«A medida e a proporção realizam em todas as partes beleza e perfeição.»
Platão, Filebo, 64c
«Tudo o que é bom é belo, e a beleza não se manifesta sem proporções verdadeiras.»
Platão, Timeu, 87c
Leonardo da Vinci foi um génio que percorreu de modo admirável os caminhos do pintor e do cientista, as sendas da imaginação e da matemática, da imagem e da palavra. A sua ética profunda, consciência filosófica, sentido total de liberdade interior, desprezo pelo mundano, auto-exigência profunda e procura metafísica através do diálogo entre a observação da Natureza e a faceta mental do cosmos são somente alguns dos esplendores desta grande Alma, que urge tentar conhecer para além das representações que este ser tão polifacético espoletou, sobre tudo nas últimas centúrias. Em geral, essas representações têm algo de anacrónico, dado ser hoje difícil (embora absolutamente necessário para a emergência de um novo paradigma) captar o espírito do Renascimento que animou figuras tão distintas como Leonardo, Ficino ou Bruno.
Evidentemente, Leonardo é um pioneiro da ciência moderna1, tal como foram os portugueses concomitantemente nos séculos XV e XVI2. Porém, o seu conceito de ciência é o de conhecimento mental (scientia, do latim) que inclui o estudo dos númenos (causas), o princípio da analogia e todo o processo «matemático» que vai do que ele designou como da «essência do nada» («l’essere del nulla»; Codex Arundel) até à manifestação da natureza captável pelos cinco sentidos. Há em Leonardo uma visão sistémica da vida e da natureza que o aproxima da teoria da complexidade que muitos cientistas da actualidade têm vindo a aplicar tais como Fritjof Capra e Stuart Kauffman.Para Leonardo, a ciência é também o que Pierre Hadot denomina exercício espiritual. E, nestes seus exercícios espirituais, na observação da physis (natureza), nota-se claramente a influência de Aristóteles. Reveja-se, por exemplo, o enfoque do fundador do Liceu na indagação e estudo dos animais:
«(…) vamos ocupar-nos agora da natureza animal, com a preocupação de, dentro do possível, não deixar de fora nenhuma questão, seja ela insignificante ou de importância. De facto, mesmo se se trata de seres que não têm um atractivo sensível, a natureza, que os concebeu, reserva a quem os estuda prazeres fantásticos, desde que se seja capaz de lhes perceber as causas e que se tenha um verdadeiro amor à ciência. Seria estranho e sem lógica que nos satisfizesse a observação de reproduções desses seres, porque nesse caso estaríamos a apreciar simultaneamente o talento do artista — seja ele um pintor ou um escultor —, e não fôssemos sensíveis ao prazer supremo de contemplar os seres em si mesmos tal como a natureza os criou, pelo menos quando conseguimos identificar-lhes as causas.Assim, não é conveniente alimentar uma aversão infantil pelo estudo dos animais menos nobres, na certeza de que em todos os produtos da natureza há sempre algo de maravilhoso. Lembremos o que se conta das observações feitas por Heraclito a uns estrangeiros de visita que, ao vê-lo aquecer-se ao fogão, se detiveram à entrada: insistiu para que entrassem sem receio, com o argumento de que também ali havia algo de divino. Do mesmo modo devemos encetar a pesquisa sobre qualquer animal sem resistência, certos de que cada um deles tem algo de natural e o seu encanto próprio.
Sobre os produtos da natureza não reina o acaso, mas uma finalidade e no mais alto grau. É exactamente no objectivo pelo qual cada ser se constitui e se produz que o belo reside.»3
Por outro lado, teve também especial impacto na alma de Leonardo o pensamento platónico-pitagórico, de onde emergiu o seu furore geométrico, marcante a partir do início do século XVI, como podemos constatar nos seus cadernos de notas. Leonardo foi verdadeiramente um homem de uma ciência integrativa (integra Aristóteles e Platão)4, assim como um verdadeiro artista, na síntese vemos o filósofo a conjugar este diálogo entre o cientista e o artista.Por estas razões, Leonardo escrevia que «a ciência é a capitã e a prática os soldados»5, tal como, «Aqueles que se enamoram da prática sem ciência são como o marinheiro que entra num navio sem leme nem bússola»6. E: «Na natureza, não existe um efeito sem causa. Compreende a causa e não terás necessidade da experiência.»7 Tanto a ciência como a pintura são mentais. Por isso, o génio florentino afirmava que o grande obstáculo ao conhecimento (scientia) é o território da opinião, tal como defenderia Parménides. Deste modo, é essencial o exercício espiritual da purificação da mente.
