Número de Ouro: Parte I – Coelhos e Fibonacci

"Um homem tem um par de coelhos juntos, num certo local fechado e alguém deseja saber quantos coelhos são gerados a partir do par inicial, durante um ano, considerando que os coelhos se reproduzem após um mês de nascimento." O texto acima é uma tradução livre do famoso problema sobre coelhos, proposto por Leonardo Fibonacci naquela que é sua obra-prima, denominada Liber Abaci – O Livro do Cálculo. O parágrafo supramencionado será a base na qual assentará todo este artigo.
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1. Fibonacci e enquadramento histórico

Leonardo Fibonacci, ou então, Leonardo de Pisa foi um matemático que nasceu em Pisa em 1170. Foi um grande matemático, considerado por muitos como o matemático europeu da idade média, dados os contributos feitos por este, nos quais se incluem a introdução, na Europa, do sistema numérico decimal (algarismos do 0 ao 9 formam a base para a escrita de qualquer número) – ainda hoje usado por nós –, e a famosa sequência – Sequência de Fibonacci –, da qual surgem uma quantidade de propriedades e consequências que nos permitem compreender com melhor profundidade o mundo em que vivemos.

O seu pai era um homem que trabalhava na área do comércio e, por isso, desde novo que Leonardo entrou em contacto com este mundo e com a matemática inerente ao mesmo, tendo trazido para a Europa os procedimentos e algarismos que os matemáticos indianos e árabes (como al-Khwarizmi) já conheciam e utilizavam amiúde. Lembrando que nesta altura, os simples cálculos relativos ao mundo comercial eram realizados com algarismos romanos (imagine-se a dificuldade com que não deveriam realizar os comerciantes as mais elementares contas).

Dedicou-se a estudar matemática durante a sua vida, estudo esse que passava pela resolução de problemas e publicação de obras relativas aos diferentes campos da matemática: geometria e aritmética. Ao todo, publicou seis livros, sendo que o ganha maior destaque é o Livro do Ábaco ou do Cálculo, Liber Abaci, onde Fibonacci apresenta o sistema de base decimal e o problema dos coelhos à Europa, dois importantes marcos para o campo da matemática.

Fibonacci morre em 1250, mas os seus contributos permanecem até aos dias de hoje, não só pela sua atualidade como pelo seu impacto no mundo que nos rodeia.

2. O problema dos coelhos

Das contribuições de Fibonacci, aquela que ganhará mais foco neste texto é a que está relacionada com o problema dos coelhos. Para conseguirmos dar uma resposta a este problema, vamos esquematizar os dados do mesmo, considerando que os coelhos podem e conseguem reproduzir-se após o primeiro mês de nascimento; que nenhum coelho morre no processo e que existem sempre machos e fêmeas em número suficiente que possibilite essa reprodução.

Esquema 1: Número de pares de coelhos mês após mês

Observando o esquema 1, conseguimos entender o que está expresso em linguagem natural, para agora lhe darmos uma roupagem mais simbólico-matemática. No primeiro mês temos o nosso par de coelhos “originais” que não se reproduzem dado que neste problema os coelhos só se reproduzem a partir do 2.º mês de nascimento, inclusive. Assim, no 2.º mês contamos ainda com o mesmo par de coelhos, que neste momento, já originam descendência e, por isso, temos no 3.º mês dois pares de coelhos (os originais e o crias destes).  Quando chegamos ao 4.º mês, o par original de coelhos continua a produzir descendência dando origem ao terceiro par que surge neste mês. Por seu lado, o par que surgia como a “primeira linhagem” do par de coelhos original, ainda não se reproduz dado que ainda não tem idade para o fazer. Esta lógica de reprodução de coelhos permanece durante o ano para o qual era feita a pergunta do problema. Traduzamos, então, o esquema 1, em linguagem matemática, substituindo as imagens dos coelhos por números:

Esquema 2: Tradução para linguagem matemática do esquema 1

Não preenchemos o restante do ano, mas convidamos ao leitor a fazer esse pequeno exercício, esperando que tenha chegado à seguinte conclusão:

Esquema 3: Número de par de coelhos ao fim de um ano

Chegamos, então à resposta ao problema dos coelhos: passado um ano, e admitindo que tínhamos condições ótimas (sem mortes e possibilidade de reprodução no mês seguinte ao nascimento), verificamos que obtemos 144 pares de coelhos, isto é, 288 coelhos.

3. Sequência/Sucessão de Fibonacci

Os números que estão associados aos pares de coelhos que são gerados mês após mês e que surgem na linha debaixo da tabela, constituem a Sucessão de Fibonacci:

1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, 233, …

3.1. Sequência vs sucessão e notação matemática

Antes de avançarmos, interessa distinguir uma sequência de uma sucessão. Ambas são listas de números aos quais estão associados um padrão e uma ordenação. Quando mencionamos uma sequência estamos a falar de uma lista finita, i.é, que tem um fim; no caso desta lista não ter um fim, denominados de sucessão1.

A cada elemento que constitui uma sequência/sucessão, damos o nome de termo e, cada termo, tem associada uma ordem, ou seja, a posição em que surge. Por exemplo, no caso acima, o termo 3 está associado à quarta ordem.

No que diz respeito ao padrão que cada sequência/sucessão tem associado, quando conseguimos compreender como surge o termo seguinte através do anterior, conhecendo o primeiro termo, designamos essa regra por lei de formação. Tendo, novamente, o exemplo do problema dos coelhos como base, percebemos que o termo seguinte é obtido somando os dois anteriores: se observarmos o termo de ordem 3 (o 2) percebemos que este foi obtido somando 1 com 1, termos de ordem um e dois, respetivamente.

Com a observação do parágrafo supra, conseguimos definir qualquer termo da sequência/sucessão, à custa dos dois anteriores. Por exemplo, o 34 resulta da soma do 13 com o 21. Quando fazemos isto, ou seja, quando obtemos um termo conhecendo o termo anterior, estamos a definir a sequência/sucessão por recorrência, que no caso da sequência/sucessão2 de Fibonacci tem o seguinte aspeto3:

Como o leitor já deve ter compreendido, esta definição por recorrência nem sempre é prática porque para conhecer, por exemplo, o termo de ordem cinquenta, precisamos de já ter os quarenta e nove termos anteriores determinados.

Assim, todas as sequências e sucessões tem associado um termo geral, que nos permite determinar, como o próprio nome indica, um termo qualquer, genérico, sem precisar de ter todos os anteriores determinado.  No caso em estudo – Sequência/Sucessão de Fibonacci –, o termo geral é:

Esta sequência/sucessão é efetivamente diferenciada daquelas que costumamos estudar porque, para a generalidade das sequências/sucessões basta conhecer o primeiro termo e compreender a regra que lhe está associada para conseguir fazer “nascer” a lei de formação. No caso da sequência/sucessão de Fibonacci, precisamos dos dois primeiros termos para conseguirmos fazer esta definição por recorrência (à custa dos anteriores). Para além disto, de forma geral, a lei de formação é a base para se construir o termo geral, que costuma apresentar-se de uma forma mais simpática e intuitiva que este. No caso da sequência/sucessão de Fibonacci precisamos de conhecimentos um pouco mais avançados de matemática para compreender de onde surge. Antes de terminar o presente artigo, vamos conseguir construir uma intuição sobre ele, dado que o mesmo se relaciona com o número de ouro, contudo, a explicação integral sobre a génese deste termo geral não será abordada.

3.2. Regularidades decorrentes da sucessão de Fibonacci

Para além de termos observado que os termos são construídos à custa dos dois anteriores, existem outras regularidades que interessam investigar. Neste texto, vamos observar apenas duas situações: o que acontece quando fazemos a diferença e o quociente entre os termos.

Comecemos por verificar o que acontece quando ao invés da soma, realizamos a diferença entre os termos:

1-1=0

2-1=1

3-2=1

5-3=2

8-5=3

13-8=5

 Observando os resultados obtidos e admitindo que faríamos os cálculos ad infinutum percebemos que voltamos a ter os números que constituem a sucessão de Fibonacci, sendo o primeiro termo – 0 – o único diferente e que não aparece na sucessão “original” porque de resto todos os outros a integram.

Vejamos, agora, o que acontece quando fazemos o quociente entre termos consecutivos:

Entendemos que à medida que vamos fazemos os quocientes com termos de ordem maior da sucessão de Fibonacci, estes vão-se aproximando cada vez mais de um número e percebemos isso porque conseguimos verificar que as casas decimais vão estabilizando à volta desse mesmo número, conforme vamos aumentando a ordem dos termos com os quais estamos a realizar a divisão. Se prosseguíssemos o processo infinitamente, íamos conseguir chegar com precisão ao número em causa: o número de ouro.

