Todas as Espanhas inclinam as suas fasces (N.T.1) perante Emérita (1).
Uma das mais belas criações de Roma, tão bela no plano material como foi a sua oratória nos domínios do imaterial, é a arte do mosaico. As composições em pedra, primeiro brancas e negras e, posteriormente, em todo o espectro do arco-íris, em vidros e gemas preciosas, desenham pinturas perenes, insensíveis à acção do vento e da água, da luz e do sedimento dos séculos, que tudo cobre e oculta. Desenhos que no princípio eram toscos, pois os seus «quadradinhos» ou composições seguiam os perfis do desenho com dificuldade, devido ao seu tamanho. Porém, quando a técnica e o esforço perseverante o permitiram, as composições chegaram a ter pouco mais de um milímetro, o que permitia trabalhar os volumes e as formas com a precisão de um pincel.
Encontramos nos mosaicos todo o tipo de representações, de acordo com carácter do seu proprietário: cenas da vida quotidiana – geralmente com um valor simbólico –, cenas de caça, de gladiadores, de corridas de quadrigas no circo, de peixes e aves, de animais marinhos… Recordemos a Domus Aurea de Nero, onde o génio cruel deste Imperador tinha mandado construir o mosaico de um polvo gigantesco, com tal conhecimento de óptica psicológica que, diante das correntes de água especialmente dispostas, a fera agitava os seus braços, aterrorizando as visitas, que admiravam a temeridade do príncipe que entrava calmo no banho e os convidava também a fazê-lo.
Mas as representações mais frequentes são, sem dúvida, as de carácter simbólico, geométrico, alegórico e mitológico; motivos simbólicos, por exemplo, como os de um mosaico que se encontra actualmente no Museu Provincial de Córdova, no qual é representada, de um modo esquemático, uma ilha-pirâmide coroada por um machado de duplo gume e rodeada toda ela por um muro ameado que a separa e protege do bater das ondas do mar. Neste mosaico, de profundo carácter filosófico, expressa-se o ensinamento egípcio, de que toda a ordem, todo o ser, toda a manifestação, surgem por um impulso de vontade que faz nascer das águas primordiais do caos, uma vida que deve ser protegida da dissolução através de um esforço contínuo, de uma vontade permanente e renovada, que se chama «instinto de sobrevivência» no plano natural e «fidelidade à Lei, ao Dever Ser» no plano moral.
Este carácter simbólico entrelaça-se com o geométrico, por exemplo, nos mosaicos do Corredor dos Machados, na conhecida «Casa do Anfiteatro», em Mérida. Nele, três faixas (vermelho, amarelo e azul) se entrelaçam, numa dança sem fim, rodeadas de complexas figurações geométricas, das quais nascem cabeças de machados duplos, de cor cinzenta, como o duro ferro possui. O simbolismo é claro: as três faixas referem-se às três cores primárias, as três Forças que emanam do Logos Solar. A sabedoria esotérica da Índia chamou Fohat, diferenciadora e, portanto, criadora, a cor azul; Prana, o alento vital que conserva e renova tudo, a côr amarela; e Kundalini, destrutiva, que liberta a Alma da Natureza das suas amarras e da prisão em que vive, da armadura de formas velhas e gastas, que devem ser substituídas por outras novas e mais apropriadas, a cor vermelha. Os Machados, representam a vontade divina que rege este processo, o núcleo de ferro, como uma Arma Mágica nas mãos de um Deus (Ares-Dionisos na filosofia estóica romana, Anúbis e Hórus na egípcia), que abre os caminhos para a Vida em todos os reinos, que constrói o Labirinto da Existência e vence o feroz Minotauro que é a inércia da matéria, o eco estéril e venenoso de um passado já morto.
Não há que descartar, de nenhum modo, o valor mágico e apotropaico N.T.2 de muitos destes motivos, destinados na sua geometria a atrair as vibrações de certos poderes estelares segundo a magia e a energia das formas, com o mesmo critério, exacto, com que o fazem a arte muçulmana, os mandalas do budismo vajrayana ou os yantras da arte hindu. As suásticas, os nós de Salomão, os losangos, os quadrados entrelaçados e as estrelas de seis pontas – entre muitos outros – geram vibrações, não só no imaginário, que purificam o ar de todo o tipo de entidades indesejadas, quando são dispostos num plano – o do mosaico, por exemplo – por quem conhece a Ciência Sagrada. Segundo a cosmovisão romana, também certos animais protegem destas mesmas influências (cada tipo de animal para uma influência específica). Por exemplo, nesta Casa do Anfiteatro, já mencionada, em Mérida, temos o Mosaico dos Peixes, onde estão representados «medalhões de distintas formas enlaçados entre si, que emolduram peixes marinhos (moreias, gorazes, pescadas, linguados, garoupas, congros). Estas representações relacionam-se, também, com a crença de que o peixe protege a casa das influências negativas2».