Diz-nos Leonardo no seu Tratado de Pintura, «O princípio da ciência da pintura é o ponto, o segundo é a linha, o terceiro é a superfície, o quarto é o corpo que se veste com essa superfície»8. Está aqui a fazer eco de uma larga tradição do que poderemos denominar como o princípio de emanação da cosmogonia da matemática pitagórica. O ponto é a unidade indivisível, portanto imaterial, sem dimensões, do qual, através do movimento surge a linha, que tem comprimento, mas não largura (Euclides I, 2), esse mesmo movimento faz da linha gerar a superfície (tem comprimento e largura), e essa superfície – através de um movimento angular – dá origem ao corpo (tem comprimento, largura e profundidade). Hiérocles, neoplatónico do século V d. C., discípulo de Plutarco de Atenas, diz-nos no seu Comentário aos Versos Áureos de Pitágoras:
«O primeiro corpo sólido encontramo-lo no quaternário. Ao ponto corresponde a unidade, à linha, o binário. Porque de facto, de um ponto vamos para outro ponto, e isso faz a linha. Às superfícies correspondem o ternário. O triângulo é a mais simples de todas as figuras rectilíneas. Porém, o sólido é da natureza do quaternário. É, assim, que no quatro descobrimos a pirâmide, [tetraedro] cuja base triangular é composta pelo três e o seu ponto ou topo é constituído pela unidade.»
Hiérocles de Alexandria vai mais longe e relaciona estes quatro degraus cosmogónicos com os quatro graus da linha do conhecimento platónico, ou seja, a compreensão-intuitiva (1) das ideias, o entendimento (2), a opinião (3) e a sensação (4). E relaciona o «Quaternário», com o sagrado Quatro, ou seja, a Tetraktys (1+2+3+4=10), a Inteligência-Causa do nosso universo, segundo Hiérocles. Temos então aqui os dois movimentos da evolução. O primeiro é o emanativo, da criação dos deuses, do uno ao múltiplo, da ideia à forma, e da forma como estruturadora da matéria, portanto, o processo da materialização do espírito. O segundo, o regresso do múltiplo ao uno, de ascensão da consciência, desse esforço do eu-humano a regressar à sua divina origem percorrendo o caminho gradual da sensação e opinião (doxa) ao entendimento (dianoia), e deste à luz das Ideias (noiesis).
Toda esta temática interessou aos filósofos renascentistas tais como Leon Battista Alberti e Piero della Francesca, este último mestre de Luca Pacioli, o grande companheiro de Leonardo no seu furor geométrico.
Leon Battista Alberti asseverava que «É absolutamente necessário sabermos que o ponto é um signo indivisível. (…) que o corpo está coberto pela superfície como se fosse uma pele, um vestido, que dá ao corpo a sua aparência.»
Dá-se no Renascimento um fenómeno interessante na sua reemergência neoplatónica. Para Platão, a pintura é a sombra da sombra, pelo que é desprezada. Porém, os neoplatónicos do Renascimento, aqueles mesmos que frequentam a academia neoplatónica de Careggi, renovam o neoplatonismo e fazem da pintura uma expressão platónica de acesso às Ideias, uma sombra que dá acesso à luz. Amiúde, em vez da palavra escrita ou oral, é a própria pintura uma expressão filosófica platónica, um veículo do arquétipo. Nesse caminho em direcção ao Belo e ao Bom, subjaz naturalmente a ciência pitagórica dos números, das proporções e das formas prístinas.
