nós, isso pouco nos diz. Talvez nos sugira ou sussurre algo para a nossa alma quando somos capazes de parar a mente e detê-la nesta verdade sublime, mas é um murmúrio que se confunde com as vozes dos nossos pensamentos vulgares e cotidianos.
Um Iniciado, em Alexandria há 1700 anos ou em Barcelona hoje, deveria adaptar o seu entendimento ao nosso, ensinar-nos com paciência o alfabeto que permite a vivência destas verdades sublimes. Em última análise, este é o grande esforço e grande paciência de almas gigantes como Platão, Avicena ou Giordano Bruno, ou a própria Hipátia. Apenas que, desta última filósofa carecemos de obra escrita (há eruditos que afirmam que o texto actual das Cónicas de Apolónio de Pérgamo poderia ser desta filósofa, mas é difícil de sabê-lo).
9. As duas condições básicas para percorrer o Caminho da Sabedoria são “bom senso e sentido de humor”. Simples assim?
Condições básicas no sentido de “sine qua non”, ou seja, “nunca sem elas”, é a base sem a qual o Caminho da Sabedoria se transforma num lamaçal no qual nos afundamos. Depois vem um passo e depois outro; e enfrentar-se com situações complexas e trágicas sem perder o bom senso e o bom humor…
Em todo caso, é fácil bater uma pedra contra outra e produzir um som, e nem tanto dirigir uma orquestra sinfónica, o mesmo acontece com os poderes da alma e da inteligência. O senso comum do animal (comer, reproduzir, sobreviver) e a sua simples felicidade tornam-se mais difíceis quando se penetra no invisível dos sentimentos e no labirinto da mente, que, seja como for, dada a nossa natureza, devemos percorrer.
Por outro lado, observamos todos os dias, em nós próprios e nos outros, que não é tão fácil manter o bom senso nem nas pequenas nem nas grandes coisas. Todos sabemos, quando o meditamos bem, que primeiro é o Amor, ou seja, a integridade da alma com a sua mais pura luminosidade; depois vem a saúde e só então o dinheiro e os bens materiais: somos sempre fiéis a esta verdade, simples e do mais elementar bom senso, quando pensamos nela?
10. Hipátia pôde ler os manuscritos de Platão, e em Roma ela era discípula de Plutarco, parece uma linha de filósofos que vão transmitindo algo…
A luz existe em toda parte, mas apenas o fogo transmite e desperta o fogo adormecido. Esta é uma verdade simbólica profunda: podemos aprender e iluminarmo-nos com os ensinamentos de todos os sábios que já estiveram no mundo, mas só se acende interiormente aquele que tem esse fogo, porque ninguém pode dar o que não tem. E apenas esse fogo é capaz de transmutar internamente. Quando alguém é empurrado, muda de posição, mas quando há transmutação há uma mudança profunda, uma mudança de estado da alma: algo que os filósofos indianos nos seus Upanishads compararam com a transição das trevas para a luz ou do sono para a vigília ou da morte para ressurreição, para a imortalidade.
11. O que quis dizer Plutarco com “os arquétipos podem ser vividos”?
Quando apertamos as mãos, com toda a alma e sinceridade podemos “viver” nesse gesto o arquétipo da amizade e da doação, com um beijo podemos viver esse gesto que é um símbolo e um rito do arquétipo do Amor. A Teurgia antiga, cujos restos, um pouco deformados e quase sem vida, já encontrámos nos rituais de todas as religiões, era uma Ciência Sagrada e uma Arte que permitia a vivência dos Arquétipos através do rito, e usando, como intermediários, génios e espíritos da natureza.
12. O seu romance oferece um contraste profundo entre a paz dos sábios e discípulos nos seus templos e o caos da queda do Império Romano, com a sua violência e corrupção. Não deveriam aqueles sábios preocupar-se com o mundo em vez de se envolverem em abstrações geométricas?
Talvez esse tenha sido o seu erro e a Idade Média precipitou-se mais sombria e terrível do que o necessário. No meio da tempestade, o capitão de um navio, mais do que definir a sua direcção através das estrelas, deve tentar que este se mantenha à tona. As Escolas de Filosofia, ao se distanciarem da poderosa turbulência histórica e social, geraram um vazio que foi preenchido pelo mais degradante fanatismo religioso.
