Leibniz, o I Ching e o sistema binário – 1ª parte

A palavra polímata designa um ser humano dotado de vastos conhecimentos em diferentes áreas do saber. Não é uma invenção moderna, e o próprio termo remonta à Grécia antiga: Poly Metis, "muitas astúcias" ou "muitos conhecimentos". O "Ulisses das mil artimanhas" que encontramos na Odisseia é o protótipo do que chamaríamos mais tarde de polímata. A linha de polímatas inclui numerosas figuras geralmente conhecidas por um único campo de conhecimento entre os muitos que desenvolveram. Assim, esta tradição vai desde os filósofos pré-socráticos até muitas figuras do nosso tempo.
Introdução

“Se alguém reduzisse Platão a um sistema, prestaria um grande serviço à raça humana.”*

Um cientista alemão do século XIX* caracterizou Leibniz como um erudito com “conhecimento de tudo e do todo”. Homem com uma curiosidade insaciável, gabinete unipessoal, último génio universal, são alguns dos epítetos que o pensador alemão recebeu.

A sua vasta obra ainda está longe de ser amplamente estudada e compreendida e, em geral, o foco no seu pensamento é limitado às suas contribuições na Matemática e, em parte, na Filosofia. As obras mais acessíveis pouco ou nada comentam sobre a importante influência que a filosofia chinesa teve no seu pensamento e no desenvolvimento de uma das suas maiores contribuições: o sistema binário, a análise combinatória e cálculo infinitesimal (que aliás, lhe trouxe um grande problema, já que a “descoberta” também fora feita por Newton e ao mesmo tempo).

Mas aqueles que têm um conhecimento mínimo de como funciona a tecnologia da informação, derivada da tecnologia de cálculo, sabem da importância fundamental da sistema binário para a sua existência e desenvolvimento. Se não fosse por essa “invenção” de Leibniz, o nosso mundo certamente seria muito diferente.

Acontece que há mais a considerar: Leibniz não é exatamente o inventor do sistema. Há uma sombra entre a invenção e a tradição oriental. É que o sistema binário, ao mesmo tempo que foi desenvolvido por Leibniz e oferecido como item de troca de conhecimento ao então imperador da China, no momento em que o filósofo tenta negociar por meio do seu então correspondente, o padre jesuíta Bouvet, retracta-se com a demonstração de que não se trataria de inventar algo novo, mas de trazer à luz a chave da compreensão científica de uma tradição perdida há séculos.

Aí está a sombra: estamos perante uma coincidência real ou diante de um daqueles teatros estratégicos promovidos pela Hierarquia, a fim de levar ao público conhecimento da máxima importância de forma diplomática e aceitável para a humanidade da época?

Na verdade, não importa! O facto é que os 8 trigramas e os derivados 64 hexagramas, invenção atribuída ao mítico fundador da nação chinesa, Fo Hi ou Fu Xi, da qual mais tarde derivou o chamado “Livro das Mutações” ou “I Ching”, constituem justamente a base gráfica do sistema binário proposto por Leibniz, relação evidenciada na correspondência mantida com o padre Bouvet. Se essa relação foi considerada casual pela maioria dos historiadores, podemos sempre invocar aquelas palavras de Poincaré: “o acaso nada mais é do que a medida da nossa ignorância”.

Perfil Intelectual

Celebrado principalmente pelas suas contribuições matemáticas, especialmente o sistema binário, cálculo infinitesimal e análise combinatória, foi também um grande filósofo, dedicado aos mais variados temas, incluindo a teologia. Sendo de linhagem protestante, concebeu e trabalhou pela reunificação da Igreja, bem como postulou a riqueza que a Europa adquiriria se, ao invés de se preocupar em ocidentalizar a China, intercambiasse conhecimentos e experiências com ela.

Foi um pioneiro da topologia, inventor da máquina de calcular, político e diplomata, realizando missões em diversos países. Diz-se que foi o primeiro a idealizar uma União Europeia, sendo também pioneiro nas áreas da química, educação, história, geologia, engenharia e mecânica. Estudou fósseis, foi editor, juiz de direito, amigo e conselheiro de príncipes, rainhas e nobres, mantendo correspondência regular com mais de 500 destinatários, e o número de cartas que escreveu chega aos milhares.