Para Leonardo está claro que o ponto é um mistério porque sem-dimensões, pertencente ao não-ser; assim o movimento é o que estabelece a passagem do não-ser ao ser (movimento poético9), esse movimento é o próprio fluxo da Vida. Este fluxo contínuo da Vida foi uma das grandes divindades de Leonardo. «O movimento é a causa de todo o tipo de vida»10, dizia. A este movimento e fluxo de vida está associado o seu princípio de connessione, ou seja, de inter-conexão, visão clara de um pensamento sistémico.
No Codex Arundel, encontramos as seguintes anotações:
«A linha é feita com o movimento do ponto (…). A superfície é feita com o movimento transverso da linha; (…) o corpo é feito pelo movimento da extensão da superfície.»11
«A linha recta é semelhante a uma distância de tempo, e do mesmo modo como os pontos são o começo e fim da linha, assim também os instantes são os pontos extremos de qualquer extensão de tempo dada.»12
«O ponto não é divisível, pelo que não ocupa espaço. Todas as coisas que não ocupam espaço são nada. O fim de uma coisa é o princípio de outra.»13
Veja-se aqui a expressão dos conceitos leonardinos de ponto não divisível, que não ocupa espaço, movimento como expansão do ponto, relação entre ponto e instante (tempo), e o seu interessante conceito de «nada» (nulla).
Recordemos que para Leonardo tanto a ciência como a pintura são um «discurso mental», sendo a observação da mestra Natureza uma via para se chegar às ideações mentais, limpas da doxa (opinião). Por isso, afirmava, «Considero a natureza a minha mestra e em todos os casos a ela me remeto. Ó investigadores de coisas! Não presumais em conhecer as coisas que a própria Natureza manifesta de uma forma comum, mas alegrai-vos em conhecer o fim daquelas coisas que são ideadas em vossas mentes14.»15 Por sua vez, afirmava Leonardo: «A Necessidade é a mestra a guia da Natureza»16. E «a chave estrutural do princípio de necessidade residia na geometria, daí a admiração do imaginativo mestre [Leonardo] por este ramo das matemáticas».17
O ponto é imaterial, não espacial, indivisível, não-manifestado, portanto pertence ao «nada», ou seja, à natura naturans. E é deste ponto não-espacial que surge a manifestação no espaço. A esse mistério que tem o poder da criação, Leonardo da Vinci chamou o nada. A esta matriz de pensamento têm regressado alguns físicos-filósofos do nosso tempo, as partículas quânticas não surgem da matéria mas são de natureza mindlike, algo de características mentais.
Num texto enigmático do Codex Arundel reitera a importância da essência do nada:
«Entre as grandezas das coisas que existem entre nós, a essência do nada é a mais importante, e a sua função expande-se entre as coisas que não têm ser, e a sua essência reside junto ao tempo, entre o passado e o futuro, e nada tem de presente. Tem sua parte igual à totalidade, e a divisível do indivisível, e o seu poder não se expande entre as coisas naturais, porque esse nada, faltando o vazio, perde o ser, porque o fim de uma coisa é o começo de outra.»18
Esta ambiguidade do «nada» que está junto ao tempo, «entre passado e o futuro, e nada tem de presente», faz recordar a «cortina» que guarda o domínio da Luz, essa fronteira misteriosa entre o mundo das formas (que a nossa mente pode idear facilmente), e o mundo dos números e dos arquétipos que têm o seu ser além da forma, sendo, no entanto, causa das formas.
Reiteramos que a genialidade de Leonardo emerge num contexto renascentista muito próprio onde Florença e Milão, na segunda metade do século XV, tiveram um peculiar protagonismo. Neste quadro havia um especial encanto pelos Grandes da Grécia e de Roma antigas. Falando de arquitectura, proporções, relações entre o macrocosmos, o mesocosmos (a cidade) e o microcosmos, o célebre tratado de Vitrúvio era uma obra incontornável para os buscadores do antigo saber do mundo clássico. Deste modo, no De Architectura do autor latino do século I a. C., é referida a «Relação da circunferência e do quadrado com o corpo humano», o que na época se tornou um desafio a ilustração desta ideia:
«3.3 De modo semelhante, sem dúvida, os membros dos edifícios sagrados devem ter em cada uma das partes uma correspondência de medida muito conformemente, na globalidade, ao conjunto da magnitude total. Acontece que o umbigo é, naturalmente, o centro do corpo; com efeito se um homem se puser deitado de costas com as mãos e os pés estendidos e colocarmos um centro de compasso no seu umbigo, descrevendo uma circunferência, serão tocados pela linha curva, os dedos de qualquer uma das mãos ou dos pés.Igualmente, assim, como o esquema da circunferência se executa no corpo, assim nele se encontra a figura do quadrado; de facto, se medirmos da base dos pés ao alto da cabeça e transferirmos essa medida para a dos braços abertos, será encontrada uma largura igual à altura, como nas áreas definidas em rectângulo com o auxílio do esquadro. 4. Portanto se a natureza compôs o corpo do homem de modo que os membros correspondessem proporcionalmente à figura global, parece que foi por causa disso que os antigos estabeleceram que nos acabamentos das obras houvesse uma perfeita execução da medida na correspondência de cada um dos membros com a aparência geral da estrutura.»
Foram vários génios do Renascimento que aceitaram o repto: Albrecht Dürer, Cesare Cesariano, Francesco di Giorgio, entre outros. Porém, somente Leonardo incorpora coerentemente no seu desenho as indicações de Vitrúvio, incluindo de forma magistral as relações canónicas entre as partes do corpo humano. É assim que na parte superior deste histórico desenho encontrado num dos seus cadernos de notas, escreveu:
«Vitrúvio, o arquitecto, diz na sua obra sobre arquitectura que as medidas do homem estão distribuídas pela natureza do seguinte modo:
– 4 dedos fazem um palmo;
– 4 palmos fazem um pé
– 6 palmos fazem um codo
– 4 codos fazem um homem, e 4 codos fazem um passo
– 24 palmos fazem um homem
Estas medidas estão nos seus edifícios
Se tu abres as pernas tanto para que a tua altura diminua 1/14 e abres e levantas os braços até que os dedos toquem a linha do topo da tua cabeça, deverás saber que o centro das tuas extremidades separadas está no teu umbigo.
O espaço que se encontra entre as pernas será um triângulo equilátero.»
E abaixo do desenho:
«Um homem abre tantos os seus braços até à sua altura. Desde que surge o cabelo até ao extremo da barba é a décima parte (1/10) da altura de um homem. Desde o extremo da barba à parte superior da cabeça é um oitavo (1/8) da altura do homem. Desde a parte superior do peito até ao extrema da cabeça será 1/6.
Desde a parte superior do peito ao surgimento do cabelo será 1/7 de todo o homem.
Dos mamilos até o topo da cabeça será um quarto do homem (1/4)
Na largura total dos ombros conterá em si a quarta parte (1/4) de um homem. Do cotovelo até a ponta da mão, estará a quarta parte (1/4) do homem; e do cotovelo até o final das costas (a axila) será a oitava parte (1/8) daquele homem. Toda a mão será a décima parte do homem (1/10); o membro viril nasce no meio do homem. O pé é a sétima parte (1/7) do homem. Da sola do pé até abaixo do joelho haverá um quarto do homem (1/4). De baixo do joelho até o nascimento do membro será um quarto do homem (1/4). As partes que são da parte inferior do queixo ao nariz e da linha do cabelo às sobrancelhas são, em cada caso, semelhantes e, como a orelha, um terço (1/3) do rosto.»
Estamos perante uma obra-prima da humanidade, ainda só parcialmente descodificada.
