O sistema solar: ritmo e harmonia das esferas

É maravilhoso constatar a possibilidade que de alguma forma conseguimos reconstruir a mecânica do mundo na nossa consciência. Quando olhamos o céu durante uma noite limpa de nuvens, podemos perguntar-nos sobre a profundidade do firmamento, sobre os mistérios que se escondem na luz que chega daqueles pontos luminosos, assim como do espaço entre eles. A observação do movimento dos astros possibilita o entendimento humano acerca das leis que governam o universo.

É muito antiga a ideia de uma regularidade, de uma organização de todas as coisas respondendo a princípios matemáticos, muitas vezes associados a princípios divinos. Desde Pitágoras que o Número está na base de todas as coisas. Platão, na mesma linha, diz que “Deus geometriza”. Esta visão do mundo estendeu-se até Galileu, segundo o qual “a Matemática é o alfabeto que Deus usou para escrever o Universo”.

 Por uma razão misteriosa, também a tetraktys dos pitagóricos e os chamados sólidos platónicos tiveram uma enorme influência nas ideias acerca da organização do sistema solar.

Em 1596, Kepler, com apenas 25 anos e professor da matemática em Gratz (Áustria), para quem era inconcebível um Deus que criava ao acaso, publica uma das suas obras de referência, o Mysterium Cosmographicum. Aí apresenta o seu modelo de um sistema solar (heliocêntrico) em que órbitas planetárias, representadas por esferas, inscrevem (e que por sua vez estão inscritas) nos poliedros regulares, ou sólidos de Platão (ver figura 1). 

Figura 1 – Modelo do Sistema Solar na obra de Kepler Mysterium Cosmographicum

A lei de Titius-Bode

No séc. XVIII, o matemático germânico Johan Daniel Titius (1729 – 1796), adicionou uma nota de rodapé a um livro que estava a traduzir, chamado “Contemplation de la Nature”, do filósofo francês Charles Bonnet. Nessa nota de rodapé, na qual está implícita uma visão tetráktica, Titius escreve:

“Repare-se nas distâncias entre os planetas, e reconheça-se que quase todos estão separados uns dos outros numa proporção que corresponde às das suas magnitudes físicas. Divida-se a distância do Sol até Saturno em 100 partes; então, Mercúrio está separado por 4 dessas partes do Sol, Vénus por 4 + 3 = 7 dessas partes, a Terra por 4 + 6 = 10, Marte por 4 + 12 =16. No entanto, note-se que de Marte até Júpiter acontece um desvio desta progressão tão exata. De Marte segue-se um espaço de 4 + 24 =28 partes, e até agora nenhum planeta foi encontrado ali. Mas terá o Senhor Arquiteto deixado aquele espaço vazio? Não, de maneira nenhuma. Devemos então assumir que este espaço sem dúvida pertence aos ainda por descobrir satélites de Marte, e acrescentemos que talvez Júpiter ainda tenha à sua volta alguns mais pequenos, que ainda não foram vistos por nenhum telescópio. A seguir a este ainda inexplorado espaço levanta-se a zona de influência de Júpiter a 4 + 48 = 52 partes; e a de Saturno a 4 + 96 = 100 partes. Que magnífica relação!”

Esta relação foi primeiramente nomeada de Lei de Bode, pois foi dada a conhecer por Johan Elert Bode (1747 – 1826) que indevidamente não menciona Titius na sua divulgação. Por esta razão, ela é hoje mais conhecida por Lei de Titius-Bode (LTB).

A tabela 1 indica que as distâncias dos planetas desde o Sol são semelhantes àquelas previstas pela LTB até Urano, mas falha para os seguintes planetas, Neptuno e Plutão.

