Os diferentes acordes e a sua evolução, completamente dependentes dos números que geram as diferentes notas musicais, exprimem todo um mundo de emoções, e como explica muito pedagogicamente Jaime Altozano, os acordes maiores soam triunfantes e alegres (solares), os menores tristes (lunares), os diminuídos soam tensos e os aumentados, misteriosos.
Noutras palavras, o número é expresso como forma (ver as experiências da placa de Chadwick, ou as curvas de Lissajous) e como emoção, tornando assim possível vincular o mundo arquetípico divino com a vida que flui incessantemente, como as águas de um rio.
As diferentes vibrações do ar que o ouvido capta, em proporções matemáticas, transformam-se em todo um universo de emoções e sentimentos graças à ação taumatúrgica do génio musical. E como diria Mendelssohn, quando confrontado com a objetividade da linguagem verbal e a subjetividade da linguagem musical, ele responderia que não há nada mais objetivo do que a linguagem musical e o que ela gera e permite expressar.
Falar de Richard Wagner é falar de um titã, como Prometeu, trazendo o fogo dos deuses aos meros mortais. E a Tetralogia é talvez o hino mais gigantesco e até complexo alguma vez composto, tanto nas suas formas musicais como literárias (também sublimes, tanto quanto a imponência e encanto enfeitiçante das suas notas). Hino não apenas pelo deleite da sua beleza imortal, mas como uma oração ao Sagrado, evocando a vida dos Deuses (da religião germânica, com todos os seus significados ocultos). Uma oração ao sagrado que expressa os mistérios da natureza e da vida, com a duração de cerca de quinze horas, e que nos transporta para um mundo inefável.
O musicólogo Deryck Cooke (1919-1976) estudou a metafísica musical desta gigantesca obra através dos seus leitmotive. Em I saw the world end: A study of Wagner Ring apenas desenvolveu exaustivamente O Ouro do Reno (Das Rheingold) e As Valquírias (Die Walküre), pois a sua morte precoce frustrou o fim desta obra, também ela colossal. Felizmente, temos a sua Introdução, com cerca de sessenta páginas, que podemos encontrar e ler aqui.
E que, felizmente, também podemos ouvir aqui:
Referindo-se a esses leitmotive, que formam o tecido musical e emocional da Tetralogia, ele diz:
“Para trazer unidade a esse vasto esquema, Wagner construiu a sua partitura a partir de um número de temas recorrentes, cada um associado a algum elemento do drama e desenvolvido em conjunto com esse elemento ao longo da obra. Esses temas, ou motivos condutores, como foram chamados, não são meros rótulos de identificação; a partitura também não é um simples mosaico composto pela introdução de cada motivo no ponto apropriado da ação cénica. A própria descrição de Wagner dos seus temas era ‘momentos melódicos de sentimento’ e escrevendo antecipadamente sobre as suas intenções, ele disse: ‘esses momentos melódicos serão transformados pela orquestra numa espécie de guia emocional através da estrutura labiríntica do drama’.
Os motivos de Wagner têm, de facto, um significado fundamentalmente psicológico, e a sua partitura é um contínuo desenvolvimento sinfónico destes, refletindo o desenvolvimento psicológico contínuo da ação no palco. Consequentemente, uma análise completa de ”O Anel dos Nibelungos” seria uma tarefa gigantesca. Isso envolveria esclarecer as implicações psicológicas de todos os motivos e traçar o seu significado mutável ao longo de seu demorado e complexo desenvolvimento. No entanto, a compreensão e a fruição da obra podem ser muito facilitadas pelo simples estabelecimento da identidade de todos os motivos realmente importantes e pela indicação de quais símbolos dramáticos imediatos eles representam, o que é tudo o que esta introdução pretende fazer.”
Seria mais interessante saber como ele concebeu cada um desses motivos, principalmente os motivos fundamentais, cada um dos quais vai gerar toda uma série ou árvore de temas musicais.
Diz-se que alguns surgem da tradução em ritmo e melodia na partitura da visão das constelações no céu (Wagner era apaixonado por Astronomia) e outros são simplesmente pura metafísica musical, no sentido platónico. E aqui começa todo um desenvolvimento da Matemática Sagrada, que é fácil de verificar com alguns exemplos.