É claro que encontramos neste microcosmos-humano-modelo a mesma ideia do Cânone de Policleto, escrito cerca de quatro séculos antes de Vitrúvio, obra perdida não obstante referido o seu conceito por Galeno, no seu Placitis Hippocratis et Platonis:
«A beleza (…) não está na simetria dos elementos [do corpo humano], mas na adequada proporção entre as partes, como por exemplo dos dedos uns para com os outros, estes para com a mão, esta para com o punho, este para com o antebraço, este para com o braço, e de tudo para com tudo, como está escrito no Cânone de Policleto. Tendo-nos ensinado nesta obra todas as proporções do corpo, Policleto corroborou seu tratado com uma estátua, feita de acordo com os princípios de seu tratado, e ele chamou a estátua, assim como o tratado, de Cânone.»19
Passando a analisar alguns aspectos simbólico-geométricos deste Homem de Vitrúvio de Leonardo, parece-nos que o primeiro a salientar é a interrogação: será que estamos face a uma representação da dupla natureza humana? Como disse Paulo, «O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem (anthropos) provém do céu», (1 Coríntios 15:47). O homem do círculo é o celeste, no seu umbigo (omphalós) encontra-se o centro da circunferência:
E o homem da terra, ou a sua natureza terrestre encontra-se no quadrado, sendo os genitais o centro deste quadrado:
Parece-nos assim claro um velho princípio da geometria sagrada, o microcosmo humano, muitas vezes simbolizado pela estrela de cinco pontas, que cria a ponte entre o quadrado da terra e o círculo do céu. Por esta razão, Deus como arquitecto, na Idade Média, aparece representado com o compasso e não com o esquadro. Claro está, a divindade desenha círculos, não quadrados, círculos-ideias que funcionam como os arquétipos que os humanos como pontífices poderão materializar na terra com a necessária rectidão. Por esta razão, em termos simbólicos, a inviabilidade da construção geométrica da quadratura do círculo significa que o círculo não se pode unir directamente ao quadrado, necessita de um intermédio; esse mediador é a força-espiritual-na-matéria, aquela que emerge no ser humano espiritualmente renascido.Neste sentido, o desenho do génio de da Vinci é visto como uma tentativa de realizar a aproximação possível à quadratura do círculo, ou seja, construir um círculo e um quadrado com áreas iguais. Terá cometido um erro de cerca de 7%. No original, o círculo tem 11 cm de raio, o que ao nível da quadratura do círculo pede um quadrado com um lado de 19,50 cm (aproximação às centésimas). O quadrado do desenho tem 18,15 cm. Vítor Murtinho20 (Departamento de Arquitectura da UC) propõe que Leonardo tenha partido da dupla vesica piscis para construir este desenho:
Como se verifica na imagem, pelo método da «quadratura do círculo» da dupla vesica piscis, uma circunferência de 11 cm de raio gera um quadrado com um lado de 18,10 cm, que é praticamente a relação que encontramos no Homem de Vitrúvio de Leonardo. Tem um erro insignificante de cerca de 0,28 %. Curiosamente Lima de Freitas21 refere a mesma construção geométrica de relação entre o quadrado e o círculo realizada pela dupla vesica piscis no rito de fundação de um templo hindu, citando o Manasara-Shilpa-Shastra. Porém, neste Homem de Vitrúvio parecem radicar muitos segredos, um deles, arrebatador, é a verdadeira quadratura do círculo22 com uma incrível aproximação de cerca de 0,2 %. Verifiquemos como:
Portanto, tendo a circunferência com o raio de 11 cm, o quadrado com o lado de 18,15 cm unida ao círculo na base (esquema geométrico base do Homem de Vitrúvio de Leonardo da Vinci), marcamos um ponto A na intersecção em baixo da circunferência com o quadrado. Unindo o ponto A ao ponto B, no cimo da circunferência (vide desenho acima)23, temos o lado praticamente exacto da quadratura deste círculo: 19,46 cm. O correcto será 19,50 cm (aproximação às centésimas), com um erro de 0,2 %!
Aceita-se que Leonardo da Vinci realizou este desenho em 1490, o mais tardar em 1492. Portanto, antes de conhecer o seu futuro amigo Luca Pacioli, o que terá acontecido em 1496. E só cerca de 12 anos mais tarde, pensa-se que em 1504 (Codex de Madrid II, folio 112r), escreve que teve a revelação da quadratura do círculo numa noite de S. André:
E continuou a desenhar aproximações da relação entre o quadrado e o círculo até ao final da sua vida. Veja-se para o efeito o estudo de Anna Baldi, Sulla quadratura del cerchio. Parece que da Vinci possuía alguns segredos que nem nos seus cadernos de notas registou ou desenhou. Ou deixou somente pistas. Escreveu ter encontrado treze formas de quadrar o círculo…
O encontro em Milão com Luca de Pacioli foi deveras significativo para Leonardo. Foram muito próximos nos últimos anos do século XV, precisamente num período em que Leonardo se dedicou intensamente aos estudos matemáticos, geométricos e pitagóricos. Fascinava-o tanto descobrir segredos da Natureza como resolver enigmas. Pacioli escreveu o célebre tratado, Divina proportione, que inclui uma série de notáveis ilustrações de Leonardo da Vinci.
Esta Divina Proporção é a chamada proporção áurea, ou razão de ouro, Phi (1,618), assim em écfrase por Euclides nos seus Elementos, VI:
«Diz-se que uma recta está dividida em média e extrema razão quando o comprimento da linha total está para a parte maior como esta parte está para a menor.»
No início do seu tratado, Luca Pacioli faz uma leitura teológica desta proporção divina:
«1 – Esta proporção (razão) é uma e nada mais que uma. Segundo toda a escola teológica e filosófica, esta unidade é o próprio epíteto de Deus.
2 – Correspondência com a Santíssima Trindade: Como in divinis há uma mesma substância entre três pessoas, isto é, Pai, Filho e Espírito Santo, da mesma forma uma mesma proporção (razão) deste tipo pode sempre ser encontrada entre três termos. [A, B, e A+B]
3 – Como Deus não pode ser definido e nem compreendido por palavras, também este tipo de proporção não pode ser determinado por número inteligível, nem ser representado por número racional.
4 – Assim como Deus não pode mudar, e é tudo em tudo e está em todas as partes, esta proporção também é invariável em toda quantidade.»
Mais à frente transmite uma visão muito peculiar da proporção áurea que a relaciona com a quinta-essência, o quinto elemento, uma força espiritual de Vida que vai outorgando ser a toda a natureza:
«Como Deus confere ser à virtude celestial, também designada por “quinta essência”, e por meio dela aos outros quatro corpos simples, ou seja, aos quatro elementos terrestres … e assim por meio destes a todas as outras coisas na natureza. Assim, esta nossa proporção é o ser formal (de acordo com o Timeu) do céu, atribuindo-se a ele a figura do sólido chamado Dodecaedro, também conhecido como o sólido de doze pentágonos.»
Iremos encontrar a proporção áurea amiúde tanto na pintura como nos desenhos dos Cadernos de Notas de Leonardo da Vinci.24
Para além do célebre sfumato, com os seus magistrais degradês – para o «discurso mental» de Leonardo com a sua visão holística da integração de todos os seres no fluxo da vida, tudo está conectado, portanto não há fronteiras estritas entre os seres – as suas pinturas assentam numa matriz geométrica que logo através da sua genialidade recebem vida e um dinamismo contemplativo, com um especial poder de comover o coração humano e a sensibilidade profunda da alma. Para os renascentistas, o belo tinha a faculdade primordial de transformar o instinto em Amor. Esse Amor era cego não porque não visse, mas sim porque via além da matéria, via no invisível. Eram verdadeiros mestres na inteligência do coração, faculdade destes grandes magos da arte e das ideias que bem nos pode inspirar.
