Máximo divisor comum e os passos da dança

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A matemática e a arte, cruzam-se em diversos conceitos, como por exemplo na exploração dos conceitos de caos, de belo, de proporção, de forma, de simetria, de espaço, de ritmo, entre tantos outros. Mas as aproximações e relações entre a dança e a matemática vão mais além. Falar do máximo divisor comum e dos passos de dança é falar da relação da matemática com a música. Atualmente quando se fala desta relação, fala-se da relação de uma ciência com uma arte, pois temos a ideia de que a primeira é essencialmente teórica e a segunda é prática. Associa-se a Matemática ao raciocínio, ao intelecto, e a Música ao talento, ao dom. 

Os músicos usam frequentemente a matemática para entender a estrutura musical, isto levou a aplicações musicais da teoria dos conjuntos, de álgebra abstrata e da teoria dos números.  Por exemplo: a relação das figuras musicais com as frações (definindo a semibreve=1/1, temos a mínima=1/2, a semínima=1/4, a colcheia=1/8,  a semicolcheia=1/16, a fusa=1/32 e a semifusa=1/64); a relação dos compassos com as frações (por exemplo um compasso 2/4 quer dizer que nesse compasso colocamos duas semínimas ou o equivalente à sua duração, também a operação utilizada para construir compassos é a soma de frações com denominador distinto), etc. Alguns compositores até incorporaram a proporção áurea e a sequência de Fibonacci no seu trabalho. Vejamos o caso de Bach que, no fim da sua vida, se interessou pela simetria musical. 

Podemos dizer que algo é simétrico quando se pode transformar e, ao mesmo tempo, manter-se igual (fractais), como quando se roda uma imagem e ela se mantém idêntica.

Ele criou uma série de enigmas, presentes nos seus cânones e fugas, que deveriam ser descodificados para serem interpretados corretamente. Um grande exemplo é o Cânone do Caranguejo que segue uma única linha melódica que é tocada para a frente e para trás simultaneamente.

Geometria dos ritmos musicais segundo Godfried Toussaint.

Mas vejamos como tudo começou:

Todas, ou quase todas, as escrituras sagradas falam de um som criador da manifestação (Verbo, Sabda Brahman, Vâch, Logos), mas, sabemos que o som é vibração, logo o Universo manifestado é um conjunto de vibrações. Esta grande Harmonia Universal é o que sustenta e viabiliza a manifestação dos mundos. Damos-lhe o nome de Lei do Ritmo, e está por detrás de tudo. Neste aparente vazio estão os princípios de todas as coisas. Citando Platão, no Timeu, ”a Alma do Mundo é a matriz a partir da qual a composição de todas as proporções matemáticas é repercutida no Mundo Sensível por ação da inefável providência de Deus.”

Quando falamos na Harmonia Universal ou na Música das esferas estamos a falar de um conhecimento musical ancestral. Uma música cósmica que resulta dos “sons produzidos pelos planetas e que apesar de a ouvirmos, já estamos de tal maneira habituados a ela que se tornou impercetível para os nossos ouvidos, transformou-se no nosso silêncio

Segundo Jâmblico, no século III d.C.: 

“Servindo-se de um poder divino, inefável e de difícil compreensão, Pitágoras aplicava os seus ouvidos e concentrava a sua mente na sublime sinfonia do Universo e ia apenas escutando e entendendo, segundo as suas manifestações, a universal harmonia e o concerto das esferas e dos astros que se movem nelas. Esta harmonia produz uma música mais plena e intensa que a terrena, pelo movimento e revolução sumamente melodioso, belo e variado, produto de desiguais e de muitos diferentes sons, velocidades, volumes e intervalos”.

Jâmblico

Kepler, no Mistério Cosmográfico, também especulou sobre a “admirável proporção entre corpos celestes” e a “bela harmonia que existe entre as partes do cosmos”. Comparou as razões das esferas inscritas e circunscritas nos cinco sólidos platónicos, o tetraedro, o cubo, o octaedro, o dodecaedro e o icosaedro com as razões das orbitas dos seis planetas então conhecidos (contando com a Terra mas excluindo a Lua) e associou-os aos cinco intervalos respetivamente. 

A Música das Esferas segundo Robert Fludd.