Desenho de 1897 da calculadora de Leibniz na sua versão de 12 dígitos. Domínio público

Se isto não bastasse, ainda encontrou tempo para entrar em polémicas travando disputas intelectuais com John Locke e Samuel Clarke, entre outros, bem como ser bibliotecário, administrador de minas de sal e idealizar e presidir à Academia Prussiana de Ciências. E nas horas vagas desenhava submarinos, prensas hidráulicas, relógios, bombas pneumáticas e moinhos…

Breve biografia

Gottfried Wilhelm Leibniz nasceu em Leipzig, na Alemanha, em 1 de julho de 1646. Ele viveu pouco mais de 70 anos, falecendo em Hannover a 14 de novembro de 1716, sozinho e, tanto quanto sabemos, na penúria, como é comum na história de muitos dos grandes génios. Durante a sua vida o valor do seu trabalho foi reconhecido por aqueles que o rodearam e com ele colaboraram, mas mais de três séculos após a sua morte, ainda nos esforçamos para reconhecer a verdadeira dimensão de quem foi e qual o impacto do seu pensamento e das suas descobertas nas mais diversas áreas do conhecimento.

Filho de professor de filosofia moral, definiu a terceira geração de professores académicos na família, pois o seu avô também havia ensinado na área académica. O seu pai faleceu quando ele tinha apenas seis anos, deixando-lhe uma herança muito importante: a sua biblioteca. Já nessa idade, começa a ler vorazmente os volumes herdados, passando desde tenra idade pelos mais diversos temas, intercalando tais leituras com estudos escolares. Aos 15 anos ingressou na Universidade de Leipzig, onde recebeu ensinamentos com base na tradição aristotélico-tomista, seguindo o percurso de Jacob Thomasius, historiador da filosofia.

Em 1663 apresentou a sua tese de conclusão do curso e no verão dirige-se a Jena, a fim de frequentar o curso ministrado por Erhard Weigel, um matemático, metafísico e jurista que leccionou nesta cidade. De volta a Leipzig, dedicou-se ao estudo da jurisprudência. No ano seguinte faleceu a sua mãe, o que não o impediu de continuar os seus estudos em jurisprudência e de se tornar um professor de filosofia. Em 1666, então com 20 anos, publicou o texto Dissertatio de Arte Combinatoria, inspirada na obra Ars Magna de Raymond Lull, a quem criticou pela arbitrariedade das suas categorias e indexação. A sua dissertação foi a ampliação do seu texto de doutoramento, elaborado antes mesmo das suas incursões na matemática, porém já indicando o carácter universalista do seu pensamento. Na verdade, De Arte Combinatoria tem como ideia principal o desenvolvimento de um “alfabeto do pensamento humano”, assumindo que todas as verdades podem ser expressas como combinações apropriadas de conceitos que podem, por sua vez, ser divididos em ideias simples, permitindo uma análise muito mais fácil.

Também em 1666 recebeu um doutoramento em direito pela Universidade de Altdorf (perto de Nuremberg) e recusou o convite para ser professor desta instituição. É aqui onde Leibniz se junta a uma sociedade secreta interessada em alquimia, da qual é secretário por dois anos. No ano seguinte, foi nomeado adjunto do Conselheiro Jurídico do Eleitor, através do Barão J. C. von Boineburg, que servirá como seu importante patrocinador, publicando os seus textos e elevando-o a funções importantes na sociedade da época. Redige o Consilium Aegyptiacum, um plano para conquistar o Egipto para a França, com o objetivo de afastar Luís XIV da Europa, diminuindo assim a pressão francesa na fronteira sudoeste do império alemão. Curiosamente, este projeto é muito semelhante ao adoptado por Napoleão um século e meio depois… Também escreve Demonstrationes Catholicae, onde apresenta a sua visão da possibilidade de uma reunião das igrejas Católica e Protestante.

Nos anos seguintes, Leibniz projecta a publicação de uma revista, Semestria Litteraria, equivalente ao Journal des Savants publicado em França*, escreve textos de Lógica e sobre a importância das sociedades académicas dedicadas à ciência e é promovido ao cargo de assessor do Tribunal de Apelações do Eleitorado de Mainz. Escreve duas cartas para Hobbes, inventa a máquina de calcular aritmética (que permitia as quatro operações básicas e a extracção de raízes), desenha projectos para submarinos e bombas de ar que permitiriam a navegação contra o vento.