O círculo, o triângulo e o quadrado são as figuras geométricas estruturais da matriz de Leonardo. O círculo, a curva, como já vimos são símbolos relacionados como mundo das Ideias, dos Arquétipos que surgem do sopro (pneuma) de Deus, signos do todo, do mundo do divino que existe para além do espaço-tempo. O triângulo é ao mesmo tempo a trindade como Triplo Logos Solar, e o Homem Celeste, aquele que se inscreve no círculo, a Força espiritual que se chega a manifestar no quadrado da terra. Este quadrado está desde logo simbolizado no próprio quadro do pintor (quadrum), na tela da manifestação que irá receber a imagem pintada pelo co-criador que é o próprio artista-filósofo. Assim, esta conjugação entre círculo, triângulo e quadrado recorda inevitavelmente o Ponto de Bauhütte de origem medieval, na quadra transmitida pelo arquitecto Ernest Mössel:
Um ponto que está no círculo
E se põe no quadrado e no triângulo.
Conheces o ponto? Tudo vai bem.
Não o conheces? Tudo está perdido.
Ou seja, o verdadeiro filósofo pitagórico-platónico é aquele que consegue estabelecer dentro de si um axis, um eixo de consciência que conecta o Todo (círculo) com a sua tríade divina interna (triângulo) e o plano da manifestação terreno (quadrado).
Estabelecida a matriz de inspiração pitagórica, urge insuflar de vida e beleza a tela, assim Leonardo marcava os pontos de força como se fossem os pontos de acupunctura da obra, normalmente resultantes das proporções áuricas: 1,618 e 0,618. Já que o Phi está intimamente relacionado com a entrada do fluxo de vida na manifestação. Também idealizaria o ponto de fuga da perspectiva à maneira renascentista, o que dá profundidade a esse fluxo de vida.
A Adoração dos Magos, a sua primeira grande obra concebida e esboçada pouco antes dos trinta anos e da sua mudança de Florença para Milão – onde viria a conhecer Luca Pacioli -, ficara inacabada, mas mesmo assim é uma obra-prima, resultado do seu génio e da formação que recebeu no ateliê de Verrochio. Num estudo prévio que chegou até nós, nota-se bem a aplicação do ponto de fuga da perspectiva no desenho.
Depois, na pintura em si, redireccionou a linha da perspetiva para oriente (à direita), onde inclusive desenhou um elefante. Em baixo, podemos apreciar esta obra recentemente restaurada (2017), onde o triângulo de luz e o loureiro têm especial protagonismo.
Verifiquemos que à direita, no que designamos como Oriente, está um jovem a marcar esta fronteira, e no lado oposto, a Ocidente, um ancião. Precisamente no centro do quadro está a Virgem Maria, eixo do triângulo central de luz, no qual estão dentro ou próximos os três reis magos. Por baixo do arco de circunferência está o mundo humano protegido pelo nascimento do Salvador (Soter) e o grande loureiro como símbolo da árvore reverdecida.
Vejamos na imagem25 acima como a proporção áurica equilibra e dá sentido à imagem, sendo que o arco do Salvador e o loureiro são marcações-chave desta obra de arte.
Wolfgang Wildgen26 realizou um estudo interessante sobre o dinamismo geométrico de Leonardo da Vinci. A geometria dinâmica d’A Adoração dos Magos está bem sintetizada nesta imagem esquemática:
Anos depois, entre 1483 e 1486 pintava a primeira versão da Virgem dos Rochedos, hoje em exposição no Louvre. Claramente, uma das grandes obras-primas da história de arte.
A gruta onde se dá nascimento ao mistério, é o espaço privilegiado para o pintor usar de modo sublime a técnica do chiaroscuro, numa notável conjugação de luz e sombra.
As quatro personagens representadas estão integradas nas linhas de força de um triângulo, que por sua vez está integrado no rectângulo, o qual se irá ligar ao semicírculo de uma espécie de cúpula de rochedos encimada pelo azul do céu. Conjugação do recto com o curvo na vertical, seguindo um esquema áurico, conforme podemos ver na imagem:
Note-se que o anjo é a única personagem que interpela o observador da pintura, apontando com o indicador directamente para João Baptista:
Este detalhe seria retirado na segunda versão desta pintura que hoje se encontra na National Gallery, Londres.