Voltando a Pitágoras, podemos dizer, ainda, que ele foi talvez o primeiro a estabelecer um elo entre a regularidade dos eventos celestes e as proporções matemáticas. Ao tentar explicar o funcionamento do mundo estabeleceu

um princípio unificador que estava na raiz de todas as coisas e constituía a causa original do Ser. O princípio original (arché) além do cosmos ele supôs que fosse o número (arithmos). Os pitagóricos acreditavam que todas as coisas eram mensuráveis em termos numéricos e que todos os elementos do universo se relacionavam entre si em proporções (harmonia) numéricas. […] Para os pitagóricos, todo o cosmos é baseado nas relações entre os números 1, 2, 3 e 4. É através do número que a unidade como princípio primordial do Ser se estende para o mundo material e se torna multiplicidade. Mas o mundo material, sendo uma entidade física, deve ter um limite. Este limite é inerente nos números 1, 2, 3 e 4. Eles criam o ponto, a linha, o plano e o volume. Somando-os, 1 + 2 + 3 + 4 = 10, exaurimos os limites da dimensão física. Não há nenhum número além de 10 que não esteja implícito na tétrade. Nada pode ser acrescentado que não exista como uma combinação destes quatro números. A tétrade e a década, portanto, são os modelos da perfeição“.

A lenda conta que um dia, Pitágoras, caminhava pela rua, quando ouviu as marteladas provenientes da oficina de um ferreiro. Aproximou-se para observar e verificou que o som era produzido pela vibração do metal ao ser martelado. A partir daí, fez experiências, investigou as vibrações das cordas e rapidamente conseguiu definir que a frequência do som emitido por uma corda é inversamente proporcional ao seu cumprimento. Se duas cordas do mesmo material e da mesma espessura forem submetidas à mesma tensão, sendo o comprimento de uma igual ao dobro do comprimento da outra, a corda mais curta vibra com o dobro da frequência da corda mais comprida. Isto em termos musicais designa-se uma oitava. 

Um dos textos gregos mais antigos onde aparece uma explicação sistemática das primeiras escalas musicais – Sectio Canonis, ou a “Divisão de um monocórdio”, foi escrito, aproximadamente, em 300 a.C., e foi atribuído a Euclides. Contém uma breve introdução sobre as causas dos sons e as suas alturas enquanto quantidades relativas, algumas proposições/teoremas, expõe o tratamento dos intervalos como razões entre números inteiros e termina com o capítulo sobre a Divisão de um monocórdio.

Euclides também nos deixou um método para calcular o máximo divisor comum (mdc) de dois números, descrito no livro Elementos de Euclides, que ainda hoje é amplamente utilizado. Este método denominado algoritmo de Euclides consiste em fazer sucessivas divisões para encontrar o máximo divisor comum.

Para obter o mdc entre dois números naturais X e Y onde X>Y. Devemos proceder da seguinte forma:

1) Divida X por Y e obtenha o resto R1. Se R1 for zero, o mdc entre X e Y é Y.

2) Se R1 não for zero, divida Y por R1 e obtenha o resto R2. Se R2 for zero, o mdc entre X e Y é R1.

3) R2 não for zero, divida R1 por R2 e obtenha o resto R3. Se R3 for zero, o mdc entre X e Y é R2. …

Se Rn não for zero, divida Rn−1 por Rn e obtenha o resto Rn+1. Se Rn+1 for zero, o mdc entre X e Y é Rn

Verificamos que existe, nos estilos musicais tradicionais, uma característica particular, esta caraterística reflete a preferência pelos ritmos onde as notas estão distribuídas uniformemente no tempo. Vejamos alguns exercícios práticos que ilustram esta situação:

Se designarmos por 0 o silêncio e por 1 uma nota musical, ambos com a mesma duração, 10110011 será um ritmo com 5 notas e 3 silêncios.

Se gerarmos uma série de ritmos combinando as propriedades do mdc entre 12 e:

– 12 notas – o ritmo seria 111111111111, pois 1 à 12/1 = 12

– 4 notas – o ritmo seria 100100100100, pois 3 à 12/3 = 4

– 8 notas – o ritmo poderia ser 110110110110 ou 011011011011, 

Esta característica apresenta uma ligação com o cálculo do mdc pelo método de Euclides, pois podemos observar que o mdc entre 12 e 8 é 4, que é o número de vezes que se repete o conjunto rítmico 110 ou 011. Aplicámos o princípio da regularidade que nos diz que as notas têm que ser distribuídas da maneira mais regular possível e que só pode haver duas distâncias e têm que ser d e d+1. 