Em 1671 publicou textos científicos dedicados à Academia Francesa de Ciências e à Royal Society de Londres. No ano seguinte é enviado a Paris em missão diplomática, onde conhece os filósofos Arnauld e Malebranche, além de iniciar-se em matemática com Huygens e tem a oportunidade de consultar os manuscritos matemáticos de Pascal. Entre 1673 e 1674 viaja para Londres, sendo eleito membro da Royal Society, entra em contacto com vários pensadores e matemáticos e apresenta a sua máquina de calcular à Academia de Ciências.

Entre 1675 e 1676 reúne-se novamente com vários pensadores e matemáticos, tem acesso aos manuscritos de Descartes e trabalhos sobre cálculo infinitesimal. Aceita o cargo de bibliotecário e conselheiro na Corte de Hannover. Deixa Paris, passando primeiro por Londres encontrando-se com Collins e Newton, depois por Haia, onde conhece Espinosa, e finalmente Amsterdão, onde conhece o microscopista Leeuwenhoek. Antes mesmo de chegar a Hannover, escreveu textos sobre teologia e traduziu Fédon e Teeteto de Platão.

Nos anos seguintes, troca correspondência com várias figuras importantes sobre a união das igrejas, escreve notas sobre a Ética de Espinosa, textos sobre diversos temas e desenvolve estudos sobre aritmética binária. Em 1680 viaja constantemente ao Harz com a tarefa de desenvolver invenções práticas para ajudar na exploração de minas. Contribuiu para a fundação de novas publicações científicas e académicas em Leipzig e vive numa Europa em guerra até a libertação dos Turcos a 12 de setembro de 1683.

Em 1684 publicou textos nos quais expôs as suas teorias sobre o cálculo infinitesimal e no ano seguinte foi nomeado historiógrafo da casa de Brunswick, cargo pelo qual fará inúmeras viagens, entre as quais a Itália, Áustria e várias cidades alemães, em busca de documentos históricos. Em 1689 foi convidado para dirigir a biblioteca do Vaticano, mas recusou a proposta. Viaja para Nápoles, Florença, Bolonha, Modena, Ferrara e Veneza. Apesar das viagens, continua a escrever e publicar textos, na sua maioria de natureza científica, além de estudar Geologia, o pensamento chinês e proceder com demonstrações sobre a conservação das forças.

Foi nomeado bibliotecário de Wolfenbüttel em 1691 e iniciou uma intensa correspondência com os Jesuítas na China. Serviu na esfera política para fazer de Ernesto Augusto o Eleitor de Hannover, em 1692. A partir de então, manterá uma intensa correspondência com qualquer pessoa que tenha conhecimento de seu interesse, escrevendo e publicando cada vez mais, sobre os mais diversos temas. Foi nomeado membro do Academia de Ciências de Paris em 1699 e em 1700 projectou a Sociedade de Ciências de Berlim, da qual é um dos fundadores.

Antiga entrada para a Academia Prussiana de Ciências, hoje Biblioteca do Estado de Berlim. Creative commons

Apenas em 1701 começou a publicar os documentos recolhidos nos últimos anos sobre a história da Casa de Brunswick e Alemanha. Dois anos depois, escreve os Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, nos quais critica a obra-prima de Locke. Pouco tempo depois analisa a natureza dos caracteres chineses e inicia a correspondência com os jesuítas Des Bosses. Em 1711 conhece o Czar Pedro, o Grande, que o nomeia conselheiro particular e inicia um projeto para uma academia de ciências em São Petersburgo. Um ano mais tarde está em Viena, onde o Imperador o nomeia seu conselheiro particular. Em 12 de agosto de 1714, Jorge Luis torna-se Jorge I de Inglaterra e recusa-se a satisfazer o pedido de Leibniz, que queria ir com ele para Inglaterra. Estabeleceu-se em Hannover, onde continuará a ser produtivo até que, em 1716, sofreu um ataque de gota, vindo a falecer em Novembro e sendo sepultado miseravelmente.

Entre o Renascimento e o Iluminismo: a era dos polímatas

A palavra polímata designa um ser humano dotado de vastos conhecimentos em diferentes áreas do saber. Não é uma invenção moderna, e o próprio termo remonta à Grécia antiga: Poly Metis, “muitas astúcias” ou “muitos conhecimentos”. O “Ulisses das mil artimanhas” que encontramos na Odisseia é o protótipo do que chamaríamos mais tarde de polímata. A linha de polímatas inclui numerosas figuras geralmente conhecidas por um único campo de conhecimento entre os muitos que desenvolveram. Assim, esta tradição vai desde os filósofos pré-socráticos até muitas figuras do nosso tempo.

No entanto, considerando a história na sua vertente ocidental, durante a chamada “Idade Média”, foi muito criticado o conhecimento pelo conhecimento, ou a curiosidade intelectual não ligada ao conhecimento de Deus, e importantes pensadores como Agostinho a condenaram, levando o mundo europeu a uma negação da importância do conhecimento, especialmente do conhecimento científico. Assim, com o advento do Humanismo e do Renascimento, a reabertura à curiosidade e ao saber que definia o “homem universal” teve uma importância sumária não só na sua época mas também nos séculos vindouros, todos eles ficando a dever muito ao génio do homem renascentista.

Se até ao século XV o conhecimento intelectual era valorizado na sua comunhão com o conhecimento prático do canto, da dança ou da esgrima, a partir do final do século XVI encontraremos uma derivação gradual para uma tendência mais intelectual e erudita, mas nem sempre carente de interesse e aplicação práticos. O que acontece é que a Filosofia e a Ciência entraram em campos cada vez mais abstractos. Esta característica, somada ao crescente “despotismo esclarecido”, em que o governante muitas vezes terá, mais por moda do que por interesse real, um filósofo ou um séquito de filósofos ou eruditos como conselheiros, mas não trabalhando diretamente com eles, fará com que o seu alcance diminua, tendendo à intelectualização, uma característica tão marcante do Iluminismo, e que nos persegue até aos nossos dias.

Na passagem de uma realidade a outra, do Renascimento ao Iluminismo, encontramos uma período de transição muito importante, no qual as características já não são puramente renascentistas, nem têm a marca final e intelectual do Iluminismo. É o século de Leibniz, chamado por alguns de “o século dos heróis da erudição” ou os “monstros da erudição”. Isto sucede porque esse período viu nascer uma série de figuras que, ao longo das suas vidas, desenvolveram muito conhecimentos e actuaram em áreas muito diversas, reunindo-as, na maioria inspirados naquelas premissas a partir das quais Bruno e Lullio buscaram sustentar seu trabalho: a busca de uma “Chave Universal” do conhecimento.

Para se ter uma ideia, o historiador Peter Burke, na sua obra “O polímata: Uma história cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag”, faz um mapeamento de pelo menos 92 polímatas de importância histórica significativa na era de Leibniz. Entre eles, muitos nomes são totalmente desconhecidos por nós, em detrimento de outros bem conhecidos, mas estes, na maioria dos casos, apenas por uma das muitas áreas do conhecimento em que se desenvolveram. Tais são os casos de Tycho Brahe e o seu assistente Kepler, Galileu Galilei, René Descartes, Blaise Pascal, Isaac Newton… E por curiosidade, há muitas mulheres nesta lista, infelizmente esquecidas numa memória que não salvaguardou o papel do feminino no desenvolvimento da erudição.

Rever as características desse processo de transição é especialmente interessante para o investigador da História comprometido não apenas com o conhecimento, mas com experiência e o renascimento de valores esquecidos, já que define muitos dos sucessos e, especialmente, dos “erros” cometidos durante a expansão do Renascimento por toda a Europa. Todo o processo gera resíduos, e conhecê-lo é fundamental para evitar cometer os mesmos erros.

Leibniz e a cultura chinesa

Leibniz viveu no período em que deram os primeiros contactos científicos, teológicos e filosóficos entre a Europa e a China, proporcionados pelos missionários jesuítas envolvidos no projecto de catequização dos chineses. O assunto foi amplamente divulgado nos círculos intelectuais e religiosos da época, e coube-lhe tornar-se o primeiro filósofo alemão ao escrever sobre o pensamento oriental, mais especificamente sobre a filosofia chinesa.

Quando os missionários chegaram à China, ao contrário de África e das Américas, eles depararam-se com uma sociedade técnico-científica de alto nível, um sistema de escrita altamente complexo e, em muitas áreas, com um domínio técnico superior ao europeu, bem como uma estrutura política e jurídica muito bem organizada. Assim, o que nos outros continentes tinha sido a base fundamental da conquista cristã, não permitindo grande oposição por parte dos conquistados, na China tornou-se um obstáculo intransponível. Isto exigiu que os missionários desenvolvessem estratégias especiais para promover a conversão ao Cristianismo. Percebendo rapidamente essa necessidade, enviaram cientistas muito competentes, principalmente astrónomos e matemáticos, para a China, que os apoiariam no processo de convencer o povo chinês. Do ponto de vista técnico-científico e intelectual, este foi o encontro de duas grandes culturas que viveram o mesmo plano de desenvolvimento.