Os mosaicos mitológicos narram cenas da religião grega, dos seus mitos, tão apreciados e estudados pelos romanos. Recordemos que na formação dos jovens, especialmente nas Escolas de Oratória, eles evocavam com os seus discursos, recriando, vivas na imaginação, estas cenas.
Para o romano culto, estas imagens e narrações «cristalizavam» verdades de vida, como as cenas da Vida e Paixão de Cristo, para muitos hoje em dia; situações-tipo que a Alma humana deve enfrentar no seu Caminho até Deus, na sua marcha através do tempo. Falam de vicissitudes, tópicos nos quais se mostra o problema humano e também a solução. Pensamos que estes mosaicos «adornavam», tão só, as diferentes salas da mansão de um fazendeiro romano, mas o mais comum é que reflectissem verdades da sua vida interior, das suas esperanças, dos seus anseios, da sua natureza mais íntima.
As cenas «míticas» da Arte Cristã, extraídas na sua maior parte do Novo e do Antigo Testamento e da Legenda Aurea de Jacques de la Voragine, e que configuram o imaginário medieval e renascentista, não fazem senão repetir o que fizeram os gregos e os romanos; mas com outras narrações, com outros esquemas; foi o mesmo que fez a civilização maia, desenhando estelas e, principalmente, cerâmicas com as cenas da sua obra sacra, o Popol Vuh. O valor psicológico e moral, que tem para um crente, qualquer cena da vida de um santo ou do próprio Jesus Cristo, é o mesmo que tinham para um romano as cenas mitológicas, embora mais subtis no plano emocional e mais profundas no plano filosófico. Portanto, e em geral, os quadros mitológicos que encontramos nos mosaicos, são uma forma da sua «História Sagrada», uma recordação de imagens e conceitos vivos, de ideias permanentes e coloridas, com as quais, provavelmente, o seu dono se encontrou depois da morte, pois de acordo com os ensinamentos místicos da antiguidade, cada um encontra-se, ao penetrar no Invisível, com o próprio céu e inferno que criou na sua mente. Senão, demos uma vista de olhos nos magistrais textos do Livro dos Mortos (Bardo Thödol), obra do budismo tibetano atribuída ao mago Padmashambhava.
Um exemplo de tema mitológico é o de Orfeu entre as feras, que encontramos repetido nos mosaicos de muitas cidades romanas. Em Augusta Emérita encontramo-lo também, fazendo soar a sua lira e com um gorro frígio que o aparenta com o deus Mitra. Aí, está no interior de um medalhão, rodeado por diferentes animais. Quatro génios alados dominam a cena, possível representação dos Quatro Elementos e das Quatro Direcções do Espaço, dos Quatro Ventos ou dos Quatro Regentes do Karma. Dois corvos, sobre o que parece uma figueira, sussurram as suas mensagens de morte e sabedoria, quer dizer, do mundo oculto, ao herói. Um escorpião ameaça, junto aos seus pés. Simboliza a Alma Cantora, o génio luminoso e divino que vive e canta no centro da alma e que, com o seu canto pode manter em paz e aparte, mansas, as paixões animais. Deve cuidar-se, no entanto, da picada venenosa do eu inferior, o escorpião, sempre próximo, presente mesmo no círculo mais íntimo da nossa natureza. O herói canta sobre um trono triangular – também no mosaico de El Pesquero, em Badajoz, o faz sobre uma plataforma triangular – o da nossa essência divina e imortal.
Outro exemplo é o Mosaico de Dionísio e de Ariadna, obra do mestre mosaicista Annios Ponius, também de Mérida e de uma execução um tanto tosca, com figuras deformadas e sem ordem nem ritmo visual. Dionísio, é representado com toga, e o seu cortejo de sátiros, ménades e panteras está a despertar Ariadna do seu sono. Ariadna, a princesa de Creta, esquecida pela ingratidão de Teseu, a ponto de se desposar com Dionísio, convertendo-se, assim, numa Deusa. Como na cena pictórica da Casa dos Mistérios, em Pompeia, o beijo de Dionísio era o símbolo da morte e da Iniciação, pois ambas despertam a alma adormecida do sono que é a vida.
