Posto isto, o que há que aclarar é que o Número, pela sua íntima relação com a forma e, portanto, com tudo o que existe, como os próprios matemáticos podem constatar, foi utilizado em todas as épocas como Símbolo e expressão de elementos mais ou menos subtis.
Por outras palavras, é mais uma forma da linguagem simbólica como o são os símbolos religiosos, metafísicos, filosóficos e culturais.
Deste ponto de vista, ninguém, nem sequer os cientistas e matemáticos mais acérrimos, podem negar o seu uso e investigação através dos séculos. Portanto, o seu estudo é muito interessante porque nos dá algumas chaves metafísicas e numéricas que estão presentes em muitos textos antigos, incluindo os textos sagrados.
Um exemplo disto pode ser encontrado no Mito da Criação Heliopolitano do Antigo Egipto onde, como explicamos noutra parte deste blog, a criação se desdobra como uma emanação numérica.
E para começar esta série numérica, começaremos por explicar a primeira sequência, a passagem do zero ao um, do Vazio Absoluto inicial à Primeira Unidade Criadora.
Para a mente humana é impossível “visualizar” o Absoluto porque a natureza da nossa mente é dual. Assim que tento visualizar a UNIDADE ABSTRACTA, ou seja, o Absoluto, não posso evitar projectá-la na minha imaginação senão com um fundo por base. De tal maneira que, no mesmo instante em que procuro focar essa Unidade Absoluta, esta se torna uma dualidade: o Fundo Abstracto do Absoluto mais a Primeira Unidade Manifestada, ou seja, sem dar-me conta já estou na Dualidade, visualizo duas coisas que são os conceitos que se manejam.
Se continuar a fazer o mesmo, tratando por exemplo de focalizar a Dualidade, esta apenas pode ser visualizada sobre o Fundo da Unidade, passando assim automaticamente ao Três ou Tríade.
E assim sucessivamente pois cada vez que repito a mesma experiência, qualquer estado numérico ou geométrico se projecta sobre o fundo da unidade anterior, tornando realidade o antigo aforismo que diz que a Unidade Abstracta é aquilo inapreensível mas que está sempre presente.Noutras palavras, as sequências numéricas, especialmente no campo simbólico, são uma expressão do devir da nossa mente. Vejamos tudo isto com um pouco mais de detalhe.
De um ponto de vista humano, o universo pode ser dividido em duas concepções: o Universo das coisas e seres visíveis e o das Não-Coisas ou Não-Manifestadas. Se tomamos como exemplo no plano material uma representação gráfica da escala de ondas electromagnéticas, observamos que, começando pelas infinitamente grandes até às infinitamente pequenas, há muitos tipos de frequências, algumas acessíveis por meio dos sentidos ou aparelhos para os seres humanos e outras que não são acessíveis de nenhuma maneira, embora as possamos imaginar.
Observamos, desde o imensamente grande ao infinitamente pequeno, todas as variadas formas e propriedades conhecidas das ondas electromagnéticas.
Em todo este conjunto, infinito porque o seu desenvolvimento depende de expressões numéricas infinitas, apenas o espectro de ondas que se corresponde com a luz visível é o que chamamos LUZ, e o resto, até há pouco tempo atrás, era considerado OBSCURIDADE. E reforço que foi só há pouco tempo que o avanço da Ciência permitiu “visualizar” por meio de aparelhos electrónicos aquilo que para os antigos apenas eram enteléquias ou coisas invisíveis, por exemplo as ondas infravermelhas.
Nas antigas doutrinas esotéricas e místicas, e em muitos livros sagrados, faziam-se certos jogos de palavras relacionando a LUZ visível com a OBSCURIDADE, e a OBSCURIDADE como a autêntica e real LUZ. Como isto é possível? Que queriam dizer?
Seguindo o exemplo anterior, para o ser humano de há três séculos, devido às suas limitações psico-sensoriais, as restantes frequências electromagnéticas não visíveis eram não-coisas, não-seres. Aplicando a mesma regra a todos os restantes fenómenos materiais e espirituais, chegaremos à conclusão de que há todo um Universo Real que não podemos conceber e que comparamos com o NADA, ou o VAZIO porque não é perceptível para nós.
Alguns livros sagrados dizem que o mundo foi criado a partir do nada ou do vazio. Tomado em sentido literal é um absurdo pois do nada, nada pode criar-se. Mas se entendermos por “nada” aquilo que é algo mas ainda não definido, como a língua inglesa nos recorda com “nada”, “nothing”, não coisa, não perceptível, não definido ou sem atributos, então sim tem sentido.