Tabela 1 – comparação entre as previsões de Titius e as distâncias reais. [i]

PlanetaLei de Titius-BodeDistância (UA)
Mercúrio0.40.39
Vénus0.4+0.3 = 0.70.72
Terra0.4+0.6 = 1.01.00
Marte0.4+1.2 = 1.61.52
Asteróides0.4+2.4 = 2.82.77
Júpiter0.4+4.8 = 5.25.20
Saturno0.4+9.6 = 10.09.54
Urano0.4+19.2 = 19.619.19
Neptuno0.4+38.4= 38.830.06
Plutão0.4+76.8= 77.239.48

Como podemos ver, é muito precisa a concordância entre os valores previstos pela LTB e a distância real do planetas ao Sol, excepto para Neptuno e Plutão.

Até para a cintura de asteroides, que na altura da formulação desta lei ainda não tinham sido descobertos, os valores são muito aproximados. O próprio planeta Urano, que também não era conhecido, foi descoberto pelo astrónomo alemão William Herschel enquanto procurava novos planetas, baseando-se e testando esta lei. Estas descobertas apoiaram enormemente os defensores de que as distâncias interplanetárias não eram fruto do acaso, mas que respeitavam rigorosamente uma lei que podia ser descrita matematicamente em termos simples, ainda que não se soubesse a razão para que assim fosse, por não haver uma teoria a fundamentar esta lei.

Vemos aqui como a ciência, uma vez atingindo a compreensão de uma lei do universo, pode guiar-nos a descobertas concretas e objectivas. Contudo, as descobertas que se seguiram de Neptuno e Plutão puseram em causa o rigor com que a LTB descreve o sistema solar, e a partir desse momento a lei caiu em descrédito e foi paulatinamente abandonada pelos cientistas, relegando-a como uns dos últimos exemplos de uma atitude científica misturada com crenças e misticismos.

Mais recentemente, um PhD em Física da Universidade da Califórnia, assim como teósofo e investigador das matemáticas pitagóricas, Stephen M. Phillips, veio propor uma nova interpretação da LTB, demonstrando que com esta adaptação a lei descreve uma relação harmónica das distâncias planetárias baseada numa espiral de base logarítmica, tal como é manifestado no desenvolvimento de muitos seres vivos. S. M. Phillips aponta também uma interessante relação entre as distâncias e a escala musical pitagórica, como veremos de seguida.

Segundo a Lei de Titius-Bode a distância média, em unidades astronómicas, do planeta na posição n a contar do Sol, é dada pela expressão:

dn=0.4+0.3×2n-1    (n=1, 2, 3, …9)

=4+3×2n-1×1(1+2+3+4)

O que a maioria dos cientistas não reparam, ou recusam dar importância, é que estas equações podem ser expressas somente em termos dos quatro números inteiros 1, 2, 3 e 4. Estes números foram simbolizados por linhas de pontos na tetraktys que os pitagóricos usaram para expressar o número perfeito 10 (figura 2).

Figura 2 – Tetraktys pitagórica

A escala musical pitagórica

As escalas musicais são definidas pela nota inicial e pela sua oitava, cujas frequências são uma o dobro da outra (ou metade, segundo o ponto de vista). As oitavas são consideradas equivalentes ao ouvido humano, uma vez que uma nota musical provoca uma sensação semelhante que a sua oitava, por conterem quase os mesmos harmónicos. Por isso a oitava de um fá é também um fá. A partir de uma nota dada (por exemplo, ré), a seguinte está separada por um intervalo “de segunda”, a seguinte por um intervalo “de terceira”, a seguinte por um intervalo “de quarta” e assim sucessivamente até à “oitava”, que terá o mesmo nome que a primeira nota.

Uma oitava tem um intervalo musical de 2/1. Da mesma maneira, uma quarta tem uma razão de tons de 4/3 e uma quinta de 3/2. 