Um exemplo de mosaico alegórico, é o chamado «Mosaico Cosmológico», também em Mérida, e sobre o qual queremos centrar este artigo. Estes mosaicos alegóricos, são mais comuns de finais do século II ao IV d.C., com forte influência da filosofia neoplatónica e da cosmologia estóica. Neles, os deuses e heróis são substituídos por conceitos, os mesmos, em geral, que tantas vezes aparecem nas suas moedas. Cada mosaico alegórico, bem estudado, é um Tratado de Filosofia, um emblema dos poderes e ideias que governam a natureza e alma humanas, um microcosmos onde tudo se encontra devidamente ordenado e disposto.
Neste mosaico que agora estudamos, um dos mais importantes do mundo, tanto pela perfeição da sua execução, como pelo discurso filosófico, aparece na parte superior do arco Caelum, o deus do Céu, sobre um trono, sustentado por Polum, como um Atlas segurando o mundo inteiro. À direita de Caelum, encontra-se Saeculum, de longas barbas e cabelos, personificação do tempo, que transporta um ceptro na mão direita e um diadema de tecelas douradas e amarelas.
À sua esquerda, sempre na parte superior do Mosaico, Caos, o vazio da não-existência, ou seja, a homogeneidade pura e total, a plenitude auto-consciente da felicidade perfeita (e de onde, na Teogonia de Hesíodo, surgem Gaia, o Tártaro, Eros, o Amor Primordial, as Trevas e a Noite), aparece como um ancião, com barba e túnica semelhante à de Caelum. Entre ambos, há uma figura sem nenhuma identificação, mas supõe-se que é Gaia (a Terra). Não deixa de ser interessante que Caos seja a figura que coroa o Mosaico, embora esteja de pé e por trás da mais importante, Caelum.
Mais à esquerda, debaixo e voando, Nebula e Zéfiro, a névoa e o vento do Oeste. Em frente a eles, também voando, na parte oposta do Mosaico, Noto, o vento do Sul que arrasta a Nubs, as nuvens, sustentando um véu que é preenchido pelo vento, como a vela de um barco.
Por baixo e à esquerda de Caelum, que determina o eixo central da composição, aparece Tonitrum, o trovão, figurado como uma criança que empunha na mão direita um raio dourado. Como o Mosaico está partido – como é evidente na imagem – e aproximadamente em um quarto da sua superfície, dos ventos Eurus e Bóreas, o vento do Este e o do Norte, apenas se conservam as cabeças e torsos. Todos os ventos aparecem com barbas e asas na cabeça.
Por baixo, aparecem o Sol, Oriens, de um lado, e a Lua do outro. O Sol, na sua quadriga de cavalos brancos, e a Lua, como sempre faz, olhando para o Sol. Debaixo da Lua, Mons (a Montanha, quiçá do Olimpo) e Nix (a Neve); o primeiro como um homem maduro e gigantesco em comparação com Nix, que desde o seu regaço sai para se verter como uma divina inundação e influxo em toda a margem direita do Mosaico.
Na metade do quadro, praticamente perdidas, estão as representações das Quatro Estações, mas somente se conservam parcialmente algumas. Autumns (o Outono) e Aestas (o Verão) exibem só os seus nomes e pouco mais. O primeiro, sustenta dois cachos de uvas e Aestas é uma criança, de costas, levando um punhado de espigas. Ver, a Primavera, maior que o último, vestida com uma túnica e com um dos seios nu, agarra-o pelo braço esquerdo e transporta um ramalhete de flores.
À mesma altura, mas no lado esquerdo do Mosaico, Natura, com o torso nu, faz o gesto de estender o seu manto como a vela inchada de um barco, um manto que sobe desde as pernas pelas costas, até superar o seu corpo. Adornada com braceletes, uma pulseira e um colar.
Por baixo, na margem direita, o Nilo e o Eufrates, os dois grandes rios da Antiguidade, que tantas civilizações alentaram no seu fértil seio. O Nilo leva na sua mão esquerda uma cana e uma vasilha, da qual brota um manancial de água. Sobre o regaço do Eufrates apoia-se uma figura infantil com uma vara na sua mão.