Diagrama da bússola de um marinheiro da dinastia Ming. Domínio público

O processo baseou-se numa complexa disputa metafísico-religiosa entre missionários católicos, tendo duas concepções muito diferentes sobre o método de catequização a utilizar no processo de conversão dos chineses, disputa que ficou conhecida como a “disputa de rituais”. Por um lado, havia a maioria dos jesuítas que defendiam a tese da compatibilidade entre antigos rituais chineses e princípios cristãos e, por outro, eram alguns jesuítas, somados a outras ordens religiosas, a Sorbonne e o Vaticano, que afirmavam que os rituais chineses e o cristianismo eram irremediavelmente incompatíveis.*

Segundo Florentino Neto, foi o encontro de Leibniz com o padre jesuíta Claudio Filippo Grimaldi em Roma, em 1689, que marcou o seu intenso e duradouro interesse pelo pensamento chinês. Grimaldi fazia parte do grupo que defendia a compatibilidade entre os rituais chineses e os princípios cristãos, era um jesuíta influente e um cientista extraordinário que vivera na Ásia durante trinta anos e voltara a Roma justamente para convencer o Papa a não interromper ou interferir no método de conversão que tinham vindo a utilizar na China.

Sabe-se que a “disputa de rituais”, mais do que uma disputa teológica ou sobre o processo de conversão, foi motivada pelas querelas internas da Igreja pelo controle das Missões e entre os países católicos na sua busca de poder e domínio dos acontecimentos coloniais na Ásia. Além disso, a polémica destacou outras controvérsias relacionadas com as questões fundamentais da metafísica e da teologia cristãs.

É nesse contexto que Leibniz se posiciona, seguindo a opinião de Grimaldi, e para justificar o seu ponto de vista acaba por relacionar elementos do pensamento chinês com aspectos da sua própria filosofia. É preciso considerar que Leibniz se opôs ao pensamento escolástico e cartesiano e que a esta oposição é claramente apresentada na abordagem do problema da comunicação de substâncias, refutando o dualismo com a sua teoria da harmonia preestabelecida, assim como na sua concepção do universo como uma unidade orgânica. Estes são os dois elementos principais que ligam o pensamento leibniziano ao pensamento chinês.

Em 1687, o rei Luís XIV de França seleccionou seis dos melhores matemáticos da Academia de Ciências, todos também padres jesuítas, e enviou-os para a China equipados com os melhores dispositivos científicos da época. Além do trabalho de conversão, a sua missão principal era reunir o máximo de informações científicas possível e enviá-las para França. Entre esses missionários estava o Padre Joaquim Bouvet, um dos principais representantes do método de interpretação de textos heréticos, que consistia na busca de elementos do Cristianismo no pensamento chinês antigo, especialmente nos textos do Tao Te Ching. O mais interessante é que Bouvet não procurava apenas pontos de compatibilidade entre o pensamento chinês antigo e o pensamento europeu de seu tempo, mas pretendia demonstrar que esses dois universos, embora aparentemente diferentes, tinham a mesma origem. As teorias de Bouvet não tiveram muita influência na “disputa dos rituais”, mas antes no seu correspondente mais importante.

(Continua…)


  1. Palavras de Leibniz em carta, citadas em “Philosophy: Modern Age”, de G. Reale e Dario Antiseri. ↩︎
  2. Emil Du Bois-Reymond, citado em “The Polymath”, de Peter Burke. ↩︎
  3. Primeira revista científica publicada na Europa ↩︎
  4. Citando Florentino Neto: “Na ‘disputa ritual’, as questões colocadas referiam-se a um possível crença dos chineses em um Deus, nos anjos e na imortalidade da alma; em suma, a questão levantada dizia respeito principalmente ao ateísmo dos chineses, à existência de um conceito claro da distinção entre corpo e alma, que significava, em última instância, a questão da existência, no universo ‘espiritual’ chinês, das pré-condições essenciais para a sua conversão ao Cristianismo. Como consequência desta controvérsia, cerca de 1700 surgiram inúmeras publicações sobre a concepção chinesa do mundo, e entre eles está o primeiro texto de Leibniz sobre a China. Este texto é o prefácio de uma colectânea de artigos e reportagens sobre aquele país, escritos por vários autores sobre diversos temas e publicado em 1697.” ↩︎

Imagem de capa

Gottfried Wilhelm Leibniz, retrato de Bernhard Christoph Francke. Domínio público

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