“Princípios para o desenvolvimento de uma mente completa: estuda a ciência da arte; estuda a arte da ciência; desenvolve os sentidos, especialmente aprender a ver; percebe que tudo se relaciona com tudo o resto.”
Leonardo da Vinci
Contam as tradições egípcias que o mundo surge das Águas Primordiais, da divindade chamada Nun. No início era o “caos” como lhe chamou o poeta grego Hesíodo, pois nas águas não havia limites, partes diferenciadas, nem formas definidas, pelo menos para a compreensão humana.
Quando esta “desordem” conseguia alcançar a ordem, surgia a vida; do caos se configurava o Cosmos.
A criação, deste ponto de vista simbólico, encontrava o seu reflexo no mundo concreto. Para os egípcios as inundações do Nilo representavam este relato mitológico. Periodicamente, as águas do rio inundavam a terra seca que anteriormente tinha permitido o cultivo de seus alimentos e depositavam limo fértil possibilitando novamente a vida. Durante as cheias do rio Nilo apagavam-se os limites das parcelas que antes existiam deixando um terreno ilimitado sem partes nem limites; portanto, sem forma. Enquanto não tivera limites, repetia-se analogamente o caos primordial.
Na civilização egípcia existia o ofício sagrado do geómetra. Estes eram os sacerdotes que mediam e delimitavam o terreno como um acto cerimonial recreando a ordem do cosmos. Os geómetras fraccionavam as partes e ordenavam o caos. Logo, repartiam com justiça as parcelas onde cada um haveria de cultivar.1
Platão menciona que o cosmos foi ordenado segundo o número e a matemática, como linguagem da natureza, estava presente desde o início. Os gregos, por verem que o universo mantinha certos vínculos, certas relações e proporções harmónicas entre as suas partes, entenderam que era belo e chamaram-no de Cosmos que significa “jóia”. Os filósofos clássicos entenderam que o universo por ser ordenado, belo e harmónico, expressava-se matematicamente.
O universo compreendido desta forma era um grande ser vivo e era uno. A palavra universo provêm de Uni-y-Verso. Um único verso, uma só palavra. É significativa a relação entre a palavra e a criação, pois “No principio era o Verbo (Logos) e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” escreveu São João no seu Evangelho, continuando que “e o Verbo se fez carne e habitou entre nós (…)”. O Logos platónico também é geralmente traduzido como verbo ou palavra; como o falado, mas ao mesmo tempo, como a relação que mantém as coisas unidas e lhes permite existir. O Logos, por sua vez, representa a capacidade da mente do ser humano de captar estas relações e de alguma forma aproximar-se da divindade universal.
Além das inúmeras partes que compõem o cosmos, todas surgem de uma relação primordial que as une a todas as outras. Todas as coisas que existem se relacionam entre si dando parte da unidade na multiplicidade. No dizer de filósofos clássicos, todas as coisas no mundo visível têm vínculos no mundo invisível e a unificação de ambos os planos é possível através da matemática.
Atualmente, o conceito que temos da matemática basicamente se concentra no trabalho com as quantidades. É utilizada como ferramenta de cálculo e medição dos fenómenos no mundo manifestado e visível, no entanto, nem sempre foi assim.
Nicómaco de Gerasa, neoplatónico do século I, perpetuando a tradição pitagórica, explicava em seu livro “Teologúmenos aritméticos” que o número tinha diferentes categorias de acordo com a profundidade com que se estudasse. A casca mais externa era o cálculo, o estudo matemático-silogístico em que hoje nos especializamos. O próximo nível em profundidade constituía-se pela aritmética, onde os números eram estudados como entidades abstratas através das suas representações no mundo visível. A aritmética conformava o estudo das relações entre as partes que formam o universo e a geometria constituiu uma das vias principais nestas investigações. Finalmente, como nível mais profundo se encontrava a aritmologia, a qual constituía a mística do número.
Segundo a concepção pitagórica, os números eram entendidos como arquétipos, como divindades. O número continha os segredos da natureza, as suas leis e configurava a raiz dos símbolos. Os pitagóricos basearam a sua escola na matemática, colocando o número na base do cosmos. Para eles, os números eram princípios, ideias e divindades. Os números eram a essência das coisas, os que davam sentido. O universo expressava-se através dos primeiros dez números representado pela Tetraktys, símbolo de perfeição onde todas as coisas estão em seu lugar cumprindo o papel que lhes corresponde.
Entre os pitagóricos buscava-se compreender a ordem do universo para logo plasmá-lo em si mesmo e tentar ser tão coerente quanto o cosmos. Isto era possível na medida em que aquilo que se entendia teoricamente pudesse ser posto em prática. Assim, a matemática permitia um desenvolvimento moral e humano.
O ser humano era um pequeno cosmos à imagem e semelhança do cosmos completo. Por este motivo, ao entender as leis que regiam a natureza em sua totalidade, era possível encontrar os princípios que regem o próprio ser humano. Mulheres e homens, além disso, eram os únicos seres vivos da natureza capaz de interpretar estas leis (arquétipos) e representá-las no mundo manifestado e em si mesmo.
