Pedro Nunes: Matemática, Ciência e a Busca da Verdade no Renascimento

A sua obra é vasta e decisiva na História da Matemática europeia do século XVI. Marca a ciência do seu tempo nas áreas da Geografia, Geometria, Astronomia, Cosmografia e Náutica, e Matemática. Como tónica principal, vemos uma capacidade do autor em recolher o conhecimento do passado estudando aprofundadamente os autores clássicos e seus predecessores próximos mas com uma atitude de grande exigência, reflectindo sobre os problemas das várias áreas: geografia, cosmografia, geometria, álgebra. Contudo, não se limitando a ser justo herdeiro do saber passado, Pedro Nunes faz comentários e anotações procurando corrigir os erros das obras chegadas até ele.
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Ó tu, que desejas desde a terra conhecer os mistérios incógnitos do céu

E abrir as velas ao mar desconhecido

Eis aqui quem sublime descobre o sumo Olimpo

E com o qual, por guia, serás seguro através das ondas.

Nem admira que tantas riquezas de engenho desabrochem num livrinho.

O nobre autor deixou uma obra egrégia

Se dura através dos séculos o nome ilustre de Alcides

Que pôde sustentar o céu com os ombros,

Não admira que se celebre a glória de Pedro Nunes

Cuja mente abrange as terras, os mares e os astros.1

Petrus Nonius Salaciensis, assim se assinava o nosso autor nas suas obras escritas em latim para uma melhor divulgação dos seus trabalhos de investigação na Europa da época. Nascido em 1502 em Alcácer do Sal, a Salácia romana e Al-Kassar muçulmana, cidade que na actualidade perdeu relevo mas em épocas remotas foi um importante lugar cujo nome remete para a produção de sal. Situada na margem do rio Sado, numa elevação a pouca distância do início do longo estuário deste rio, tinha as condições óptimas para comunicação e defesa.

A biografia de Pedro Nunes está muito incompleta e apenas em um parágrafo podemos escrever o que de facto sabemos sobre a personagem. Como é típico em grandes figuras, os aspectos existenciais são de menor importância, cheios de lacunas e incertezas e, pelo contrário, a obra produzida e deixada para os vindouros ocupa um espaço mental tão amplo que se torna difícil de abarcar pelos herdeiros que nos esforçamos a ser. 

Sabemos o ano e local do nascimento pelas palavras do próprio autor e sobre si próprio nada mais registou pela sua mão. Apesar da sua importante obra e cargos relevantes que ocupou durante a sua vida, foi com dificuldade que os futuros biógrafos recolheram alguns dados para reconstruir o seu percurso de vida. Não era de famílias nobres pois, caso o fosse, a sua ascendência teria sido mais facilmente reconstruída. Supõe-se que terá estudado na universidade em Lisboa para depois ingressar e aprofundar os seus estudos em Salamanca. Nesta cidade vive durante alguns anos, possivelmente entre 1520 a 1525, e aí casa com Dona Guiomar Aires. De regresso ao reino de Portugal ingressa na universidade em Lisboa como professor de Filosofia Moral e é nomeado cosmógrafo, actividade importante na época para as navegações oceânicas. Na Universidade passa pelas cátedras de Lógica e Metafísica. É solicitado para ser preceptor na Corte portuguesa dando formação a príncipes e infantes. Mais tarde, quando a Universidade passa para Coimbra, é professor de Matemática, cargo que manterá até à sua jubilação em 1562. Desde 1547 foi Cosmógrafo-Mor até à sua jubilação. Nos últimos anos de vida ainda é chamado à Corte pelo rei D. Sebastião, em 1572, e em 1577 recebe convite do Papa Gregório para emitir o seu juízo sobre a reforma do calendário, mas o seu falecimento no ano seguinte não permitiu essa colaboração. 

A sua obra é vasta e decisiva na História da Matemática europeia do século XVI. Marca a ciência do seu tempo nas áreas da Geografia, Geometria, Astronomia, Cosmografia e Náutica, e Matemática. Como tónica principal, vemos uma capacidade do autor em recolher o conhecimento do passado estudando aprofundadamente os autores clássicos e seus predecessores próximos mas com uma atitude de grande exigência, reflectindo sobre os problemas das várias áreas: geografia, cosmografia, geometria, álgebra. Contudo, não se limitando a ser justo herdeiro do saber passado, Pedro Nunes faz comentários e anotações procurando corrigir os erros das obras chegadas até ele.

Faremos uma breve análise das obras publicadas em vida do autor seguindo uma ordem cronológica.

AS SUAS OBRAS
TRATADO DA ESFERA

É a primeira obra impressa de Pedro Nunes, ano de 1537, e a única obra por ele publicada em português. O conteúdo deste livro é heterogéneo, isto é, não se pode considerar apenas um livro pois nesta edição aparecem traduções e textos originais. A edição começa com a tradução do Tratado da Esfera de Sacrobosco2 mas Pedro Nunes não se limita a verter para a língua portuguesa esta obra que era um manual de estudo para escolásticos e pilotos do mar: acrescenta-lhe vinte e seis notas marginais ao longo do texto e uma Anotação sobre as derradeiras palavras do Capítulo dos Climas no final. Segue-se a Theorica do Sol e da Lua, tradução da obra de Purbáquio3 e depois a tradução do Livro Primeiro da Geografia de Ptolomeu4, tradução que finaliza com um comentário ou anotação de Pedro Nunes a alguns dos problemas e soluções de Ptolomeu no que se refere aos cálculos para determinar o círculo máximo terrestre. Os dois textos originais que o nosso autor escreveu para este Tratado da Esfera são: Tratado sobre certas duvidas da navegação, e o Tratado em defensa da carta de marear. No primeiro dos textos, Pedro Nunes procura resolver problemas práticos da navegação oceânica que lhe foram colocados por Martim Afonso de Sousa ao regressar do Brasil: aqui começa Pedro Nunes a fazer os seus estudos sobre o problema das linhas de rumo que depois desenvolve noutra obra posterior5. O último texto desta primeira obra publicada por Pedro Nunes é uma verdadeira carta de marear para ajudar os pilotos e navegantes a cruzarem os mares, uma espécie de manual de pilotagem pois o nosso autor, sendo cosmógrafo real, sentiu a necessidade de existir um texto para a formação técnica dos mareantes. Esta Carta de Marear começa com um louvor ou hino às navegações dos portugueses:

“Não há dúvida que as navegações deste reino de cem anos a esta parte são as maiores, mais maravilhosas, de mais altas e mais discretas conjecturas que as de nenhuma outra gente do mundo. Os portugueses ousaram cometer o grande mar Oceano. Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos e o que mais é: novo céu e novas estrelas. E perderam-lhe tanto o medo que nem há grande quentura da tórrida zona nem o descompassado frio da extrema parte do sul, que os antigos escritores nos ameaçavam lhes pudesse estorvar perdendo a estrela do norte e a tornar a cobrar. Descobrindo e passando o temeroso cabo da Boa Esperança, o mar da Etiópia, da Arábia, da Pérsia puderam chegar à Índia. Passaram o rio Ganges tão nomeado, a grande Trapobana [Sri Lanka] e as ilhas mais orientais. Tiraram-nos muitas ignorâncias: mostraram-nos ser a terra maior que o mar e haver aí Antípodas que até os santos duvidaram. E que não há região que nem por quente nem por fria se deixe de habitar. E que em um mesmo clima e igual distância da equinocial há homens brancos e pretos e de muy diferentes qualidades. E fizeram o mar tão chão que não há hoje quem ouse dizer que achasse novamente alguma pequena ilha, alguns baixos, ou sequer algum penedo que por nossas navegações não seja já descoberto”.6

Esfera armilar. Domínio público
DE CREPUSCULIS

Obra publicada em 1542 em língua latina. Contém as investigações de Pedro Nunes sobre a duração variável dos crepúsculos seguido da tradução do Livro dos Crepúsculos de Allacen7. Foi considerada a obra mais notável de Pedro Nunes, um julgamento feito não apenas pelos historiadores, mas também confirmado pelo respeito e admiração com que esta obra sempre foi citada pelos matemáticos dos séculos XVI e XVII. Na dedicatória inicial dirigida ao rei D. João III, sabemos pelo autor que estava a traduzir a obra de Vitrúvio lamentando-se ao soberano pela falta de tempo que o impedia de terminar a tradução que, afinal, não tendo sido editada o manuscrito não chegou até nós. Neste De Crepusculis revela-se o grande matemático e geómetra conseguindo fazer uma ponte entre o mundo mental, onde as realidades são exactas, com um mundo concreto, onde as manifestações da natureza são variáveis. Os difíceis problemas matemático-cosmográficos sobre a duração de cada crepúsculo consoante a latitude do lugar e a época do ano e sobre as condições do crepúsculo mínimo são magnificamente resolvidos, pela primeira vez, com os cálculos e métodos apresentados pelo autor. Estas questões, e outras associadas, são tratadas com um notável grau de rigor e abstracção que muito impressionou os contemporâneos. Nesta obra apresenta também a ideia do instrumento de medição que ficou conhecido com o nome nónio como referência ao seu criador. Este instrumento foi muito útil para determinar com mais rigor e exactidão os intervalos de medição difíceis de obter no astrolábio ou no quadrante, uma espécie de divisor de medidas. O De Crepusculis teve uma larga difusão europeia colocando o seu autor num dos nomes mais proeminentes da Matemática de então.

DE ERRATIS ORONTII FINAEI

O “Dos Erros de Orôncio Fineu” foi uma obra publicada em 1546 em latim e tem como tema central a polémica com o então célebre e reputado mestre em matemática e astronomia Orôncio Fineu, director do Colégio de França em Paris. Compreendemos claramente, e pelas palavras do próprio autor na nota introdutória à obra, quais os objectivos deste livro:

Pedro Nunes, Salaciense, ao leitor:

Antes de mais desejo advertir-te, leitor de boa-fé, que ao dar publicidade ao presente livrinho me não moveram propósitos hostis, mas a satisfação que a explicação da verdade proporciona, pois nada importa tanto ao matemático como a defesa da doutrina que professa e da maneira por que a alcançou.

Se é dever do homem probo não ocultar a ciência que possui, cumprindo-lhe até concorrer para que ela se torne de utilidade geral, esse dever impõe-se-lhe mais imperativamente quando vê pessoas devotadas ao estudo enredadas no erro por conduto de outrem. É o que se passa, porventura, com numerosos indivíduos, que, abalados pela autoridade de Orôncio Fineu, se persuadem de muitas coisas cuja falsidade adiante se verá nitidamente, graças à nossa esforçada diligência.

Não são muitos os erros de Orôncio, porém tão extraordinários que devem ser postos a nu; e são poucos, porque ele só erra quando ousa fazer demonstrações matemáticas, ao que raras vezes se atreve – a menos que se designem de originais as demonstrações que, às claras e por inteiro, vai buscar a Téon e a Campano, sem todavia lhes citar os nomes. Em tais demonstrações não poderia errar, a menos que Téon e Campano houvessem errado; ora Téon evita sempre o erro, mas Campano enganou-se sobremaneira na exposição das definições do livro V dos Elementos, de Euclides, e, por consequência, Orôncio seguiu-lhe as passadas.

Há treze anos estive decidido a advertir epistolarmente Orôncio para que fundamentasse as suas invenções com mais prudência e madureza antes de as lançar a público; mudei, porém, de parecer, por ter considerado que isto incumbia especialmente aos doutos que vivem na mesma cidade onde ele ensina publicamente as Matemáticas. Vendo, entretanto, que se não retractava, por advertência alheia ou resolução pessoal, dos erros que cometera e até lhes acrescentava novos disparates, pensei que não devia deixá-los correr por mais tempo. Destarte, intervindo, tenho em mente obviar aos referidos inconvenientes, desfazendo os erros com o mínimo de palavras, no desejo de que Orôncio me acolha com o mesmo ânimo com que acolherei quem me mostre haver errado. É próprio da debilidade humana cair amiúde no erro, e penso que disto não estou isento; julgo, no entanto, que cumpre ao homem de bem não encobrir desacertos e, mediante a luz da verdade, libertar o seu semelhante, se lhe for possível, das trevas da ignorância.

Adeus.”

Orôncio Fineu. Domínio público

E nas primeiras páginas do livro, antes de entrar na análise específica dos erros, o nosso autor afirma:

“É ainda de notar que Orôncio Fineu julga ter descoberto e demonstrado tudo isto [ter achado entre duas linhas dadas duas meias proporcionais em proporção contínua, o quadrado do círculo, duplicado o cubo, ensinado a maneira de inscrever no círculo qualquer polígono rectilíneo e haver determinado as diferenças das longitudes dos lugares, em todo e qualquer tempo, por processo diferente do dos eclipses lunares] com muita clareza, chegando até a dizer que «a Divina Providência permitiu que coisas famosas e difíceis, sucessivamente diferidas, sejam destinadas a inventores que só Deus sabe terem sido eleitos para elas». A meu ver, Orôncio ensandeceu porque se assim não fosse teria reconhecido os primeiros erros que cometeu há doze anos e aterrar-se-ia com os novos e desmesurados em que caiu agora e neste livro francamente porei a claro.”8

No entanto, neste livro Pedro Nunes não se limita a corrigir os erros alheios e aproveita o ensejo, na sequência dessa correcção, para escrever sobre vários temas:

– O processo inventado por Platão para achar duas meias proporcionais e duplicar o cubo.

– A muito clara demonstração de Arquimedes acerca da razão da circunferência para o diâmetro.

– A razão pela qual se tira do movimento da Lua a diferença da longitude dos lugares.

– A explicação das definições do livro V dos Elementos de Euclides.

– A teórica e fábrica dos relógios horizontais e verticais.

– A demonstração e uso das principais tábuas de direcções de João Regiomontano.

SOBRE A ARTE E A CIÊNCIA DE NAVEGAR

Esta obra no original latino é publicada em 1566, em Basileia, com o título Petri Nonii Salaciensis Opera juntamente com a obra In Theoricas Planetarum. Em 1573 sai nova edição destas Opera, agora em Coimbra, com correcções feitas aos erros grosseiros que a primeira edição continha por descuido do impressor.

É neste livro De arte atque ratione navigandi que Pedro Nunes expõe todo o seu saber teórico de aplicação da matemática às navegações oceânicas. Volta a analisar os problemas suscitados pelos navegadores, nomeadamente Martim Afonso de Sousa e João de Castro, com quem terá partilhado muitas das suas lições, e aborda com mais detalhe o problema das linhas de rumo apresentando a solução matemática para o que mais tarde se designou loxodromia. Na prática, os pilotos tinham cartas ou mapas planos mas navegavam numa superfície esférica: como fazer essa correlação entre o esférico e o plano definindo com precisão as linhas de rumo? Nas cerca de duzentas e sessenta páginas (edição actual) aborda todos os problemas teóricos da arte e ciência de navegar e termina a obra com Uma anotação a um problema mecânico de Aristóteles acerca do movimento do barco a remos onde analisa matematicamente o célebre problema: por quê um barco avança mais do que a pá do remo avança em sentido contrário?

ANOTAÇÕES ÀS TEÓRICAS DOS PLANETAS DE JORGE PURBÁQUIO

Este livro foi publicado também na Petri Nonii Salaciensis Opera em 1566. Nesta obra volta a abordar a obra de Purbáquio, que já tinha feito no Tratado da Esfera, mas agora com maior amplitude. São um total de trinta e seis anotações ao livro Theoricae Novae Planetarum escrito pelo famoso astrónomo vienense em 1454 e que foi obra de referência na astronomia nos séculos XV, XVI e ainda XVII, usado nas universidades europeias. Estas anotações ou comentários insere-se numa tradição científica de análise das obras e era comum na época. As Anotações de Pedro Nunes caracterizam-se por terem uma acuidade especial na abordagem de algumas questões. Não são comentários totais à obra, antes pelo contrário, o autor limita-se a esclarecer o que na sua opinião andava mal explicado ou estava errado. Ele próprio afirma: apenas quisemos anotar aqueles pontos que os comentadores expuseram insuficiente ou incorrectamente. As observações do matemático português ultrapassam, no entanto, a simples correcção pela profundidade e alcance com que vários assuntos são tratados com grande rigor matemático e geométrico. Estas Anotações acabaram por ter impacto nos círculos científicos europeus.