Mais abaixo, na base e no canto esquerdo do Mosaico, está Oceanus, o grande rio de água doce que rodeia o disco plano da Terra, majestoso e gigantesco, repousando sobre o fundo marinho e com as pernas cobertas por um manto. Os seus rasgos são próprios de um homem maduro, com cabelo e barba abundantes; pende dos mesmos um crustáceo e agarra com a sua mão direita uma serpente marinha. Junto a ele, estão uma lança e um arpão, perto de um golfinho, bem como as deusas Tranquilitas; a calma do mar, representada como uma jovem nua, com longos cabelos, surgindo do mar; e Copiae, a abundância e a riqueza, tão associadas ao mar, que aparece como uma figura feminina navegando. O seu próprio corpo é o barco que navega; o seu manto, que faz de vela, é inchado pelo vento invisível e um Eros rema nela, apoiando-se no seu corpo.
No centro inferior do Mosaico está Pharus, Farol, como um jovem nu em pé e vigilante sobre uma rocha, segurando com as suas mãos uma tocha acesa. À sua direita, Navigia, uma alegoria da navegação, muito semelhante a Copiae, segurando um mastro que sustenta a vela de um barco. A proa do barco, está figurada como uma flecha sobre a sua cabeça (do mesmo modo que em Copiae).
No sector inferior direito, aparecem partes de uma figura masculina em pé, que Javier Arce interpreta como Hércules e Bythos, o Abismo, sentado junto a ele com Pontos, o mar, perto de ambos.
Este mosaico foi encontrado em finais dos anos sessenta pelo arqueólogo Eugenio García Sandoval, na «Casa do Mitreu», assim chamada porque perto encontraram várias estátuas de Mitra3. Há arqueólogos que afirmam que este não é um critério suficiente para identificar esta construção com um Mitreu – Javier Arce, entre outros. Mas, no entanto, os temas cosmogónicos e mistéricos do Mosaico, unidos a razões geométricas, que exporemos mais adiante, fazem supor que esta Mansão era uma Escola de Mistérios Mitraicos, tão ligados, por certo, à filosofia teúrgica neoplatónica e aos viris ensinamentos estóicos.
O pavimento deste mosaico não é original, tendo sido aplicado sobre outro mais antigo. O fundo é formado por tecelas brancas e negras de 1 cm por 1 cm, enquanto que o quadro propriamente dito, é de 5 a 2 mm, o que dá uma dimensão do trabalho, com vários milhões de tecelas cuidadosamente dispostas. As tecelas de ouro são de vidro, com a lâmina de metal no seu interior, e as letras que nomeiam as figuras alegóricas também são de vidro e de mármore. A cor predominante é o verde, cor que representa a alma mater da Terra e de toda a Humanidade, as Grandes Verdes ou Águas Primordiais dos textos egípcios. Verde que se converte num azul intenso na parte inferior do mosaico, que representa o mundo marinho4.
Em relação à datação, os arqueólogos também não chegam a acordo. Para uns, é uma jóia do período Antonino, um hino em pedra, de glória à Eternidade do Império Romano, próprio da literatura panegerista dos finais do século II d.C. Para outros, é de finais do século IV, e mesmo do V d.C., um dos últimos cantos do cisne do paganismo filosófico, que se refugiou nas províncias quando começaram as perseguições cristãs, mais violentas, em geral, do que as pagãs. Há motivos que aparentam as imagens do Mosaico, com os ensinamentos dos amigos e discípulos do Imperador Juliano (o Tratado sobre os Deuses e o Cosmos, de Salústio, no qual este filósofo explica os Deuses que transcendem o Cosmos e os que o governam desde o seu interior), com o Hino de Hélios5, tão famoso, deste mesmo Imperador (é dos últimos hinos religioso-filosóficos do Mundo Antigo, um dos mais emotivos, pois segundo as tradições esotéricas e os teurgos alexandrinos, Roma morreu com este último Imperador Iniciado. Os séculos posteriores até à derrota de Rómulus, em 476, foram os da lenta decomposição de um cadáver histórico, o do Império Romano). O próprio Dr. Arce Martinez identifica a personagem que está em pé na margem direita do Mosaico e que preside à cena, vigilante, com a do hino a Hércules da obra Dionisíaca, de Nonno de Panópolis, do século V, e no qual Dionísio saúda este herói. Texto que, pela sua beleza, não resistimos à tentação de o transcrever neste artigo: «Deus da túnica de estrelas, Héracles, príncipe do fogo, mestre do mundo, Sol, pastor da vida humana, sobre a qual se alarga a tua sombra… tu que fazes girar o mundo em doze meses, filho do Tempo, tu dispões todos os ciclos após os ciclos. Do teu carro arrasta-se a eternidade que toma o rosto do ancião e depois o da juventude… tu fazes nascer a imagem da lua… olho resplandecente do firmamento, tu levas na tua quadriga o Inverno depois do Outono, preparas o Verão que sucede à Primavera… Dominada pelos rasgos da tua chama, a noite retira-se… depois de se ter banhado nas águas do oceano. Tu levas a chuva portadora de frutos sobre a terra fértil, estendes na alvorada um orvalho que a irriga…»6.