Embora estas noções matemáticas sejam conhecidas no Ocidente através da escola pitagórica, eram partilhadas no Egipto, na Mesopotâmia, na Índia e em diversas culturas ao redor do mundo. Por exemplo, podem ver a compreensão matemática sobre a ética dos incas, pois mencionavam que a raiz de 2 (a hipotenusa de um triângulo retângulo cujos lados são a unidade) é o “caminho da verdade”; a ponte entre o que aparentemente somos como sombras projetadas na terra e o que realmente somos em essência.2
Como disse José Carlos Fernández2: “Neste contexto, para a cosmovisão pitagórica os números-em-si, ou números ideais, são arquétipos que estão mais além da «cortina» do formal, e não actuam directamente no plano da manifestação. Os entes matemáticos e as figuras geométricas são as suas projecções no mundo imaginal, seres intermédios no processo de manifestação”. Para esta tradição, os números são as expressões mais puras das ideias e as figuras geométricas são as suas sombras. Mas a geometria era decisiva na forma de perceber as analogias que existem na natureza.
Platão no livro VII da República diz que o propósito da Geometria não é apenas medir linhas, superfícies ou volumes, nem as relações entre si, mas elevar o olhar da alma para a contemplação do eterno. A geometria era a ciência e a arte das relações mediante a qual se estudava e interpretava como se relacionava o ser e o existir. Um caminho de pesquisa para encontrar a essência do número.
Tão importante era a geometria nas culturas clássicas que podem encontrar-se até hoje numerosas representações de deuses (estreitamente relacionadas entre si) aos quais atribuía-se este conhecimento.
Entre os egípcios, o Deus Thoth era um Deus da sabedoria e um dador dos números sagrados ao ser humano. Enquanto a deusa Seshat regia a geometria e escrevia sobre as folhas da árvore cósmica os acontecimentos do futuro (relacionados com o destino) e registava os acontecimentos passados (ligados à história). Recordando que a geometria está desde o princípio e rege o vínculo entre o futuro e o passado, pois todas as relações se unificam num único destino universal.
Na China, o herói Fu Xi é o deus da sabedoria e é-lhe atribuída a pesca, a caça e foi o encarregado de transmitir, como Thoth, o conhecimento ao ser humano. Por ser a divindade que permitiu ao homem captar as relações naturais, considera-se pai da humanidade, pois entendiam que o ser humano é tal na medida em que pode penetrar na essência da natureza. Entre outras grandes descobertas são-lhe atribuídas os oito trigramas que configuram o I-Ching ou Livro das Mutações, um escrito sagrado da China milenária que precisamente estuda as relações que regem o mundo em constante transformação, ou seja, o mundo manifestado.
Fu Xi costuma ser representado com sua esposa-irmã Nüwa ao lado de duas antigas ferramentas divinas (por estar na mão dos deuses) relacionadas com a geometria: ele com o esquadro e ela com o compasso. O esquadro permite manter a rectidão, enquanto o compasso permite conhecer e manter as proporções e as relações entre as partes. Ambas as divindades são simbolizadas como duas serpentes entrelaçadas, símbolo da harmonia, semelhante ao caduceu de Hermes. Já que a geometria, por permitir unificar os opostos mediante o vínculo que os une, ajuda a alcançar a harmonia. Por sua vez, estão representados junto a constelações celestes. Na Grécia, as Musas eram divindades que permitiam ao ser humano captar as proporções do céu e recordar o eterno permitindo o acesso ao mundo das ideias. A Musa Urânia, também representada com compasso na mão, era aquela que ajudava a educar o conhecimento da geometria tanto terrestre como celeste. O seu nome, relacionado com o Deus do Céu – Urano – recorda-nos a capacidade humana de poder olhar para cima e despertar o sentido de eternidade; de observar o Sol de dia e as demais estrelas de noite podendo compreender as proporções entre elas.
Também é possível observar imagens medievais onde Deus-Pai é mostrado criando o universo com um compasso. Este dará forma esférica ao universo e o sustentará em seu leito.
A geometria, por buscar as relações para aproximar-se da essência do número, encontrava-se nos fundamentos da ciência, disciplina cuja finalidade original era alcançar o arquétipo platónico do Verdadeiro. A geometria unificava os caminhos do conhecimento humano buscando a estrutura invisível da Natureza.
Nas palavras de Jaime Buhigas, “O homem, como ser individual, percebe o mundo de modo parcial, diferenciado, e, portanto, solidariamente. O todo não é assimilável senão pela percepção de suas partes“. Portanto não se pode entender a parte sem observar o todo do qual faz parte.
Os filósofos clássicos entendiam que, como o universo surge da divisão da Unidade Primeira, a sabedoria também é uma. Embora, assim como múltiplas são as partes do cosmos, múltiplos são os caminhos para o acesso ao conhecimento. Mas o conhecimento é ilimitado se alguém ficar na superfície; pois o mundo manifestado muda constantemente. Tentar aproximar-se da sabedoria procurando nas formas mutáveis poderia fazer com que o filósofo fosse vítima dos enganos de Maya.3
A geometria permitia sintetizar os conhecimentos e assim aproximar-se da essência, ou seja, da sabedoria. O filósofo clássico era aquele que buscava a sabedoria penetrando na raiz dos fenómenos para reencontrar-se com aquilo eterno, invariável e imperecível que está subjacente à natureza.
Nas culturas clássicas a matemática era sagrada e fundamental, pois estava presente desde o princípio e mediante seu estudo podiam tirar-se os véus com que a realidade se oculta no mundo dos fenómenos. E assim, o ser humano, ao captar a ordem do cosmos, tornava-se um agente activo da história, podendo ordenar o mundo.
Notas: