Seshat, A Senhora da Escrita

Seshat, a divindade egípcia feminina da escrita, está intimamente ligada aos registos e contagem e por isso nos parece interessante abordá-la dentro dos parâmetros desta revista que busca fazer pontes entre várias áreas do saber.

Seshat, também é comum encontrarmos a grafia Sechat, significa literalmente “aquela que escreve”, “a escriba”.

Apesar de ser pouco popular no nosso conhecimento do panteão egípcio, não significa que a sua importância e papel na cosmovisão metafísica do antigo Egipto fosse pequena. Tal como muitas outras divindades, está presente desde os primórdios da história egípcia conhecida: as suas mais remotas referências estão na Pedra de Palermo da V Dinastia, Império Antigo, e a sua presença vai até à época ptolomaica atravessando assim toda a história do Egipto conhecida.

Seshat, também é comum encontrarmos a grafia Sechat, significa literalmente “aquela que escreve”, “a escriba”.

Apesar de ser pouco popular no nosso conhecimento do panteão egípcio, não significa que a sua importância e papel na cosmovisão metafísica do antigo Egipto fosse pequena. Tal como muitas outras divindades, está presente desde os primórdios da história egípcia conhecida: as suas mais remotas referências estão na Pedra de Palermo da V Dinastia, Império Antigo, e a sua presença vai até à época ptolomaica atravessando assim toda a história do Egipto conhecida.

Pedra de Palermo da V Dinastia. Königlich Preussische Akademie der Wissenschaften zu Berlin. Domínio público

Esta durabilidade das formas simbólicas causa-nos certa impressão quando notamos que Cleópatra está cerca de mil anos mais próxima de nós que dos faraós das primeiras dinastias. Apesar deste estranho hálito de eternidade não podemos pensar que ao longo destes três mil anos de existência não existiram mudanças e alterações formais ligeiras, mas os traços ou elementos fulcrais para identificarmos os símbolos estão lá.

Para a forma de pensar egípcia, o que estava em baixo era um reflexo do que estava acima e, assim, o que existia no plano material da existência tinha a sua raiz num plano mental. Na impossibilidade de ter contacto directo com esse plano mental através dos órgãos dos sentidos, o uso de uma linguagem simbólica que representasse o que está ausente foi o meio adequado para aceder a esse plano mais subtil e por isso inacessível às percepções e até nalguns casos à simples mente racional.

FORMA E FUNÇÕES

Seshat é divindade feminina aparentada com o deus da sabedoria Thot, ora como consorte, ora como filha. Não tem um templo que lhe seja dedicado, mas tem um culto presente em todos os templos. Aparece como uma dama com vários atributos: pele de leopardo, cálamo na mão, na sua frente um tronco de palmeira cuja base tem o hieróglifo shen sobre o qual está a rã Heket, fita em redor da cabeça e como coroa um símbolo que ainda não está totalmente esclarecido: uma haste culminada por sete tramos (pétalas, plumas, raios, estrela?) cujo topo está protegido por um arco também não definido pelos especialistas. Esta coroa de Seshat é o seu próprio hieróglifo que já aparece na estela de Palermo:

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Sechat. Domínio público

A partir do Império Novo passa a integrar a mitologia hermopolitana e assim se torna na primeira assistente do deus da Sabedoria, sendo esposa ou filha, e todas as suas funções são aplicações concretas dessa Sabedoria. Mas em tempos mais remotos a sua origem é do Delta, Saís, com funções importantes juntos dos reis.  

São variadas as tarefas atribuídas a Seshat onde predominam escrever, calcular, registar, medir.

A Primordial: fonte primeira de onde jorra a sabedoria. Junto com Thot, é Aquela que escreveu a primeira vez e considerada Patrona dos escribas. O seu próprio nome assim o indica: sesh, escrita. Por isso é a Senhora da Casa da Vida, per-ankh. Esta Casa da Vida, mais do que escola no nosso sentido, era a casa dos mistérios da vida pois tinha como objectivo a formação integral do ser humano, não apenas obter um conhecimento teórico ou tecnológico mas também moral e espiritual. Aí se encontravam os textos e livros sagrados. Sendo esta casa o centro de formação educativa, Seshat foi patrona dos professores e pedagogos e como consequência Senhora da Casa dos Livros, patrona das bibliotecas. Detentora e, por isso, Deusa da Ciência, especialmente Matemática, Astrologia e Astronomia (a pele de leopardo que a recobre, além de representar a alta função sacerdotal intermediária entre o plano celeste e o plano terreste, apela ao céu repleto de estrelas).

Palete de escriba com restos de tinta e cálamos. Tebas, época baixa.Domínio público – https://www.metmuseum.org/art/collection/search/544302

Como Senhora dos Registos Reais é escriba dos faraós e protectora das crónicas e anais reais.
Na coroação do novo faraó, é ela quem inscreve no cartucho um dos cinco nomes do novo rei. Nesse processo entra em jogo uma nova função: o ritual Ished. Este ritual tinha importância extrema para a vida do rei e, por consequência, para a vida do Egipto. No tronco da árvore sagrada, a Árvore da Vida, palmeira doum para os egípcios, persea para os gregos e que julgamos ser a mimusops laurifólia, marcava o tempo de vida do rei. O grande sacerdote de Heliópolis era o guardião dessa árvore e assim como ela se desenvolvia, também se desenvolvia o reino. A palmeira doum provinha do Sul, da Núbia, era apreciada pelos babuínos e a sua madeira é muito dura e tem muitas aplicações; das suas folhas eram feitas as esteiras dos escribas.

Tumba de Pashedu, Deir-el-Medina, Império Novo. Domínio público

Escreve as acções gloriosas do faraó e regista o espólio das conquistas; regista o que o rei produz como elementos de riqueza e fecundidade, o efeito dos seus actos; faz os censos da população. É contabilista incansável pois nada há de existente que ela não anote. Aqui, a sua acção de anotadora e contadora é imensa, à maneira das entidades “lipitakas” do esoterismo hindu. Assim é dito que “calcula e mede todas as coisas na Terra”.

Faraó, Seshat e Thot junto da árvore sagrada de Heliópolis. Domínio público

No Império Novo regista o número de anos do reino do faraó, isto é, conta o tempo e marca o Jubileu do rei e assim é propiciadora do ritual Sed, Heb-Sed, a festa Sed ou Jubileu Real. Neste festival o faraó deveria demostrar que mantinha intactas as suas capacidades para cumprir a sua função de pontífice de Maat, a Justiça, de modo a manter a ordem divina no seu reino.

Faraó Den, primeira dinastia, a correr em redor dos limites marcados para cumprir o rito do festival Sed. Domínio público

Esta relação directa com a vida do faraó, e portanto do reino, não é apenas virada para o passado pois Seshat aparece também ligada ao Destino. Na obra tardia, séc. V D.C., Hieroglyphica de Horapollo vemos “Destino” ser representado com dois dedos onde estão incluídas sete estrelas. Apesar das profundas transformações nos hieróglifos apresentados pelo enigmático autor, conseguimos perceber resíduos de elementos simbólicos. Assim sendo, podemos fazer uma relação entre Seshat e o Tempo, especialmente Passado e Futuro mas logicamente só existem os dois se o Presente estiver presente. A tradição grega, latina ou até escandinava divide esta função em três figuras: moiras, parcas e nornas, respectivamente em cada tradição. Inclusive têm nomes próprios: Cloto, Láquesis e Átropos na Grécia e a quem Platão também recorre para a descrição cosmogónica no mito de Er. Passado e Futuro são uma mesma e só linha que se estende pela Eternidade. Quem a justamente percorre cumpre o seu Destino. Seshat, ao cumprir com os registos reais no tronco da palmeira, não está apenas a anotar ou registar o passado, não é uma simples arquivista, nesse acto marca também o que irá acontecer. No ritual Sed, que se cumpriria em ciclos de trinta anos mas com excepções, o que está em causa não é um louvor à obra realizada pelo faraó, o principal é perceber se no final dum ciclo de trinta anos de governo, o rei mantém as capacidades de mando.

Heb-Sed do faraó Djoser, terceira dinastia. Domínio público

Como Patrona dos Planos de Construção é Administradora dos Projectos dos Templos, Aquela que Mede as Fundações e assim patrocina os arquitectos e funcionários e tudo que necessitasse medida rigorosa. Esta é a função de Seshat mais antiga de que temos vestígios. Já na Pedra de Palermo aparece “Esticar a corda pelo sacerdote de Seshat para a grande porta do templo” (terceira linha, sétimo registo) e estende-se até à época ptolomaica como vemos em Edfu.

Eu agarro a ponta de madeira e o cabo da barra
Eu estendo a corda com a deusa Seshat
O meu olhar segue o curso das estrelas
O meu olhar repousa em Meskhetiu (Ursa Maior)
Aí está o deus que marca o tempo, na frente do meu Merkhet
Eu estabeleci os quatro ângulos do templo!
Templo de Hórus, Edfu

Esta cerimónia do Pedj Shes (pedj: esticar, shes: corda) era extramente importante e sem a qual nenhuma construção sagrada podia ser realizada. É o rito base da geografia sagrada pois conecta o inferior ao superior. Esta necessidade de comunhão com o cosmos sempre foi necessária para a construção arquitectónica com função espiritual apelativas à Eternidade e está presente em todos os povos de todas as épocas. A primeira coisa a fazer era localizar no céu nocturno a estrela polar e marcar no solo o primeiro eixo Norte-Sul; na alvorada temos um terceiro ponto de onde nascerá o triângulo rectângulo obtendo-se a referência cósmica para o templo a construir. Parece ser que neste rito do Pedj She uma sacerdotisa de Seshat, encarnando a deusa com os seus paramentos, acompanhava o faraó nestas marcações geográficas.

Fundação da Capela Vermelha por Hatshepsut e Seshat. Domínio público

Instrumento fundamental neste rito e que funcionava como astrolábio (labor com astros ou estrelas) era o Merkhet.

Merkhet. Domínio público

As funções de Seshat não se esgotaram aqui pois no Império Novo aparece ajudando o defundo a abrir a porta do além e na época tardia associada à magia na barca do Sol entre Thot e Heka vencendo os ataques de Apóphis e inimigos de Ra. No entanto consideramos que estas referências não são o cerne desta divindade e antes características da pluralidade funcional presente no simbolismo teológico egípcio.

SÍMBOLOS EM SECHAT

Não há dúvida de que a representação gráfica que temos para analisar esta divindade foi estabelecida no Império Novo. No templo de Luxor temos em baixo-relevo a imagem típica pela qual a reconhecemos. De notar que os excelsos artistas egípcios representaram na pedra as vestes de pele de leopardo onde as manchas do animal são estrelas de cinco pontas.

Templo de Amon, Luxor. Domínio público

Até aos dias de hoje alguns símbolos nesta divindade continuam a intrigar os especialistas ou permanecem na nebulosa sombra da dúvida. Não há questões quanto à sua pele de leopardo manifestada desde os tempos primordiais. 

Também os elementos simbólicos nítidos no Império Novo não contêm grandes polémicas: O hieróglifo shen na base do tronco de palmeira representa a eternidade, o tempo infinito e portanto plena espiritualidade; a rã Heket representa os cem mil anos; assim, o tronco da palmeira doum nasce da eternidade e é sempre renovada por Heket. É nele, no tronco da palmeira do tempo (as folhas de palmeira continuam no nosso tempo com este simbolismo), que Seshat inscreve os feitos passados e futuros do faraó; o laço que lhe prende os cabelos associam-na com Isis e é portanto uma potência da Natureza que podemos associar com o Amor e a Sabedoria.

Mas quanto à sua coroa o problema é mais delicado. Desde os primeiros tempos no Império Antigo tal como verificado pelo seu hieróglifo, este emblema já está presente. Os especialistas ainda não estão de acordo com o que representa: uma haste com flor? Uma estrela de sete pontas? Plumas? Raios? A própria protecção superior também é alvo de especulações: dois chifres? um arco para flechas? a lua na sua relação com Thot? Graficamente este símbolo não foi estanque e podemos ver a sua evolução ao longo do tempo nas imagens abaixo todas do Império Antigo (retiradas de Seshat and the Pharaoh, G. A. Wainwright, Journal of Egyptian Archeology, nº 26, Londres 1940).

Não restam dúvidas que o número sete está sempre presente ao longo da vida deste símbolo. A Natureza é vivificada pelo ritmo septenário que tudo rege e organiza. O poder deste número tem as suas raízes em planos invisíveis, metafísicos e as pontas dos seus ramos tocam a manifestação objectiva, tal Árvore da Vida com suas raízes no céu. Mas serão sete raios de quê? Estrela estará fora de questão pois no Egipto era sempre representada com cinco pontas. Plumas relacionadas com Maat ou elemento vegetal? Sendo deusa das medidas e a corda sendo instrumento fulcral para essas medidas, há quem afirme que é a representação de uma folha de cânhamo visto que este vegetal tem excelentes propriedades para esse fim e a sua folha normalmente tem sete folhas cuja representação gráfica se assemelha ao símbolo de Seshat. Ver: http://www.recoveredscience.com/const201seshathempmath.htm 

Este mesmo autor também tem uma teoria audaz para o topo do emblema de Seshat. O que diversos autores dizem ser arco, lua, chifres, ele afirma que o símbolo, bem evidente a partir do Império Novo, é muito semelhante à representação do número dez em hieroglífico:

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E assim defende a posição de que essa representação gráfica seria a potência de 1010. Quem sabe se os sacerdotes artistas tebanos tiveram essa intenção? É possível que o emblema geral de Seshat começasse pelo infinito e fosse rematado com um número astronómico pois a deusa tudo media

Mas é claro que nos tempos primordiais o seu significado seria outro onde o número dois ou dualidade está presente e a sua posição de protecção é bem evidente. 

Que Seshat nos proteja e transmita a Medida!


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