13. Parece que o seu romance, juntamente com o filme “Ágora” de Amenábar e outras obras muito interessantes que se concentram nessa época, precisa recriar essa etapa da humanidade para dizer algo aos seres humanos do presente. Porquê essa época?
A natureza humana é a mesma, a situação de crise de uma civilização também é muito semelhante, o mesmo é o agravamento de todos os tipos de alucinações coletivas (fim do mundo e todos os tipos de profecias desnaturalizadas e fora de contexto), fanatismo, miséria física e moral. A Ágora de Alexandria no tempo de Hipátia é muito parecida com a actual, a primeira crise é sempre de valores, a crise económica – como aconteceu também em Roma – é aquela que depois arrasta toda a lama.
14. É verdade que havia conhecimentos da Índia ou do Tibete em Alexandria?
Sem dúvida, muitos filósofos e ascetas da Índia ensinaram em Alexandria, tendo sido chamados de gimnosofistas. Até as obras de Confúcio, o grande sábio chinês, chegaram a Roma, e isso só poderia ter sido via Alexandria.
15. “O prémio atribuído pela divindade à filosofia é o infortúnio”. Porquê? Acredita que Hipátia foi feliz ou infeliz?
Considero, como Séneca, que o sábio é sempre feliz, porque é uma rocha sólida diante dos embates da fortuna. E, no entanto, o homem sábio jamais nega a vida, nem deixa de responder à menor das suas vibrações, cada uma das quais encontra um eco na sua alma. O ignorante talvez seja feliz na sua inconsciência, o sábio na sua virtude estável e poderosa, enquanto que o filósofo é consciente dos seus erros e falhas e passa a aceitar os daqueles que o cercam, pois sente-se responsável por eles, como um pai é responsável pelos seus filhos; também não pode, sem desmerecer-se aos próprios olhos, refugiar-se na trincheira das crenças pré-estabelecidas e no confortável vazio do não pensar. Tudo isso o torna mais sensível aos infortúnios do mundo e, como diz o tratado místico Voz do Silêncio, é no seio dessa dor que nasce a “flor da meia-noite”, a sabedoria que é ao mesmo tempo serena compaixão por todos aqueles que sofrem.
16. A consciência histórica dos personagens é surpreendente, eles sabiam que viviam uma época triste, mas também sabiam que uma idade média e um renascimento se aproximavam! …
Sim, claro, eles próprios e a sabedoria que carregavam como um fogo eram a prova e a garantia de um renascimento depois da noite de ignorância e fanatismo da Alta Idade Média.
17. A “Mestre Hipátia” acreditava numa amizade baseada na irmandade de almas e não na afinidade de caracteres. Como isso seria possível?
A afinidade de caracteres é confortável, embora não acrescente muito. A irmandade das almas é a matriz das mais puras vivências, é transcendente, deixa marcas indeléveis e sempre vai mais além, vence a morte e dá um verdadeiro sentido à vida.
18. Dedicou o livro à sua Mestre, que é “o que foi Hipátia para os seus discípulos”. Restam “hipátias” no mundo? Restam “platões”, “sócrates” ou “plutarcos” em algum lugar?
Se não existissem, duvido que pudesse ter escrito este livro. Ele nasceu como uma homenagem e uma dádiva de gratidão diante de tal caudal de vivências, generosidade, bondade, exemplos morais e de coragem no qual se desenvolveu a minha juventude e nutriu, e nutre, a minha alma. Estas Hipátias, Platões e Sócrates são o “sal da vida” e a “luz do mundo”, sem elas a Humanidade ficaria órfã … e não, não está, há uma Mão que a abençoa e protege, há uma Sabedoria que a chama e espera; e, quem sabe, a História e as duras vicissitudes que enfrentamos agora assinalem o regresso das Escolas de Filosofia…
Publicado na revista Esfinge em 5 de Janeiro de 2011
Um livro de grande profundidade e beleza, dos melhores que já li. Parabéns ao autor.