Lilavati, Matemática e Poesia juntas

O Lilavati é um manual de matemática escrito por Bhaskara (1114-1185) com tal impacto na cultura da Índia que até o início do século XX era o texto de matemática ensinado aos jovens, e só gradualmente foi substituído pelos tratados de matemática ocidentais, especialmente da linha inglesa.
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Baseia-se, é claro, em matemáticos hindus anteriores, como Brahmagupta (século VII). Bhaskara  teria-o escrito para a sua filha, como entretenimento e consolo diante do seu casamento frustrado, embora não se saiba se isso é histórico. Quando o imperador Akbar o traduziu para o persa, no século XVI, já incorporava uma bela lenda:

“O horóscopo da filha recém-nascida do Mestre Bhaskara previu que a linda criança não conseguiria desfrutar das delícias de um casamento. Quando Lilavati cresceu em modéstia, inteligência e beleza, o seu compromisso material foi determinado.No dia marcado para a comemoração, Lilavati, impaciente, brincava com o vestido na borda do relógio de água que marcaria tão esperado momento. O artefacto tem no fundo um orifício por onde penetra a água.Quando todo o relógio estivesse submerso, chegaria o momento de se casar.Quase no minuto fatal, uma pérola do seu vestido caiu. O orifício ficara entupido e a hora propícia nunca chegou. Lilavati nunca se casou. O pai da desafortunadamenina, para seu conforto e felicidade dela, um livro escreveu que Lilavati se chamou .*

Lilavati significa em sânscrito “mulher bela e encantadora” e existem comentadores desta obra que sugerem que se trata mesmo da personificação da Matemática.

Os textos estão na forma de sutras, breves máximas que fornecem a solução sem se deter no procedimento nem como foi alcançado. Ou dizem como, mas sem detalhes. É evidente que este trabalho deve ser sempre acompanhado de uma explicação oral. Hoje é necessário que convertamos essa linguagem poética na linguagem matemática atual se quisermos seguir o que diz.

As suas 279 estrofes em 13 capítulos incluem problemas, exemplos e explicações, introduzidas por uma oração ao deus da Sabedoria, Ganesha, que diz assim:

“Eu dirijo a minha oração ao deus que tem rosto de elefante e diante de cujos pés estão multidões de outros deuses, em gratidão rendida por toda felicidade que procuram os seus devotos, a quem ele dá a conhecer como superar cada obstáculo. As leis com as quais operamos ao manusear a tabela, procuro colocar em verso, em estrofe clara e breve, para que os conhecedores possam desfrutar de sua beleza.”

Os problemas e soluções que levanta estão cinco ou mais séculos à frente da matemática ocidental, e o que mais encanta é a sua poesia e até a sua originalidade. Descreve unidades de medida, operações básicas (adição, multiplicação e suas inversas), os quadrados, cubos e suas raízes, operações com frações, equações usando o processo inverso, equações de segundo grau, regras de três diretas e inversas, simples e compostas, regras de capital e juros, ligas, combinatória (tomando elementos de “n” a “n”), séries aritméticas e geométricas, triângulo retângulo e triplos pitagóricos e euclidianos, determinação geométrica de meios harmónicos, fórmula de Brahmagupta e Heron, determinação da área de triângulos, losangos, trapézios, círculos, volumes de esferas, discos, prismas, trigonometria plana, equações diofantinas (método pulverizador), permutações, etc.

Nos ensinamentos e nos exemplos há muita poesia e delicadeza. Escolhemos três exemplos, entre muitos.

Ex.1 Permutações

“Nosso amado Deus Shiva recorre a estas dez armas: armadilhas, arpões, serpentes, maças, clavas, focinheiras, dardos, lanças, flechas, arcos, e uma a uma ele as sustenta cada qual com as mãos. Quantas estátuas diferentes do deus Shiva existem? De quantas maneiras diferentes nosso amado Deus Vishnu segura seus quatro objetos: concha, disco, clava e o tão apreciado lótus?”

Em Shiva, a solução é uma permutação desses dez elementos sem repetição:

P10 = 10! = 3.628.800

E o caso de Vishnu, de 4 elementos:

P4= 4! = 24

Curiosamente, o deus Vishnu tem 24 nomes no seu ritual diário.

Ex. 2 Triângulos retângulos e teorema de Pitágoras

“A brisa vem procurar um lótus num tanque que fez para ir com ela. Eles foram juntos até a borda do vidro, onde o ar não penetra. Se soubermos a que altura o lótus se projeta e também quão distantes estão seus caminhos, diga-me, menina deliciosa, a profundidade do tanque e a altura desse lótus que se deixou apaixonar.”

Ex. 3 Equações

“Um casal estava em pleno jogo amoroso quando o colar de pérolas que a jovem usava quebrou-se. Um terço das pérolas acabou no chão e um quinto permaneceu na cama. Ela ainda manteve um sexto de todas as pérolas e seu amado conseguiu salvar um décimo em suas mãos. Seis únicas pérolas permaneceram no fio de seda. Quantas pérolas, Lilavati, compunham o colar?”

Poderíamos resolver assim:

Mas ele usa o mesmo método que era usado na matemática grega, que é a determinação do desconhecido por suposição e que o próprio Bhaskara formula da seguinte forma:

“Para descobrir o que você não sabe, comece assumindo que vale alguma coisa e continue as contas. Os ajustes necessários são feitos ao valor inicial para chegar à verdade. Você encontrará finalmente a verdade, começando com a suposição, quando aplicar uma facilidade tão útil.”

Assim, ele o faz, aplicando cuidadosamente a proporcionalidade:

“Suponhamos que o número de pérolas é 1. Sabemos que o número final é 6; então o número de pérolas restantes é:

Se pensarmos em comparação com a matemática ocidental deste século, o conhecimento sobre o zero é surpreendente, não apenas no seu valor posicional, mas nas operações que podem ou não ser feitas com ele.

“Se você adicionar zero a um número, não haverá adição.

É inútil a potência de zero, que é sempre zero. 

Se for multiplicado por zero ou se for dividido por ele, é melhor que você não pretenda obter um resultado, mas arraste a expressão indicada até o final.

Dividindo por zero vamos ao infinito. O infinito não muda com adição ou subtração: como Vishnu, ele é impassível a nascimentos e mortes.”

O que é expresso na terminologia atual como:

Felizmente encontramos excelentes vídeos explicativos com os problemas do Lilavati, recomendo, por exemplo, os seguintes:

O lótus submerso no lago

O bambu quebrado

A mansão com 8 portas

O bando de cisnes

O pavão que caça a cobra

Bambu e cordas cruzadas

O problema dos dois macacos

Precisamos, mais uma vez, voltar à poesia da matemática para que, ao invés de ser apenas um exercício racional, também nos permita, através da beleza, abrir os olhos da alma para a intuição daquilo que não morre nem cessa nem nasce, os Arquétipos de Platão, e como dizia o professor Jorge Angel Livraga, “os primeiros arquétipos são os Números”.


  1. Do livro Lilavati, A matemática em verso do século XII. Versão adaptada e ampliada por Ángel Requena e Jesús Malia. Da Biblioteca de Estímulos Matemáticos. ↩︎

Imagem de capa

MS Oriental Indic beta 229 Bhaskara, Lilavati Folha 26. Creative commons

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