4. Número de Ouro

O número de ouro, denotado pela letra grega phi, ϕ/, é um número irracional, i.é, uma dízima infinita não periódica5 cujo conhecimento e aplicabilidade vai muito além da matemática. O valor exato do número de ouro é dado pela expressão:

O número de ouro é o resultado da razão áurea que surge da proporção áurea, que emerge da divisão de um segmento de reta em dois pedaços de comprimentos diferentes, mas no qual podemos observar a seguinte relação entre eles: o comprimento de um segmento de reta está para o comprimento da sua parte maior da mesma forma que o comprimento da sua parte maior está para o comprimento da sua parte menor. Facilita-nos muito se tivermos a representação geométrica desse segmento:

Algebricamente, a frase de cima traduz-se por:

sendo o a a medida do comprimento do segmento maior, b a medida do comprimento do segmento menor e a + b a totalidade da medida do comprimento do segmento que estamos a dividir.

O número de ouro é cada uma das razões6 acima. A igualdade7 que se estabelece entre estas duas razões permite determinar com exatidão o valor do número de ouro.

Para facilitar os nossos cálculos, vamos assumir que o segmento de reta mede 1 unidade de comprimento, sendo a = x e b = 1 – x, então fica:

Das duas soluções, ficamos com a positiva

dado que estamos a fazer um cálculo relacionado com a medida do comprimento de um segmento de reta.

Ora, como o número de ouro, Φ, é


isto significa que para o obter só temos de fazer o inverso da solução positiva que obtivemos:

Chegamos, assim ao número de ouro.

O número de ouro, foi denotado com a letra grega phi, em homenagem ao escultor e arquiteto grego Fídeas, que o utilizou para fazer emergir em Atenas o Partenon. Para além da arquitetura, também podemos contar com a presença da razão áurea na arte (por exemplo, Leonardo da Vinci fez uso recorrente desta razão nas suas obras), na natureza (animais, número de pétalas numa flor), entre outras. Mais sobre a amplitude e aplicabilidade será desenvolvido num próximo texto, quando fizermos uma abordagem mais geométrica do número de ouro, estabelecendo a relação do mesmo com a natureza, a arte, a arquitetura e a filosofia.

5. Sites consultados

Notas

  1. No problema dos coelhos, estamos a falar de uma sequência, uma vez que o último termo é obtido após verificamos o que acontece no final de um ano.
  2. Todas as sequências/sucessões são funções. Em matemática, funções são correspondências únicas entre dois conjuntos de elementos: o conjunto de partida (domínio) e o conjunto de chegada (contradomínio), em que a cada elemento do conjunto de partida corresponde um e um só elemento do conjunto de chegada. No caso das sequências/sucessões, o conjunto de partida é sempre o mesmo: o conjunto dos números naturais (N). Neste artigo, os números naturais iniciam-se em 1.
  3. Estamos a designar a sequência/sucessão de Fibonacci por u, daí aparecer esta notação.
  4. Para quem tiver curiosidade, pode visualizar o seguinte vídeo no Youtube, onde é feita uma explicação muito clara sobre a questão: https://www.youtube.com/watch?v=_O_BA3nNOlo
  5. Uma dízima infinita não periódica é um número com infinitas casas decimais, nas quais não é possível reconhecer qualquer padrão de repetição. Por exemplo, 13=0,333…. é uma dízima infinita periódica porque conseguimos perceber que o 3 se vai repetir infinitamente; o mesmo não acontece com o número de ouro ou com o π (pi).
  6. Estas frações têm o nome de razões, uma vez que estabelecem uma relação de proporcionalidade entre comprimento. Neste caso específico, estas razões que originam o número de ouro, denominam-se razões áureas.
  7. À igualdade que estabelecemos entre duas razões chamamos de proporção. Esta proporção em especial designa-se por proporção áurea.
  8. Para resolver esta equação de segundo grau, aplicámos a fórmula resolvente ou fórmula de Bhaskara.
  9. A divisão de frações realiza-se mantendo a primeira e multiplicando pelo inverso da segunda. O inverso de um número é o número que multiplicado ao primeiro me permite obter a unidade. Por exemplo, 2 tem como inverso

uma vez que

10. Racionalização da fração: sempre que o resultado de um cálculo apresenta no denominador um
número irracional, deve-se torná-lo racional. Para isso realizam-se diferentes técnicas algébricas,
entre as quais se incluem fazer surgir os casos notáveis da multiplicação.

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Foto de Aswathy N na Unsplash

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