Os ritmos produzidos com o princípio de regularidade chamam-se ritmos euclidianos. 

Na realidade gerar ritmos euclidianos é equivalente a resolver o problema de distribuir uniformemente k objetos em n caixas e aplicar a solução no campo do ritmo.

Este problema, de distribuir objetos tão uniformemente quanto possível dentro de um determinado espaço ou tempo, aparece em muitas áreas; surge nos sistemas de aceleradores de partículas, na teoria de escalas diatónicas em música, em computação gráfica, na teoria de cadeias em informática ou em matemática.

A geração de ritmos euclidianos pode ser feita utilizando vários algoritmos (Bjorklund, Clough e Douthett, ou o do vizinho mais próximo) mas todos eles são equivalentes e produzem o único ritmo euclidiano de n pulsos e k notas salvo as rotações.

  1. Primeiro, alinhamos o número de notas e o número de silêncios (7 uns e 10 zeros)
  • A seguir formamos grupos de 7, que correspondem a efetuar a divisão de 17 por 7; obtemos 7 grupos formados por [1 0] – em colunas – e sobram três 0, o que nos indica que no passo seguinte formaremos grupos de 3.
1
 0

0
1
 0

0

0

0

0
000 
  • Fazemos grupos de 3 linhas por coluna:
1
0
0
1
0
0
1
0
0
1
0
1
0
1
0
1
0
  • Continuamos a agrupar em grupos de três:
1
0
0
1
0
0
1
0
0
1111
0000
  • De novo:
1
0
0
1
0
1
0
0
1
0
1
0
0
1
0
1
0

Finalmente para obter o ritmo euclidiano lemos por colunas da esquerda para a direita:

10010100101001010

Seguem-se alguns exemplos de ritmos euclidianos:

E(3,8) – 10010010 – Música cubana (Rumba)

E(5,8) – 10110110 – Ritmo árabe

E(5,16) – 1001001000100100 – Bossa nova

E(7,16) – 1010010101001010 – Samba  Brasileiro

E(5,12) – 001001010101 – Flamenco

E(2,5) – 10100 – Jazz

E(5,11) – 10101010100 – Clássica

Carmen Natan Sheli a dançar flamenco / © Flavio~.

Até aqui falamos e vimos exemplos em relação à matemática e ao ritmo da música, mas que papel pode ter um determinado conceito matemático na dança, na composição de uma coreografia? Os coreógrafos utilizam a matemática para criar composições que produzem determinados desenhos espaciais, desta forma implementam nas coreografias determinadas ideias abstratas, matemáticas, como por exemplo as ideias de harmonia e de simetria. 

E a evolução da dança também pode ser pensada sob a perspetiva da matemática?

Ao longo do tempo foram existindo diferentes conceções de espaço, na relação dança-espaço, como por exemplo as que encontramos no balé clássico, na dança moderna e na dança contemporânea. O balé clássico estrutura-se de acordo com o pensamento da sua época, ou seja, a utilização do espaço destacava algumas figuras centralmente, os primeiros bailarinos (o rei e a rainha), atribuindo-lhes maior importância. 

Segundo o pensamento de Isaac Newton, o espaço onde ocorre o balé estático, é um espaço absoluto, rígido, fixo e independente do tempo e da matéria. 

Na dança moderna e na dança contemporânea é a teoria da relatividade de Einstein que justifica a conceção de espaço. Nesta conceção, o espaço não é separado do tempo, que é a coleção de todos os instantes. O palco não tem centro, nem tem lugares nem bailarinos com diferentes graus de importância, e a quarta parede não é referência para a frente. Qualquer direção pode ser a frente, que agora se relaciona diretamente ao corpo do bailarino, que constrói o espaço a partir dele e da dança que realiza. 

Atualmente os bailarinos dançam com hologramas gigantes, que resultam da evolução da tecnologia de motion capture, entre outras. Esta conceção revela este novo tipo de organização e este novo modo de entender a relação entre corpo e espaço e, ainda, chama a atenção para outras dimensões do espaço.

“O que há de comum na estética de todas as artes e na Matemática, é o desaparecimento de informações parasitas, de barulhos de fundo, numa palavra a diminuição da entropia. A comparação de um belo raciocínio com a dança em que cada movimento termina o precedente e inicia o seguinte, não é destituída de sentido.”

Com base em todas estas evidencias não podemos deixar de afirmar que o “Som e o Número caminham enlaçados”.

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