(Excerto do livro “Viagem Iniciática de Hipátia”)
Vários meses depois, Hipátia ensinava a um dos seus grupos de discípulos os rudimentos da Matemática Sagrada, base necessária para penetrar nos Mistérios da Filosofia. O mais difícil era fazê-los entender que os Números não são simples quantidades mas sim essências puras, Deuses ou Arquétipos, misteriosos moradores do plano mental da Natureza. Trespassado este umbral, uma nova vida começava para a compreensão do discípulo. Esta vivência filosófica era o primeiro degrau na escada que vai do efémero ao permanente; o primeiro reconhecimento de que a mudança e, portanto, um mundo de incessantes mudanças não é mais que uma ilusão, e que para lá do véu destas mudanças estão realidades imóveis mas vibrantes, cheias de uma Vida que não cessa: os Números, enigmática e divina fraternidade que dão realidade à realidade do mundo.
Deixando cair moedas de três tipos – ferro, prata e bronze – sobre uma mesa, perguntava-lhes:
— Quantas moedas vedes?
— Dezasseis — respondiam os discípulos depois de contá-las cuidadosamente.
— Quantas de cada? — perguntava de novo Hipátia.
— Três de prata, cinco de bronze e oito de ferro — respondiam de novo.
— Quantos tipos de moedas? – voltava a perguntar Hipátia
— Três — respondiam — de prata, de bronze e de ferro.
— Bem — disse Hipátia — pode ser que vos tenham ensinado que os Números são um jogo mental resultando da abstracção de certas quantidades. E de certo modo assim é, mas esta não é toda a verdade. Consoante a pergunta, isto é, segundo focais de um modo ou de outro a mente, tal como quando queremos olhar para mais perto ou mais longe e não o podemos fazer simultaneamente perto ou longe, a resposta será um número diferente, mesmo que não variem as «quantidades» que estão sobre a mesa.
É a mente que percebe a diferença entre a prata, o ouro e o bronze; a que diferencia as unidades e percebe os números, isto é, os Números permitem a racionalização da natureza, dão-lhe a sua estrutura interna e externa. Poder-me-eis dizer que essa estrutura, essas diferentes naturezas e mesmo os números já existem, que não é produto da vossa mente, e assim é. A vossa mente apenas os reconhece, os reencontra, e uma vez que toma consciência pode trabalhar com Eles caminhando no invisível das ideias.
Já existem na natureza porque esta, de facto, é de raiz mental, e tudo o que os nossos sentidos percebem, cada um dos comportamentos de cada uma das espécies da natureza, infinidade em número, as leis que regem a vida, tudo, responde ao arquétipo ou raiz mental que se encontra no Plano das Causas desta Natureza. Ou seja, existe um Plano Mental da Natureza, e a nossa mente humana é simplesmente uma mínima cristalização dela. Mas através deste cristal podemos conhecer a Natureza, não só como efeito, como uma imagem dos sentidos, mas também como causa: entender a sua alma e a sua vida interna.
Dar-nos conta não só de «o que está sendo» mas também do que foi antes, é agora e será depois, quer dizer, das Leis que governam esta natureza e a sua infinidade de vidas. A mente lê o número que existe na natureza porque a mente é na realidade número: estudando a vida reencontramo-nos a nós mesmos; através do homem a vida conhece-se a si mesma. E entendemos por homens a infinidade de seres vivos na infinidade de estrelas que já chegaram a despertar esta mente, esta consciência que harmoniza em ideias e números as percepções. Todos eles são nossos irmãos na Pirâmide de Ideias de todo o universo. Todos os seres inteligíveis do universo formam parte desta «família racional». Antes ou depois, todos os seres vivos se reencontrarão, como deuses, nesta Pirâmide de Luz e nela avançaremos em ciclos de tempo quase eternos até essa Fonte de Luz e Bondade que chamamos Deus.
Os discípulos seguiam atentamente os ensinamentos da sua Mestre.
Hipátia continuou:
— Se meditarmos bem, queridos discípulos — dizia — encontraremos que, na sua quinta-essência, tudo está feito de Números e baseado em Números. A natureza e a vida não são mais do que um cenário que veste, dá cor e movimento a estes Números, uma espécie de véu onde se projectam as suas sombras. Por isso Platão e a Filosofia Egípcia deram tanta importância ao estudo da Matemática e Geometria Sagradas.
Destes Números, quiçá os mais enigmáticos, aqueles que vivem numa eterna solidão e que são uma imagem da mais pura autenticidade, são aqueles que não têm outro número que os divida, são auto-engendrados, ou «sem pais»; surgem puros da unidade, são os «primeiros» ou primos. Por exemplo, o seis é o produto de dois vezes três; o oito é quatro vezes dois, ou dois vezes dois vezes dois. Mas os seguintes, por exemplo, são apenas o produto de si mesmos e, claro, a unidade, que é a base de toda a série numérica:
1, 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, 27, 29, 31, 37, 41, 43, 47, 53, 59, 61, 67, 71, 73, 79, 83, 89, 97…
Estes Números são como estrelas no céu e todos os outros são a tecedura da luz e da acção destes primeiros. Se fizerdes uma lista com os números, por exemplo de 1 ao 1000, e estudais quais são os primos vereis que são cada vez menos… e no entanto não é difícil demonstrar – Euclides fê-lo – que os Números primos são infinitos. Esta demonstração, recomendo que a leiais depois na biblioteca, é um modelo de beleza argumentativa.