Neste caso da Virgem dos Rochedos, Wildgen propõe uma estruturação dinâmica com base no tetraedro (pirâmide formada por 4 triângulos equiláteros; sólido platónico representativo do elemento fogo):
A Última Ceia é outra obra incomparável de Leonardo, e repleta de significado. Elaborada em pleno período de amizade com Luca Pacioli, reflecte profundos conhecimentos de astrologia27 e numerologia, numa clara assunção da relação viva entre o macrocosmos cósmico e o microcosmos humano.
Os doze apóstolos estão representados em 4 grupos de 3 (4×3=12), simbolizando cada um um signo do zodíaco e compondo cada grupo de 3 uma estação do ano. Revela-se-nos assim o movimento do ano solar a começar à direita, Primavera, e a finalizar à esquerda, no Inverno.
No centro, Cristo-Sol, em forma triangular. O seu olho direito é o ponto-chave de toda a obra:
Repare-se como Cristo-Sol, signo do Logos Solar, está integrado num triângulo direcionado para cima, sendo que entre Ele e João, encontramos outro triângulo, este virado para baixo. Temos assim, os dois planos da Luz espiritual, plano subjectivo do Cristo-Sol (triângulo virado para cima), e plano da manifestação no mundo objectivo (triângulo virado para baixo).
O pentágono pode ser visto como símbolo do microcosmos realizado, soma simbólica do quadrado com o triângulo. Nas paredes encontramos esse 4, quatro tapetes de cada lado. E o 3, nas três janelas por onde entra a Luz. Este 4+3 é sintetizado no 5, cuja sombra geométrica é o pentágono, ou a estrela de cinco pontas.
Por último, como exemplo do pitagorismo na pintura em Leonardo da Vinci, referimos o sublime Salvator Mundi. A simplicidade sublime deste Cristo andrógino é tão absoluta que nos transporta rapidamente para a dimensão do inefável.
O símbolo desse Todo espiritual é a esfera transparente com os seus misteriosos três pontos brancos a formarem um triângulo invisível em perspectiva. Ele é o Senhor desse mundo de transparência cósmica onde habita a tríade divina. Aqui não há dor nem sofrimentos, somente serenidade dessa dimensão do inefável.
No artigo supracitado, o professor Jorge Ángel Livraga transmite-nos que, no «Anatomia venarum o próprio Leonardo cita e relaciona o Macrocosmos com o Microcosmos e fala da Árvore da Vida, que dá forma a todas as coisas.» Esta noção da «Árvore da Vida que dá forma a todas as coisas» é fundamental para compreender o grande génio de da Vinci.
Neste enfoque pitagórico, como dizia Pacioli, há uma fonte de vida espiritual que vai dando ser a todas as coisas, descendo pela Árvore da Vida. Recordemos que a Árvore da Vida tem, simbolicamente, as raízes no céu. E o pintor, como co-criador, repete esse movimento vertical da criação.Num dos seus primeiros óleos (1475-1478), o retrato de Ginevra de Benci, Leonardo começa por pintar no verso o lema do seu possível encomendador, «virtus et honor» (virtude e honra), o humanista Bernardo Bembo que nutria amor platónico por esta dama florentina. Porém, mais tarde, modifica-o para «virtutem forma decorat» (a beleza adorna a virtude).
Aderia assim ao velho lema platónico e clássico da kalokagathia (kalos, belo + agathos, bom, virtude). kalos kai agathos: belo e virtuoso. Por isso asseverava Leonardo: «Se o corpo humano te parece uma obra maravilhosa, considera que nada é face à alma. Verdadeiramente todo o homem sempre incorpora algo de divino.»28
A estética e a ética unidas à liberdade interior da alma abrem portas a verdadeiros prodígios de ressonância arquetípica. Nessa ressonância está sempre latente Eros, daí a misteriosa relação entre o belo e o amor.
Muito ainda faltará por estudar nos cadernos de notas deste gigante da humanidade. Nesta área assinale-se também a sua predilecção pelo octógono no âmbito da arquitectura sagrada29, as suas tentativas para encontrar a solução para a duplicação do cubo30, o seu gosto pela geometria da hoje chamada «flor da vida», símbolo milenar.
Notas: