Poder-se-ia pensar que os avanços feitos por aquele arqueólogo foram suficientes para ter executado a tarefa com perfeição. Mas este ponto de vista estaria em contradição com os próprios critérios do referido autor que, continuamente, aponta na sua obra as inúmeras lacunas e as dificuldades intransponíveis dos seus estudos. Na minha opinião, o abandono da metrologia como ciência, deve-se ao descrédito gerado para esta disciplina pelas publicações de Piazza Smyth e seus sucessores. Pessoalmente, encontrei no Egipto uma resistência surda, por parte de muitos arqueólogos, à consideração dos problemas da metrologia, porque pensavam, com rara unanimidade, que “nas pirâmides não existe nenhuma questão de números”. É muito possível que esta confusão entre ciência e superstição seja um dos fatores determinantes do abandono de uma disciplina claramente científica que incluía, entre os seus seguidores, nomes como Isaac Newton, Decourdemanche, Weigall, Vásquez Queipo, Wilkinson, Segré e o próprio Petrie.
Outro dos fatores que dificultam estes estudos reside no facto de se considerar exótica a modalidade de pensamento científico daqueles tempos tão distantes. Como veremos seguidamente, pode ser de muita utilidade o conhecimento de algumas modalidades da matemática babilónica, que tinha certos pontos de contacto com a egípcia. E, no caso particular da metrologia, estas conexões são bem conhecidas, dado que, como observa Petrie, o Côvado Real egípcio deveria chamar-se egípcio-babilónico, pois existe uma total correspondência entre ambas as unidades de medida, tanto na longitude quanto no sistema de subdivisão decimal. Com efeito, conhece-se a divisão – que aparece nas dinastias egípcias posteriores – do “Côvado Real” em seis “palmos”, mas durante a IV Dinastia, as divisões do “Côvado Real” eram sempre decimais e, segundo o autor citado, as dimensões das pirâmides de Gizé foram baseadas na escala decimal. O mesmo pode dizer-se da Babilónia onde, como se sabe, as unidades de superfície e volume eram obtidas a partir da unidade linear; e a unidade de peso correspondia ao volume da água da unidade de volume. Exatamente como no nosso moderno e racional Sistema Métrico Decimal (25).
O estudo da matemática antiga ser-nos-á de grande utilidade para um maior conhecimento das peculiaridades da metrologia egípcia. Em relação com a matemática babilónica, são bem conhecidas as tabelas de inversas (“Igi”), cujo estudo permitiu avançar no conhecimento das operações efetuadas por aqueles antigos matemáticos. Conhecem-se tabelas de inversas para números inteiros e fracionários – todas elas baseadas no sistema sexagesimal de numeração decimal, no qual os zeros eram indicados pela posição dos números. Neugebauer (81) realizou um estudo exaustivo de uma tabela de inversas pertencente à Coleção Plimpton (da Universidade de Columbia). Importa destacar os erros que aparecem nesta tabuleta, dado que, como é observado pelo autor citado, os erros dos copistas ilustram muitas vezes quais os seus procedimentos de cálculo.
Diga-se, desde já, que os verdadeiros erros são muito pouco frequentes nas tabuletas matemáticas e é possível observar a presença de certos erros particulares ou peculiares que dariam a impressão de ser deliberados. Sabe-se que, muitos destes erros tinham uma finalidade didática (81), pois já vimos, no capítulo sobre “Goniometria”, a existência de erros de medida deliberados que nos mostram quais os tipos de subdivisões do círculo utilizados pelos antigos topógrafos. No caso em estudo, encontramos dois erros particularmente significativos. Um deles é a substituição de um número pelo seu quadrado; o outro é a substituição de um número pela sua metade. Com efeito, está escrito, em notação sexagesimal, 7.12.1 em lugar de 2,41 e está escrito 53 que é a metade do número 1,46, que devia estar escrito. Encontram-se, também, noutras tabuletas, substituições de um número pelo seu inverso, sendo o erro mais comum – quase forçado pela indefinição da posição da vírgula – a substituição de um número pelos seus múltiplos e submúltiplos periódicos – sexagesimais, neste caso. O zero, claramente indicado com um símbolo, aparecera recentemente na época Selêucida, mas interpretado pela posição do algarismo, já era de uso comum no Antigo Império. Thureau-Dangin (121) apontou a enorme importância da abstração do valor numérico como ferramenta de cálculo e que conduz ao sistema de numeração árabe dos nossos dias.
É importante ter em conta a filosofia incluída nestes erros, pois é de grande utilidade na análise da metrologia egípcia. O que vimos até agora sugere que, para um escriba babilónico, haveria, entre um número, o seu quadrado, o seu inverso e o seu duplo, uma identidade tal que poderia ser representado indistintamente com qualquer das expressões. Esta ideia está muito distante da conceção atual, que é muito rígida e personalista; no entanto, aquele modo de pensar tinha a sua razão de ser. No caso do Egipto, a associação de um número com os seus múltiplos e submúltiplos decimais possui uma raiz cosmológica de que já me ocupei noutro lugar (1).