— De todo o modo, o mais importante não é saber que são infinitos — prosseguiu Hipátia explicando — mas sim esforçar-se por compreender qual é o significado por que são infinitos. Recordar Platão em O Timeu quando diz que «Existe um só universo, pois se existissem dois já seriam na realidade três»: cada um deles mais aquele que abarca os dois e os relaciona e, depois, a relação deste terceiro com cada um dos anteriores, e assim surgem todos os números, cada vez mais, sempre. Portanto, o profundíssimo mistério da unidade é o mesmo que o profundíssimo mistério do cada vez mais sempre: são como as duas faces da moeda, é o par que os pitagóricos chamavam finitude e infinitude; e são os números primos que balizam o caminho entre ambos. Todo o Número é «medido» por estes Primeiros. Por exemplo:
90 = 2 x 3 x 3 x 5
O 90 é medido, portanto, pelo 2, pelo 3 e pelo 5. A unidade mede, com certeza, todos os Números. Mas o maravilhoso é que a decomposição de qualquer Número nestes primos é sempre a mesma. Varia a ordem dos factores mas estes nunca. O que significa, filosoficamente, que todo o acontecimento, lei, ideia, vida… é, por um lado, um Número, e portanto a expressão no aqui e no agora de uma verdade imutável intrínseca; e por outro lado, o produto de uma série de factores, o efeito de uma série de causas como o tecido é o efeito de uma série de fios dispostos de uma determinada maneira.
Platão recomenda-nos separar aquilo que pertence à inteligência e o que pertence à opinião e diz que a opinião é como a auréola mais ou menos difusa que rodeia um ponto de luz. Este ponto de luz é o facto e a sombra luminosa que o rodeia é uma irrealidade, uma aparência enganosa. Se conseguirmos que a nossa alma veja com precisão o que sucede, de facto, sem deformações poderemos encontrar, com maior ou menor esforço, os factores ou causas que o determinam, ainda que nunca possamos encontrar estes factores de uma ilusão, a não ser a constatação da verdade de que se trata de facto de uma ilusão e que causa determinou esta ilusão.
Por exemplo, se um caminhante nocturno encontrar-se com uma corda no caminho pode dar um salto, assustado, para não pisá-la julgando que é uma serpente. Podemos determinar a razão deste engano: a semelhança da forma, o medo das serpentes, as experiências prévias com serpentes no caminho… mas nunca encontrar o significado e natureza desta serpente se apenas se tratar de uma corda. Quer dizer, a razão estuda os factos mas as fantasias procuram evadir-se deste olho que tudo desnuda, que é o olho da Inteligência e que percebe o Número, o ser verdadeiro no meio das ilusões da vida.
— Em resumo — concluiu Hipátia — existem infinitos factos e, no entanto, todos com as suas causas geradoras. Não devemos ser tão pouco prudentes para pensar que dispomos das causas que explicam tudo o que nos rodeia. O facto de que existam essas causas não significa que estas se encontrem ao alcance da nossa compreensão. Querer explicar o mistério que nos rodeia por toda a parte com a nossa pequena mente é como querer fazer entrar à pressão toda a água do mar neste pequeno recipiente.
Enquanto dizia estas palavras extraiu da sua túnica um lacrimário romano. A forma de vida dos antigos «gentios» não se envergonhava das lágrimas de beleza, de amor puro… lágrimas de uma alma serena. E conservava-as nestes minúsculos lacrimários como se fosse a mais bela das recordações, o mais poderoso dos talismãs na agitação da vida.
Depois Hipátia desenhou num quadro um ponto e, ao lado, duas linhas que se cruzavam também num ponto e perguntou aos seus discípulos:
— Ambos são pontos, não é certo? Mas um é filho de duas linhas e o outro é em-si-mesmo.
Um dos discípulos, muito jovem mas com uma inteligência muito penetrante, disse:
— Tem razão no que diz, Hipátia, embora aquele que é «filho» de duas linhas já existisse antes e apenas o que fez foi mostrar-se.
— O mesmo — disse Hipátia — sucede com a consciência, que surge sempre de uma relação entre dois ou mais elementos: entre o Eu e a sua circunstância; entre o que somos e o que nos limita… E no entanto, de modo misterioso, oculto, deve existir antes de encontrar a maneira de «nascer» neste mundo e submetida a determinadas condições. Pensa, por exemplo, no filho que nasce para a luz do mundo de um pai e de uma mãe, mas cujo ser íntimo deve existir antes, durante e depois da sua consciência se atar a um corpo.
De qualquer das formas — continuou Hipátia — de certo modo os Números Primos, que nascem de si mesmos, são como os pontos ou como aquilo que emerge do mistério, os restantes nascem e são medidos por estes. Daí serem como estrelas no céu. Daí o nome com o qual, tantas vezes, os refiro: «estrelas de um firmamento mental». Números Primos são as Ideias que nos permitem decifrar o mistério da vida, sair do caos que apresenta e achar as figuras geométricas que a regem.