O motivo fundamental mais importante de todos é aquele que inicia a Tetralogia, um acorde maior formado por Sete notas ascendentes, e que Deryck Cooke chama de o “ Motivo da Natureza”. Destas Sete notas, quatro são longas, como que para estabilizar, e três como articulações (mais espirituais, portanto), fazem a transição.
Sigamos este musicólogo:
“O símbolo fundamental do Anel é o mundo da natureza, de onde tudo surge e para onde tudo retorna. E o motivo básico de Wagner para essa fonte última da existência é esse elemento fundamental da música: o acorde maior. Este acorde, estendido melodicamente como um arpejo maior ascendente tocado por tubas, forma o misterioso Motivo da Natureza que abre toda a obra.
Esta é a forma original do Motivo da Natureza. Rapidamente passa por uma transformação melódica simples em um tema de cordas pacificamente ondulante; e o resultado é o que pode denominar-se como forma definitiva do Motivo da Natureza, pois é esta a forma em que se repetirá ao longo de toda a obra.
A próxima transformação é que esta forma final do Motivo da Natureza simplesmente começa a mover-se ao dobro da velocidade e, ao fazê-lo, transforma-se num novo motivo: o crescente motivo do Rio Reno”.
Em resumo, na Criação do Cosmos da Tetralogia, primeiro, do Silêncio, emergem Sete Sons fundamentais num acorde maior. São os Sete Raios ou Construtores da Doutrina Secreta, que farão a base harmónica de tudo o que existirá. Embora não sejam ouvidos de forma pura, exceto no início, este motivo musical será ouvido de forma ondulante ao longo da obra, os Sete Raios refletidos nas Águas da Existência, que é o Diâmetro Horizontal-Grande Mãe de toda a vida. Na realidade é o seu suporte, pois somente quando a velocidade é multiplicada por dois é que surge o Rio Reno, que simboliza o Diâmetro Vertical (o segundo Diâmetro, com a presença do Espírito), que realmente vivifica e faz com que os Planos Horizontais da Consciência, sejam percorridos por aquela entidade dinâmica VIDA-FOHAT que força a que a Roda da Existência comece a mover-se.
Este “Primeiro Sete“, um motivo da Natureza no seu estado puro do início da obra, num tempo extremamente lento, em ritmo 4/4, tornar-se-á na Deusa Erda, a Grande Deusa ancestral das profundezas e da sua sabedoria, onde Wotan conceberá as 9 Valquírias (equivalentes de certo modo às 9 Kumaras da tradição hindu, também virgens). E de forma especial torna-se o Bifrost, o Arco-Íris, invocado pela tempestade de Thor e pela luz de Froh, que permitirá a passagem dos Deuses ao Valhalla. E também originará o Ouro, o estado puro da natureza, livre de qualquer tipo de tensão ou contradição, nas profundezas do Reno que, submetido à maldição da ganância de Alberich, se tornará um anel de dominação e escravidão, angústia devoradora de opressores e oprimidos.
Este motivo da Natureza, que em suma é o da aparição dos Deuses, quando por simetria se torna descendente, torna-se o motivo musical do Crepúsculo dos Deuses, que estará presente especialmente na quarta parte da Tetralogia, com este nome. No motivo e na voz de Erda, ouvem-se ambos, pois o nascimento e a juventude devem ser seguidos pelo declínio e morte de tudo o que existe, até dos Deuses (e não estamos a falar do Reino de Maat ou dos Arquétipos de Platão cuja vida é, pelo menos para nós, Eterna e Invariável).
Da mesma forma que se pode estudar cada vez mais detalhadamente as obras de Platão ou Kant ou de H.P. Blavatsky em busca de tesouros filosóficos, como na Caverna de Ali Babá que requer apenas o “Abre-te Sésamo” (ou seja, “chegar ao conhece-te a ti mesmo”), o mesmo pode ser feito estudando o texto e a linguagem musical de Wagner na Tetralogia. Alguns como Deryck Cooke desbravaram o caminho, mas este entranha-se em profundidades difíceis de imaginar, mas tentadoras certamente para os ousados que sintam o chamado e conheçam esta Linguagem.
Jose Carlos Fernández
Córdoba, 24 de dezembro de 2022
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