Este investigador, atribui a «Casa do Mitreu» e este mosaico a três possíveis personagens, três grandes aristocratas e pagãos, os três vivendo no primeiro decénio da segunda metade do século IV:
– Flavio Salústio, que foi vicarius hispaniorum e residiu em Mérida entre 360 e 361, designado, possivelmente, pelo imperador Juliano, possível autor, como mencionámos, do pequeno tratado Sobre os Deuses e o Cosmos.
– Volusio Venusto, que o sucedeu no cargo, nomeado por Juliano em Antioquia, antes de iniciar a campanha persa, e sobre o qual Macrobio, nas Saturnalia, destaca a sua vida severa e piedosa, bem como a sua espantosa erudição.
– Vetio Agonio Praetextato, que antes de ser nomeado pelo imperador Juliano, procônsul de Achaia, foi consular da Lusitânia, governador provincial, com residência na capital, em Emérita. «Praetextatus tem na sua posse como é sabido, e como demonstra a epigrafia, o maior currículo pagão do século IV: Augur, pontifex Vestae, pontifex solis, quindecemvir, curialis Herculis, sacratus libero et Eleusinis, hierophanta, neocorus, taurobolitus, pater patrum, que se completa com o qualificativo de Macrobio de: sacrarum omnium praesul. Foi também restaurador dos dii consentes no Fórum Romano».
Por outro lado, o Dr. Dimas Fernández-Galiano usa a geometria sagrada e a astronomia para fazer um estudo, genial, sobre este mosaico. Diz, como já o tinha feito H. P. Blavatsky, mais de cem anos antes, na sua imortal Doutrina Secreta, que nele – na realidade, em quase todas as obras de arte antigas – há várias chaves ou níveis de interpretação: geométrico, metafísico, astronómico, geográfico, astrológico, aos quais nós podemos somar mágico-talismânico, psicológico, etc. Seja como for, o esqueleto é matemático-geométrico, pois como muito bem afirma, é esta chave a que abre os mistérios da alma e do inteligível, sendo, de facto, o fundamento esotérico da arte antiga: «Existem vários níveis de realidade, embora todos formem parte do mesmo, o Universo. Isso leva a interrogar, por um lado, qual é o nexo que os une. E a resposta a esta pergunta somente pode ser que esse nexo é de natureza matemática (…). Para nós, homens do século XX, a matemática é um simples modelo de compartimentação da realidade que ajuda a compreendê-la; mas no pensamento do mundo antigo, esse modelo de compreensão fundia-se com a realidade, até ao ponto de a substituir. Para muitas filosofias, e especialmente para as que foram a coluna do pensamento da primeira Idade Média, como o pitagorismo e o platonismo, a matemática não só se encontrava na base da realidade, mas constituía, em certo modo, a própria essência dessa realidade».
Vamos destacar os pontos que considero mais importantes deste estudo geométrico e astronómico:
1. Podemos diferenciar três centros da composição: o do quadrado em que se encontra o mosaico, o da habitação e o do mosaico propriamente dito. Os dois primeiros traçam circunferências que dividem o mosaico em três sectores, que correspondem às divindades alegóricas do mundo celeste ou inteligível (e onde vibram os poderes de Caelum, Saeculum, Chaos, os Ventos, Mons – ou seja, o Olimpo – o Trovão, Polum, o Sol, e a Lua); o central, terrestre, em forma lenticular (onde se encontram Natura, as Estações, os Rios e Portus); e o inferior ou aquático (com Oceano, a Abundância, a Tranquilidade, Pharus – que comunica este mundo com o terrestre –, Navigia, etc.)
