Função Piso (Floor) na Matemática e a Ação de Saturno

“No princípio era o Verbo” começa o Evangelho de São João. O mesmo é dizer, visto que as letras ou vozes são números, que "No início era o Número." Ou os Números, na sua própria dimensão.
1 Chronos e um seu filho. Domínio Público

E, de facto, no início da Aritmética existem apenas os números, os verdadeiros números, que são 1, 2, 3, 4… e assim por diante até ao infinito (que na matemática antiga não é um número, mas o conceito, dado que não há limite para eles), e que serão chamados de números naturais (aos quais se somam os negativos para passamos a ter os “inteiros“). Depois são considerados números as relações entre ambos, 1/2, 3/4, 22/7, etc. (números racionais) e a seguir os irracionais, aqueles que não podem ser expressos por uma razão (o primeiro, é claro, a raiz de 2, a diagonal de um quadrado com lado 1, um número cuja prova de irracionalidade é requintada). Os irracionais incluem também os chamados transcendentais (em oposição aos algébricos), que são os números que não são uma solução para nenhuma equação polinomial de coeficientes racionais, ou seja, são da forma:

Como acontece, por exemplo, com o número π ou o número e.

E vamos ampliar ainda mais com os números complexos, com uma parte real e outra imaginária que são como vectores, e que permitem resolver equações que antes eram impossíveis.

Curiosamente, o conceito de número foi-se ampliando (e ramificando), fazendo aparecer as funções, que sempre se atribuem a um valor ou número da Recta Real (e, portanto, de um conjunto) a outro. Funções que são como uma “caixa negra” onde um se converte no outro, e que têm tal importância filosófica que lhe dedicaremos um ou mais artigos nesta revista.

Uma dessas funções é chamada de “função piso”, e atribui a cada número a sua parte inteira retirando tudo o que se junta à ista. E é representada por parênteses rectos [ ].

Ou seja [x] = O número inteiro menor ou igual a x

Por exemplo, se pensássemos apenas nos positivos:

[1,332]= 1
[2,999999]=2
[7,342]= 7
[π] =3
[φ]= 1
[e]=2

Resolver equações com estes números é um acto de grande elegância, como podemos ver, por exemplo aqui:

A representação em eixos cartesianos desta função é semelhante aos degraus de uma escada. Qualquer número, não importa quão próximo esteja do inteiro seguinte, é devolvido ao inteiro inferior. Por exemplo, o 2,9999999999999999999999999999 permanece no 2 e apenas o 3,00000000000 e os superiores, menores que 4, são igual a 3.

Representação cartesiana da função piso ou floor. Creative Commons

Estes números (ou função) têm sido importantes, sobretudo, no desenvolvimento da Informática mas, ao examiná-los, vemos conotações filosóficas muito marcantes, que são as que dão título a este artigo.

Recordam a “função” Chronos ou Saturno (o Tempo) da Natureza onde as coisas são ou não são, chegam ou não chegam, são válidas ou ainda não, superaram as provas ou ainda não. Temos um ano ou dois, mas não um e meio, estamos num nível ou noutro, ou numa responsabilidade ou outra, mas não numa intermédia. A mulher está grávida ou não, e tem 3 ou 4 filhos, mas não 3,5 (mesmo que esteja em gestação); somos soldado, cabo, sargento ou capitão, etc.; o condensador só deixa a corrente elétrica passar quando atinge um determinado limite (e entretanto está a acumular); estás numa página ou na seguinte – aqueles de nós que ainda leem livros – e ainda as orbitas de eletrões estão num nível ou noutro (determinado por números inteiros) e não num estado intermédio.

É como o deus Cronos, que aparece ceifando o que já superou uma determinada linha horizontal, mas não o que, ainda que esteja muito próximo, não o faz.

Esta função matemática, a função piso, expressa muito bem, desta forma, o Tempo e as suas Provas, nas quais até que se complete ou supere o que é próprio de um nível nunca se pode passar ao seguinte e, se o fizesse, produziria dissonâncias e, portanto, uma dor que tenderia a reajustar tudo de novo.

Quem o expressa com maestria é H.P.Blavatsky (1831-1891) na sua Doutrina Secreta:

“Cronos é o ‘Tempo’, cuja primeira lei é que a ordem das fases sucessivas e harmónicas no processo de evolução durante o desenvolvimento cíclico, seja estritamente preservada, sob pena severa do desenvolvimento anormal, com todos os seus resultados consequentes.”1

H. P. Blavatsky. Snappy Coat

É por isso que a evolução da consciência foi representada na filosofia mistérica como uma escada. Cada Degrau abre a porta a uma nova realidade, uma nova perspectiva, a vivência de uma nova verdade, em cada um há um florescer. Mas também cada um está associado a uma série de trabalhos, provas, experiências, às transformações da alma que lhe permitirão chegar ao seguinte, como quando a serpente se renova e adquire um novo vigor ao deixar a sua velha pele. Platão associou esses estados de consciência humana ao número 729, que é o cubo de 7, como escrevemos num outro artigo nesta mesma revista, Matemática para Filósofos

Para os egípcios, cada um dos Degraus era um Deus, e só podia ser acedido depois de ter “queimado” ou deixado para trás tudo o que não pudesse penetrar nessa nova dimensão. Isto foi representado também pela “porta falsa” no seu ritual funerário, que se vai tornando cada vez mais pequena (é a “porta estreita” do Evangelho cristão) até que apenas passe o raio de luz da nossa verdadeira essência, penetrante como uma espada em todas as dimensões da natureza. Como nesta função matemática, por mais que te aproximes do número seguinte, até que lá chegues, não dás um salto até ele, e o que te suporta ainda é esse piso que vai permitir-te subir, apoiando-te firmemente nele.

Porta falsa da tumba de Seeetites, VI Dinastia. Creative Commons

Esta função é como um “guardião do umbral” que só permite a passagem a quem ultrapassou totalmente o nível ou número anterior, daí a sua forma de escada.

No tratado místico Voz do Silêncio menciona-se a natureza desta “Escada” pela qual a alma sobe de vida em vida, degrau a degrau, aumentando a sua compreensão e sabedoria:

“Só existe um caminho para a Senda, e somente no final desta pode ouvir-se a “Voz do Silêncio”. A escada pela qual o candidato sobe é composta de degraus de sofrimento e dor; estes só podem ser silenciados pela voz da virtude. Ai de ti, discípulo, se houver um único vício que não deixaste para trás! Porque então essa escada cederá e far-te-á cair”.

Assim, a função tecto (que atribui a cada número o inteiro imediatamente acima) indica o que aspiramos, o que nos chama a partir do futuro, nas sucessivas séries do nosso progresso, mas é a função piso que não permite aceder ao próximo número ou nível até que se supere totalmente o que é esperado do anterior.

Mais uma vez, as Matemáticas tornam-se um guia para as consciências e um lembrete de verdades fundamentais, na sua própria linguagem universal.

1 Em Antropogénese, no capítulo “A Maldição de um ponto de vista filosófico”

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