Para uma escala Pitagórica de 7 notas, criada por exemplo a partir do dó (1 de intervalo) e da sua oitava dó’ (2 de intervalo), o primeiro passo é encontrar o ponto central entre estas duas notas, que é (1+2)/2 = 3/2, que define a quinta perfeita, ou sol. Esta nota divide dó e dó’ em todas as outras notas, criando a escala:

Todas estas notas, por sua vez, podem dar origem a novas oitavas, com as quais se podem criar novas escalas. Reproduzimos aqui as 10 oitavas de sol (3/2):

3/2, 3, 6, 12, 24, 48, 96, 192, 384, 768.

Estas oitavas incluem os mesmo números inteiros que Titius apontou como os que dão origem às distâncias dos planetas a Mercúrio, a menos de um factor de 10 usado para tornar padrão a distância da Terra (ver tabela 1).

Os número inteiros atrás encontrados têm uma correspondência com a frequência sonora, que é inversamente proporcional ao comprimento de onda. A quarta perfeita da n-ésima oitava tem uma razão de tons de 2n-1(4/3) =2n(2/3) e a quinta perfeita 2n-1(3/4) =2n(3/2).

Esta reciprocidade faz com que sejam as quartas perfeitas das oitavas abaixo da nota inicial, e não as quintas, as que podem ser relacionadas com as distâncias planetárias.

O interesse desta correspondência para fins científicos está vinculada com a base física com que se determinam os tons das notas musicais, o que aponta para a possibilidade da Lei de Titius-Bode também ter um fundamento físico.

Formação do sistema solar

Como pode ter chegado a manifestar-se esta relação musical, esta harmonia interplanetária, que nos faz observar os céus como uma música das esferas?

Stephen M. Phillips argumenta que na origem destas relações harmónicas está a maneira com o Sistema Solar foi formado. As órbitas elípticas dos planetas terão surgido de um disco de acreção que se começou a diferenciar em braços em espiral espaçados de uma distância que obedece à Lei de Titius-Bode, ou seja, em que cada volta estaria separada da anterior de uma razão semelhante àquela que se manifesta entre as notas musicais.

Figura 3 – A distância  desde o Sol do n-ésimo planeta a contar de Mercúrio é a distância média de pontos da órbita adjacentes que cruzam a espiral logarítmica. O material do disco de acreção terá condensado em órbitas elípticas nos pontos médios de cada volta sucessiva da espiral. [ii]

Esta espiral de contração é do tipo oposto à espiral expansiva do desenvolvimento que ocorre, por exemplo, nas conchas marinhas e nos embriões vertebrados. Nada nos surpreende o crescimento em espiral dos seres vivos, pois acontece numa escala de tempo em que o podemos estudar em pormenor. Mas quando se trata do nascimento de um sistema estelar talvez seja mais difícil de compreender que possa ter um desenvolvimento semelhante a um ser vivo.

Isto advém da visão muito comum na modernidade de que existem seres vivos e seres não-vivos, orgânicos e inorgânicos; é fruto desta ideia tão contrária a todo o pensamento tradicional de que o mundo cá em baixo pode ter um funcionamento diferente do universo lá em cima,

O padrão óctuplo, como as oitavas de uma escala musical, pode ser encontrado em muitas situações da natureza, como na tabela periódica e nas bandas de valência dos átomos, nos octetos de bariões e mesões da matéria, e pode também ser encontrado no sistema solar, como vimos atrás. Se estas leis físicas se manifestam deste a estrutura subatómica até à escala planetária, então também aquilo que chamamos de leis biológicas se podem manifestar, harmonizando-se assim o nosso entendimento a um cosmos organizado segundo leis que não mudam apenas porque estamos a uma escala diferente. Pois as leis, sendo imutáveis, não podem padecer da relatividade dos tamanhos. Aquilo que se manifesta como electrões de valência num átomo, pode encontrar correspondência nos cometas que viajam entre sistemas estelares, e os planetas que orbitam o Sol nas 7 cores da escala cromática dos arco-íris que atravessam o céu.