2. O chamado Triângulo Egípcio, de proporções 3-4-5, rege a maior parte dos traçados, tanto arquitectónicos da vila, como o traçado do mosaico e inclusive da disposição das figuras no interior do mesmo. Recordemos que o Triângulo Egípcio era, segundo Plutarco, um símbolo do Logos, triplo, e que os Egípcios vinculavam a horizontal com Isis, a Natureza, 3; a vertical com Osíris, o Espírito ou Pensamento Divino, 4; e Hórus, a hipotenusa, o 5, o Homem.
3. A unidade de medida usada é, sem dúvida alguma, o pé romano (1 pé = 295,6 mm) e o mosaico mede 12 por 16 pés, sendo, portanto, a diagonal de 20. Cada um destes números é claramente evocativo e simbólico.
4. Uma circunferência traçada desde o centro real do mosaico, passa pelas cabeças de Oriens, Occasus e Navigia, três pontos que formam um triângulo isósceles, cujos lados guardam a proporção 3/2, triângulo que se repete várias vezes com distintas medidas, unindo as personagens e elementos do mosaico7, e ordenando os corpos da construção que os alberga, juntamente com o anterior, o Egípcio. O ângulo deste triângulo isósceles, de 38º,90’, é exatamente o da latitude da cidade de Mérida e, mais especificamente, do lugar onde se encontra o Mosaico. O que significaria um conhecimento perfeito da medida do globo terrestre e de geografia astronómica. Também é, e isto pode desculpar esse conhecimento, o ângulo do azimute da saída do Sol no solstício de Verão, quer dizer, o ângulo do lugar em Mérida onde nasce o Sol no dia mais longo do ano. Esta é, talvez, a causa pela qual Hélios, o Sol, Navigia e o Norte real, formam um ângulo no Mosaico.
5. Os três Fogos presentes, o celeste de Tonitrum, o aéreo do Sol e o terrestre e aquático de Pharus unem-se, formando um triângulo isósceles. É como se Helios e o raio celeste focassem os seus raios para acender o Fogo que rege a Terra, ou melhor, que guia a Humanidade e a impede de afundar-se com os escolhos do mar da vida.
6. Este raio celeste (Tonitrum) forma também o eixo de uma cruz formada pelos ventos, o que permite recordar os ensinamentos orientais para quem Fohat – o fogo eléctrico do raio – celeste, é uma projecção dos Lipikas, os Regentes do Karma e das Quatro Direcções do Espaço.
7. A lança de Oceano, um elemento muito raro na iconografia deste Deus, prolongada, une-se diretamente com a cabeça de Mons (Olimpo), linha que é perpendicular ao Sol e que continuada faz a união com uma personagem quase destruída, e cujo tronco parece emergir da água. O Dr. Fernandez-Galiano identifica-a com uma torrente de ar, tufão ou tornado. Isto dar-nos-ia uma cruz que faz uma alegoria dos Quatro Elementos.
Estes são alguns exemplos do pensamento filosófico matemático romano da época imperial, uma herança do pensamento iniciático egípcio. Quando Heródoto afirmou nos seus Livros de História que os sacerdotes egípcios estavam continuamente entregues a especulações matemáticas, não foi muito bem compreendido pelos nossos académicos. O mundo real, inteligível, é matemático e os números são o mais perfeito símbolo dos arquétipos, em certo modo são os primeiros arquétipos, as primeiras «imagens» da Verdade Una. H. P. Blavatsky afirmava, em Isis sem Véu, que quem quisesse penetrar na verdadeira filosofia e no significado mais profundo dos hieróglifos, devia estudá-los in situ, com régua e esquadro, porque as estruturas geométricas de onde nascia a sua língua sagrada eram a porta de entrada para a sua Ciência Secreta.