Mais adiante, teremos oportunidade de nos ocuparmos detalhadamente com as origens e derivações de outro “erro” muito difundido na matemática babilónica, ou seja, o costume inveterado daqueles matemáticos, que somavam quantidades heterogéneas, tal como áreas e longitudes; tijolos e homens, etc. Este tipo de soma é expressamente proibido no ensino escolar dos nossos dias. Todavia, somar “maçãs com cavalos” era de uso corrente na Babilónia – como o mostram as tabuletas cuneiformes (81) – e forma o cordão umbilical que conecta, com a origem, a matemática de Diofanto e Heron. Heron (81), com efeito, realiza operações similares. Mas tratava-se de um verdadeiro erro? Para nós é um verdadeiro erro, mas sê-lo-ia para eles? Podemos querer tornarmo-nos juízes relativamente a esta questão e condenar – como o fazem unanimemente os historiadores da matemática dos nossos dias – aquela prática “errónea”; mas, mais adiante veremos como eram poderosas as razões para proceder daquele modo; de tal maneira que implicava o conhecimento de teoremas ignorados pelos geómetras modernos. Este fenómeno – assinalado mais à frente – representa uma profunda descontinuidade entre a matemática egípcio-babilónica e aquela que chegou até nós, através da Grécia.
Estas observações sobre aquela aritmética milenar serão úteis na análise que vamos fazer do sarcófago de Diodefre – filho de Quéops – do qual já tínhamos falado, por mostrar, no Museu do Cairo, os métodos de serragem dos antigos artesãos.
As dimensões – obtidas pelo autor – do dito sarcófago, catalogado com os números 54.938-6193, correspondentes à média aritmética de seis medidas independentes são as seguintes:
Interior | Exterior | |
Comprimento | 2,090 m | 2,450 m |
Largura | 0,890 m | 1,230 m |
Altura | 0,711 m | 0,885 m |
Volume | 1,330 m3 | 2,660 m3 |
A análise de alíquota do comprimento interior (2,090 m) revela-nos, como unidade, um Côvado Real de 0,523 m, com a ajuda do qual podemos determinar as dimensões numéricas originais do sarcófago. Por motivos que veremos posteriormente, prefiro fazer a tradução com o dobro dessa unidade, ou seja, o valor 1,046 m – o que não viola nenhuma conceção metrológica. Desta forma, as dimensões permanecerão na disposição indicada na tabela a seguir, que adotaremos a partir de agora, para especificar as dimensões das câmaras e sarcófagos, ou seja: Na primeira linha, o comprimento, a largura e a altura interior; na segunda linha, as quantidades exteriores correspondentes.
2,00 x 0,855 x 0,685 = 1,17
2,34 x 1,17 x 0,855 = 2,34
Se essas dimensões forem analisadas, será descoberto que sete das oito quantidades correspondem ao mesmo número. Com efeito
2,34 = 2 x 1,17
0,855 = 1/1,17
0,685 = (1,17)2 /2.
vale a pena dizer que as seis dimensões do sarcófago e os seus volumes interior e exterior são determinados pelo número 234, a sua metade, o seu inverso e o seu quadrado.
Se a afirmação do problema resolvido no sarcófago de Diodefre for feita, ela poderá ser especificada nestes termos:
Problema: Dimensionar um sarcófago de forma que todas as suas dimensões lineares e os seus volumes interior e exterior sejam determinados por um número, o seu inverso, a sua metade e o seu quadrado.
Levando em consideração que, uma vez dadas as dimensões lineares, o volume é automaticamente determinado, o problema aparece a priori como insolúvel. Se o problema for analisado do ponto de vista da “teoria das equações”, a questão equivale a resolver um sistema de oito equações com seis incógnitas que, reconhecidamente, não tem solução. Assim, a solução encontrada por Diodefre seria a solução singular para um problema que não tem solução geral. No entanto, o problema admite duas soluções gerais que podem ser escritas em notação moderna:
2 x 2/a x (a/2)2 /2 = a/2
a x a/2 x 2/a = a,
que são, precisamente, as duas soluções encontradas por Diodefre e aplicadas por ele ao número 234.
Por que motivo Diodefre escolheu este número que não aparece na egiptologia? Que significado especial tinha este número para ele, destinado a servir como um módulo único para o seu sarcófago? Mais à frente, encontraremos números como este novamente; por agora, observarei que o modus operandi pelo qual este sarcófago foi dimensionado mostra-nos – em associação com a matemática caldeia – que as operações de multiplicar por dois, de inverter o número ou elevá-lo ao quadrado não alteravam a essência do mesmo. Pode dizer-se, desta forma, que o sarcófago está dimensionado com o único número 234. Esta conclusão vai ser-nos de grande utilidade em análises subsequentes, onde voltará a ser aplicada esta modalidade aritmética, tão separada das nossas conceções modernas e que poderia ser caracterizada como uma “imortalidade” do número que não “perde” a sua “essência” pela multiplicação por si mesmo, por dois, por dez ou pelo seu inverso. Evidentemente, algo como uma metempsicose numérica muito ao estilo das ideias religiosas daqueles tempos distantes.
Como nos mostraram, de uma forma fidedigna, as investigações de Thureau-Dangin (124) y Neugebauer (81), os babilónios já conheciam o Teorema de Pitágoras 1.500 anos antes deste, ou seja, por volta de 2.000 a.C. (1.ª Dinastia da Babilónia). Mas o “Problema de Diodefre”, com as suas duas soluções gerais, corresponde ao ano 2.500 a.C. Deve ser considerado, portanto, o problema mais antigo do mundo.
BIBLIOGRAFIA
1. ÁLVAREZ LÓPEZ J.: Física y Creacionismo. La Plata, 1950.
25. CROUZET M.: Histoire genérale de la civilisation. Paris, 1950.
81. NEUGEBAUER O.: The exact sciences in antiquity. Providence (RhI.) 1957.
121. TANNERY P.: Sciences exactes dans l’antiquité. Paris, 1912.
124. THUREAU-DANGIN: Textes mathematiques babiloniennes. Leiden, 1938.
Extraído do livro: El Enigma de las Pirámides. Editorial Kier.