LIBRO DE ALGEBRA EN ARITHMETICA Y GEOMETRIA

O Livro de Álgebra de Pedro Nunes foi impresso pela primeira vez em Antuérpia no ano 1567 mas a sua génese está muito atrás. O primeiro texto manuscrito terá sido redigido por volta de 1534 onde o matemático expôs os seus conhecimentos para circulação entre os estudantes. Ao longo dos anos terá ido aprimorando esses textos até o traduzir para castelhano e ser impresso. Esta obra denota a amplitude do autor ao abordar temas que vão para além da astronomia, geometria, geografia, entrando na matemática pura com uma acuidade e abstracção invulgares para a época e apresentando também algumas inovações ao longo das 450 páginas (edição actual). Foi um livro bem acolhido pelos seus pares com traduções para o latim, feita por Johann Praetorius, e para francês por Guillaume de Rascas, influenciando o pensamento matemático europeu. Na dedicatória que o autor faz ao Cardeal D. Henrique escreveu: Esta obra há perto de XXX anos que foy por my composta, mas porque despois fuy ocupado em estudo de cousas muy diferentes, e de mera especulação, posto que algumas vezes a revisse, e conferisse com o que outros despois escreveram (…) e primeiro a escrevi em nossa lingoa portuguesa (…) mas considerando que o bem quanto mais comum e universal tanto é mais excelente (…).

Libro de Algebra en Arithmetica y Geometria e Pedro Nunes. Domínio público

Esta é a da obra de Pedro Nunes que chegou até aos nossos dias sabendo, contudo, que os materiais manuscritos poderão ter sido numerosos mas desapareceram pela acção do tempo e descuido humano.

ENCONTROS E CONFLITOS

Como já referimos, os dados biográficos de Pedro Nunes são muito escassos. No entanto, ao pretendermos olhar para uma figura do nosso passado temos a inevitabilidade de procurar encontrar aqueles factos que nos permitam esboçar um certo percurso de uma vida. Assim ocorre quando reconstituímos uma biografia e esta poderá ser mais ou menos completa dependendo do material de que dispomos para refazermos essa vida. Os biógrafos são como que uns especialistas em restauro de obras de arte: enquanto estes procuram estabilizar e perpetuar uma estátua ou uma pintura, aqueles procuram estabilizar e perpetuar, na linha diacrónica da nossa consciência, essas figuras que para nós são exemplo da genialidade que atravessa o ser humano. Uma das primeiras constatações relativamente à vida de Pedro Nunes é a carência de muitos dados concretos para uma clara e límpida biografia. O que não é uma exclusividade visto que nos séculos XV e XVI temos muitas figuras da história de Portugal onde os elementos biográficos são escassos: Gama, Albuquerque, Pacheco Pereira, Camões entre muitos outros. Sucede que os historiadores, perante a grandeza destas figuras, tiveram a necessidade de reconstituírem as suas vidas mas deveremos ser prudentes quando pretendemos preencher as habituais lacunas na história de um qualquer personagem.

Quando procuramos compreender as relações directas de Pedro Nunes com as personagens da sua época encontramos as limitações próprias causadas pela escassez de dados. Mas quanto à influência do seu pensamento, as universidades europeias do século XVI não deixaram de fazer ecoar o seu nome nalgum comentário, estudo, análise, debate… e as suas obras foram editadas, difundidas, traduzidas, copiadas. E também não esquecemos a importância como professor e mestre na universidade e corte portuguesa.

Personagens desta envergadura sempre provocam amores e ódios, atracção e repulsa. Tal como há quem reconheça o valor e procure unir-se a ele, há quem desenvolva em si próprio invejas e conflitos ao contactar esses valores, não vendo que, mais do que combater as ideias do outro, deveriam combater os seus medos e receios. Porque a verdadeira grandeza não pode estar fundada na pequenez alheia e só quando se tem como guia o saber e o conhecimento, e não o prestígio pessoal, se pode ser realmente grande. Ocorre também o facto destas figuras como Pedro Nunes, sendo motores do desenvolvimento humano, tenham um papel activo nas formas de pensar e agir e isso leva a reacções contrárias naqueles que têm processos habituais já bem estabelecidos não os querendo mudar. Como cosmógrafo da corte, o nosso autor teve um papel de ensinar e corrigir muitos daqueles que iam para o alto mar. O facto de Pedro Nunes não ter experiência prática levava a algumas observações e comentários por parte daqueles a quem dirigia os seus ensinamentos como se denota numa passagem do Tratado em defesa da carta de marear: “Bem sei quanto mal sofrem os pilotos que fale na Índia quem nunca foi nela e pratique no mar quem nele não entrou.” Assim se compreende alguns rancores e invejas pelas quais teve de passar.

Um conflito efectivo que o levou a entrar na arena do debate científico foi com Orôncio Fineu, anteriormente referido. Um conflito que o levou a escrever uma obra, portanto dedicar tempo a um tema que considerava de relevo. Pensamos que esse livro sobre os Erros de Orôncio Fineu teve como motivação mental a reposição da verdade científica, mas consideramos que não estará alheia alguma motivação emocional no repúdio pelo pretensiosismo, fruto das vaidades pessoais de Fineu. Quem sabe se o director do Colégio Real fosse mais humilde evitaria essa obra ao matemático português.

A edição dos seus livros originou um inevitável contacto abrangente com o pensamento europeu, isto é, com esses personagens que portavam a chama da ciência na Europa de então. Foram relações científicas, de pensamento, de tipo indirecto pelas leituras dos seus livros, o que permitiu fazer chegar o seu pensamento a muitos dos seus pares. Contactos mais directos não nos chegaram mas cremos que Pedro Nunes terá comunicado epistolarmente com muitos dos seus contemporâneos. Resta-nos, no entanto, um facto histórico assinalável demonstrando o valor e importância que Pedro Nunes tinha na Europa do pensamento: uma carta que John Dee9 escreveu a Mercator10 numa fase difícil da sua vida, estávamos no ano 1558. Passamos a transcrever a parte que consideramos importante.“Deves saber que, além de uma doença extremamente perigosa com que penei durante todo este ano passado, tenho suportado (por parte daqueles que… etc) muitas outras perturbações que atrasaram em grande medida os meus estudos e já as minhas forças não conseguem suportar o peso de um esforço e tarefa tais que quase requerem (para serem realizadas) trabalho próprio de um Hércules. Por isso leguei a minha obra, se ela não puder ser ultimada ou publicada enquanto eu próprio for vivo, a Pedro Nunes, de Alcácer do Sal, varão o mais erudito e ponderado, aquele que nos permaneceu como eminência e pilar únicos das artes matemáticas. Não há muito roguei-lhe com insistência que, no caso de que lhe chegasse esta minha obra postumamente, a adoptasse para si com benevolência e caridade, e que se servisse dela de todas as maneiras, como se fosse sua, e por último se dignasse completá-la, emendá-la e corrigi-la para pública utilidade dos homens de ciência, tal como se fosse inteiramente sua. E não duvido que ele me satisfará neste desejo (se mantiver plenitude de faculdades e saúde), posto que ele me estima tanto e com tanta fidelidade e porque está inscrito na sua natureza, (e consolidado pela vontade, a habilidade e o exercício) ele entregar-se com empenho aos estudos sumamente necessários para a República Cristã.”11

John Dee. Domínio público

Esta carta foi publicada impressa na primeira edição da obra de John Dee Propaedeumata Aphoristica, em Londres, 1558. Nessa época, esta grande figura do renascimento inglês atravessava uma fase muito difícil da sua vida e esta passagem epistolar é significativa para nós avaliarmos a figura de Pedro Nunes. Do texto infere-se que os dois personagens tinham contactos: Pedro Nunes com obra reconhecida na Europa e John Dee a começar a desbravar os vários campos onde desenrolou o seu trabalho e, tendo dúvidas quanto ao seu próprio futuro, lega a sua obra em quem mais tem confiança. Impressiona-nos a distância física entre os dois autores e, de certa forma, a ignorância que temos da correspondência entre Pedro Nunes e os seus pares, os homens do saber do seu tempo, leva-nos a ficar surpreendidos com esta disposição do mago inglês. Uma confiança, quanto a nós, baseada na obra que Nunes já tinha desenvolvido onde a busca da verdade e não o prestígio pessoal esteve sempre em primeiro plano. As traduções feitas acrescentadas com correcções e comentários, nos seus livros originais as referências feitas a outros autores, em suma, na obra científica publicada por Pedro Nunes denota-se uma busca pela verdade, denota-se um pensamento vasto e rigoroso a perscrutar as leis da natureza, os modelos matemáticos de como está construído o cosmos, e a pessoa que isto vê e observa é mero instrumento que passa desapercebido.

Com esta carta de John Dee podemos aferir as qualidades morais do nosso autor que levava a que homens de ciência e saber, seus pares, se dispusessem a entregar a própria obra nas mãos do matemático português confiando que ele daria bom uso a esses textos. Afinal os seres humanos não são apenas concorrentes, afinal os seres humanos não apenas querem plagiar, afinal é bom sabermos que estamos aos ombros de gigantes para não perdermos a noção da nossa pequenez, por mais sábios e doutos que sejamos nalguma área…

IMPACTO HISTÓRICO

Desde muito cedo a influência de Pedro Nunes foi efectiva. Os parcos elementos históricos que temos indicam-nos que em meados dos anos vinte do século XVI, com a idade a rondar os 25 a 30 anos, é professor de Lógica, Filosofia Moral e Metafísica na Universidade de Lisboa e nomeado cosmógrafo do reino. Pelo seu valor, pela sua proximidade com a Corte é chamado pelo rei D. João III para ser mestre dos seus irmãos, os príncipes D. Luís e D. Henrique. Às suas aulas não assistiriam apenas os príncipes pois temos referências de que D. João de Castro, o futuro vice-rei da Índia, também assistia a essas lições e não deveria ser o único. Esta actividade de mestre áulico deverá ter ocorrido até à mudança da Universidade para Coimbra em 1537. Nesta data, Pedro Nunes foi para Coimbra onde passou a reger a cátedra de Matemática. Esta função de mestre de príncipes não desaparecerá, pois mais tarde também será chamado para dar aulas ao futuro D. Sebastião. Em 1547 é nomeado Cosmógrafo-mor do reino, título que levará até final da vida em 1578 e que representará esse valor supremo da ciência matemática e náutica da sua época. 

Apesar de residir em Coimbra após a mudança da Universidade para essa cidade até final da vida, frequentes vezes era solicitado a comparecer na Corte em Lisboa para ser ouvido em questões importantes do reino. A sua fama é notória e o seu elevado conhecimento científico é reconhecido pois chega a ser solicitado a dar o seu parecer sobre a reforma do calendário que o Papa Gregório XIII implementou. Não chegou a emitir o seu juízo pois a morte veio recolhê-lo antes dessa tarefa completada. Nesta reforma do calendário, foi figura proeminente o matemático alemão Cristóvão Clavius, jesuíta que passara em Coimbra no colégio dos jesuítas quando Pedro Nunes era professor de matemática na universidade. Não há documentos que provem os contactos pessoais entre as duas figuras, mas a obra de matemático português foi influente no pensamento e obra de Clavius e subsequente desenvolvimento no estudo das ciências matemáticas efectuado pelos jesuítas.Do seu sentido prático aplicado à ciência, resta-nos a notícia bem assinalada da invenção do nónio, de nunes o seu nome: um instrumento que permitia uma medição em escalas mais precisas aplicado ao astrolábio ou ao quadrante. Instrumento que mais tarde Vernier12 dará fama. Outros instrumentos terão sido desenvolvidos por Pedro Nunes mas não chegaram até nós dados exactos para fazermos uma vinculação. O espólio do nosso autor não foi preservado pelos seus herdeiros, os manuscritos desapareceram e o mesmo poderá ter ocorrido com instrumentos experimentais como se pode depreender de um comentário de Francisco Stockler13 fazendo referência a uma “anedota” que circulava em Coimbra no seu tempo onde o espólio de instrumentos foi parar às mãos dos monges beneditinos e, quando necessitaram de metal amarelo para uns ornamentos nas grades da igreja, mandaram fundirem essas peças que para eles não tinham uso!14