Schwaller de Lubicz, na primeira metade do século XX fez isso, trabalhando longos anos nos Templos de Karnak e de Luxor, levantando a ponta do Véu de Isis da sua Geometria e Matemática Filosófica. Analisou como ninguém fez nem repetiu até agora o Papiro de Rhind, de conteúdos matemáticos, penetrando em dimensões que nem sequer tinham sonhado os egiptólogos cépticos do seu tempo. E nesse mesmo século, a Matemática começou a estudar novamente as chamadas fracções egípcias, e a sua profunda filosofia, bem como as leis harmónicas que se encontram por trás delas, redescobriu o uso do zero nos documentos egípcios e um valor do número PI, associado à fracção 355/113, que dá uma aproximação do seu valor real em cem milésimas. O arquitecto russo Igor Shmelev, estudando cinco painéis de madeira extraídos da tumba de Khesi-Ra, arquitecto do faraó Djoser (contemporâneo, portanto, do vizir, médico e mago Imhotep), decifrou as Leis da Harmonia com que os arquitectos egípcios trabalhavam, todas elas derivadas do Número de Ouro. No seu livro Phenomenon of the Ancient Egyp, editado em 1993, afirma que estas Leis foram traduzidas das mesmas Leis de Harmonia com que trabalha a Natureza e das quais um arquitecto deve ser sacerdote, em vez de brincar vaidosa e intelectualmente, como uma criança caprichosa, com as formas e volumes.
Os filósofos e arquitectos romanos, muitos deles iniciados nos Mistérios, como o divino Vitrúvio, explicam a importância de seguir estas Leis de Harmonia Universal e a Casa do Mitreu é um digníssimo exemplo. Quer esta «Casa» fosse a residência de um dignitário romano que quis guardar nela emotivamente a sua filosofia e conceção do mundo, ou se tratasse do Grande Mitreu de Mérida, onde se formavam os discípulos do Grande Deus, e a Sala do Mosaico uma das Salas dos Mistérios onde o Aspirante devia encontrar respostas a problemas da natureza e da sua própria alma, o Mosaico Cosmológico mostra-se como um coração palpitante de luz e cor, de ensinamentos milenares, de harmonia matemática, de alegorias-chave para entender e penetrar na Alma da Natureza, a qual, segundo a Voz do Silêncio, «não contaminada pela mão da matéria, mostra os seus tesouros unicamente ao olho do Espírito, olho que jamais se fecha e para o qual não há véu algum em todos os seus reinos».
N.T1. Insígnia que os cônsules da Antiga Roma levavam e que era composta de um feixe de varas em redor de um machado.
N.T2. Adjectivo que provém do grego apotrepein (afastar) e indica em geral um gesto, uma expressão ou um objecto que se utiliza para afastar um influxo mágico maligno.
1. Ausonio, Ordo Urb. Nob. IX 293 e ss. Nota extraída do artigo «El Mosaico Cosmológico de Augusta Emérita e las Dionisíacas de Nonno de Panópolis» de Javier Arce, que aparece no livro El Mosaico Cosmológico de Mérida, Cuadernos Emeritenses n.º 12.
2. Mérida, Patrimonio de la Humanidad, pág. 26, com textos de Yolanda Barroso e Francisco Morgado. Edição do Consorcio da Cidade Monumental Histórico-Artística e Arqueológica de Mérida.
3. Na forma de Zurvan Cronos, Senhor da Eternidade. Com cabeça de leão e uma serpente enrolada no seu corpo, erguido e em pé. Esta representação de Mitra aparece geralmente com asas, ceptro de poder, uma chave, nas suas mãos, sobre o universo (como uma esfera com a faixa zodiacal e o equador, formando o X a que se refere Platão no Timeu, como um dos símbolos do Logos Criador). Em algumas representações leva também no peito o raio de Zeus.
4. A descrição do mosaico foi feita seguindo o texto da página web fresno.cnice.mecd.es/jpan0004/paginasmerida/cosmologico.htm
5. Este hino diz que «este mundo daqui, divino e todo belo, mantido desde a abóbada celeste até aos limites mais extremos da Terra, está unido pela contínua prudência do Deus, e existiu desde a eternidade sem ter sido criado, eterno para sempre, estando protegido nada menos do que pela quinta substância, o aether, cujo princípio é o reflexo do Sol; e num segundo nível pelo mundo inteligível». Texto extraído do trabalho do Dr. Javier Arce anteriormente citado, pág. 104.
6. Dr. Javier Arce ibidem, pág. 104.
7. Para um estudo mais detalhado remetemos para o trabalho do Dr. Dimás Fernandez-Galiano, «El Gran Mitreo de Mérida: Datos comprobables», pág. 119-151 da obra El Mosaico Cosmológico de Mérida, Cuadernos Emeritenses n.º 12.