Estrutura óctupla do sistema solar

Podemos agora verificar que a distância medida pela LTB não é a que separa os planetas do Sol nem de Mercúrio, como se pensava originalmente, mas aquela que perfaz de cada planeta ao centro assimptótico da espiral, que são os comprimentos de onda das quartas perfeitas dos subtons da escala musical pitagórica, como dado pela seguinte equação:

dn-4a=(3a2)×2n     (n=1, 2, 3, etc.),

em que 3a2 é o comprimento de onda da quarta perfeita da primeira oitava de subtons cuja tónica tem o comprimento a. Vénus corresponde à quarta perfeita da segunda oitava, e assim sucessivamente até Urano, o oitavo desde Mercúrio contando a cintura de asteróides. Este pormenor é muito importante pois, tal como a oitava nota musical de uma escala pitagórica é a tónica da oitava seguinte, também Urano pode ser considerado o oitavo planeta a contar do Sol e, por conseguinte, o primeiro do octeto seguinte, ao qual pertencem Neptuno e Plutão. É desta forma que se consegue adaptar a mesma lei a duas escalas sucessivas, com progressões distintas em cada caso.

E assim, tal como Mercúrio não segue a LTB da mesma maneira que os outros planetas pois não está incluído na progressão geométrica que origina as distâncias dos planetas, também Urano, na posição de um segundo centro assimptótico da espiral, não obedece à lei da progressão geométrica que corresponde ao novo octeto.

Tabela 2 – d: distâncias assimptóticas dos planetas do sistema solar. R: raios orbitais dos planetas em torno do Sol. n: posição dos planetas do primeiro octeto. n’: posição dos planetas do segundo octeto. [iii]

OitavaPlanetann’Distância d ao 1ºcentro assimptóticoDistância d ao 2ºCentro assimptóticoRnRn’
1Mercúrioa
2Vénus1(3/2)×21 = 3a6a
3Terra2(3/2)×22 = 6a8a
4Marte3(3/2)×23 = 12a12a
5Asteróides4(3/2)×24 = 24a20a
6Júpiter5(3/2)×25 = 48a36a
7Saturno6(3/2)×26 = 96a68a
8Urano7(3/2)×27 = 192a132a
9Neptuno148×21 = 96a260a260a
10Plutão248×22 = 192a324a

A expressão capaz de prever as distâncias dos planetas além de Urano pode ser escrita da seguinte forma:

dn’=196a+3a’×2n’-1    (n’=1, 2, etc.)

que se assemelha com 

dn=4a+3a×2n-1    (n=1, 2, etc.)

Com estas expressões chegamos às previsões da Lei de Titius-Bode para os planetas até Plutão (tabela 3).

Tabela 3 – comparação entre as distâncias previstas pela LTB e as distâncias reais.[iv]

PlanetaDistância prevista (UA)Distância real (UA)
Mercúrio0.380.39
Vénus0.700.72
Terra1.001.00
Marte1.601.52
Asteróides2.802.77
Júpiter5.205.20
Saturno10.009.54
Urano19.6019.19
Neptuno29.2030.07
Plutão38.8039.48

A concordância entre os valores, depois de uma dedução matemática com firmes bases físicas, apoia fortemente a conclusão de que esta Lei de Titius-Bode não é simplesmente fruto do acaso.

A beleza que brilha através destas relações entre os planetas transparecem a presença de uma harmonia reguladora do universo, que pelos caminhos da ordem conduz tanto os seres vivos como os sistemas estelares através do seu percurso de desenvolvimento. De beleza se reveste a verdade, e a beleza da matemática pitagórica manifestada no sistema solar pode ainda ser revelada com maior intensidade, quando virmos, na continuação deste artigo, a importância dos sólidos platónicos na definição da estrutura das órbitas planetárias.

Notas:

[i] Stephen M. Phillips, The Logarithmic Spiral Basis of the Titus-Bode Law. Acessível em http://www.smphillips.mysite.com/article-17.html

[ii] Idem.

[iii] Idem.

[iv] Idem.

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