Efígie de Pedro Nunes no Padrão dos Descobrimentos, Lisboa. Creative commons

Salientemos também que os seus trabalhos de investigação, inovadores e pioneiros, foram contributo e gérmen para outros homens de ciência. O facto da obra de Pedro Nunes estar a ser agora estudada por cientistas e não somente por historiadores, tem levado a abrir o leque das influências possíveis do nosso matemático. Joaquim Alves Gaspar no seu trabalho “How Mercator constructed his projection in 1569”15 apresentou um estudo, desenvolvido de um ponto de vista científico, onde se conclui que sem os trabalhos precedentes de Pedro Nunes não seria possível tal projecção planisférica, ou seja, os estudos de Pedro Nunes sobre a loxodromia foram essenciais para que Mercator pudesse produzir a sua famosa projecção planisférica passando o globo terrestre a estar bastante bem cartografado em duas dimensões.  

De toda a obra de Pedro Nunes temos que realçar o esforço de fazer com que o conhecimento e a ciência saíssem de uma mera especulação encerrada nas cátedras universitárias para contribuir para o desenvolvimento da civilização, numa época em que a Europa se abria ao mundo e o mundo chegava à Europa.

José Antunes, Junho 2016


Notas

  1. Epigrama de Jorge Coelho in Tratado da Esfera, tradução de Serafim Leite, Lisboa, 1969
  2. Joahannes de Sacrobosco (c. 1195 – c. 1256) foi monge e professor na Universidade de Paris: matemático e astrónomo escreveu o seu célebre Tratactus de Sphaera que foi obra de referência na Europa para os estudos astronómicos.
  3. Georg von Peuerbach (1423-1461) foi professor na Universidade de Viena: matemático e astrónomo, autor de cerca de vinte obras, fez também uma nova tradução a partir do grego do Almagesto de Ptolomeu.
  4. Claudius Ptolomeus (90-168), Alexandria: o grande cientista clássico cuja obra, abrangendo as áreas de geografia, matemática, astronomia, óptica, música vai ser a referência fundamental durante a Idade-Média.
  5. De arte atque ratione navigandi
  6. Tratado da Esfera, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2014, pp 120-121
  7. Texto árabe de grande difusão medieval na tradução latina de Gerardo Cremonense, cuja autoria veio a provar-se mais tarde não pertencer a Allacen mas sim a Ibn Mucadh de Córdova (c. 990 – c. 1079).
  8. De Erratis Orontii Finaei, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2005, pp 131-135
  9. John Dee (1526 – 1608): matemático, astrónomo, médico, mago e alquimista da Corte de Isabel I de Inglaterra.
  10. Gerardus Mercator (1512 – 1594): matemático, astrónomo e cartógrafo flamengo famoso pela projecção planisférica.
  11.  In “Do humanista Pedro Nunes”, Tarrío, Ana Maria S.,  Revista Oceanos 49, Janeiro-Março 2002
  12. Pierre Vernier (1580 – 1637): matemático francês que aplicou a ideia do nónio a novo instrumento criando a escala vernier cujo fundamento foi exposto por Pedro Nunes.
  13. Francisco Garção Stockler (1759-1829)
  14. In Os instrumentos de medida de Pedro Nunes, Reis, António Estácio dos, Revista Oceanos 49, Janeiro-Março 2002
  15. Warburg Institute, London, November 2013
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