Isto é algo parecido ao que aparece no texto da Bíblia quando se refere ao começo da criação, quando se diz que apenas havia “Tohu va-bohu”, o vazio-obscuridade inicial.
Por conseguinte, o Universo do Real, e não só das aparências que podemos perceber com os nossos sentidos, está composto pelas “coisas” com atributos perceptíveis pelos humanos e pelas “não coisas”, sem atributos de um ponto de vista humano.
Como resultado, para a para a filosofia clássica, as “coisas” originam-se a partir das “não-coisas”, ou seja as “essências” convertem-se nas “ex-sistencias”, ou seja, a saída (ex) ao ser (sistere), às coisas com atributos, ao se é isto ou aquilo, verde ou vermelho, definitivamente é.
Portanto, a matéria que conhecemos, segundo a tradição, originou-se a partir da diferenciação da invisível Matéria Primordial. Uma vez mais, as palavras antigas preservam na sua forma traços do seu significado original, porque Matéria e Mãe têm em latim o mesma origem “Mater”.
O Big Bang
A maior parte dos cientistas estão de acordo em que o Universo começou há uns 13.770 milhões de anos, a partir do que se convencionou chamar Big Bang (a Grande Explosão). Embora o termo sugira uma colossal explosão, não se tratou realmente de uma “explosão” mas antes que o Espaço e o Tempo se expandiram rapidamente.
Pensa-se que no começo o Universo era infinitamente denso e inimaginavelmente quente, embora devamos aclarar que só “no começo”, quando as coisas começaram a mover-se, porque justamente antes (!?), se se pode falar de um antes quando não existia o tempo, não havia matéria com atributos e portanto nada que pudesse estar quente nem frio, nem energia, nem dimensões que nos permitissem falar de “estar denso” ou “fluído”. Isto recorda-nos bastante, embora logicamente com as limitações poéticas, a descrição do Rig Veda, talvez o mais antigo texto conhecido da humanidade e texto sagrado dos hindus:
Não existia algo, nem existia nada, O resplandecente céu não existia Nem sequer a imensa abóbada celeste se estendia no alto. Que é o que tudo cobria? O que protegia? O que o ocultava? Era o abismo insondável das águas? Não existia a morte, mas também nada existia que fosse imortal. Não existiam os limites entre o dia e a noite. Apenas o Uno respirava inanimado e por Si Pois nenhum outro para além Dele jamais tinha existido. Reinavam as trevas, e tudo ao princípio estava velado. Na obscuridade profunda, num oceano sem luz, O gérmen até então oculto na sua envoltura Faz brotar uma natureza de ígnea cor.
Rig Veda: Hino da Criação
Não se pode saber nada acerca do que causou o Big Bang porque o conceito de causa-efeito da Física moderna está relacionado com o tempo, e antes disso… não havia “antes”. A Ciência nada diz acerca de como se comportava o tempo e o espaço antes dos primeiros instantes, porque não existiam. Os versos do Rig Veda bem poderiam ser hoje as respostas de um cientista ante um interrogatório policial sobre o Big Bang.
Pensa-se que, nesses primeiros momentos, todas as formas de matéria e energia, assim como tempo e espaço, começaram a formar-se. Conforme o Universo se foi expandindo e se foi esfriando, até chegar a uma fase de transição similar à que ocorre quando a água começa a congelar, foi-se libertando assim uma grande quantidade de energia.
Então, num instante, apareceu o fenómeno que os cientistas chamam “inflação”, que não se trata do que hoje sofremos mas sim de uma expansão exponencial do Universo: cresceu com um factor calculado em 1050 em 10 -33 segundos! (ou seja, um “0,” seguido de 32 zeros e um 1 no fim).Antigos textos sagrados como por exemplo as chamadas “Estâncias de Dzyan” de origem tibetana e budista, descrevem também, de forma poética, essa espécie de inflação ou expansão súbita:
Posteriormente, o processo abrandou embora continue em expansão até aos nossos dias.
A Ciência fala-nos da origem do nosso Universo a partir de “um ponto sem dimensões”, isto é, desde um “ponto abstracto” porque sem dimensões, sem tempo nem espaço, não é possível a existência da matéria. Ou melhor, a existência da matéria é um facto relacionado em como “se concentra o espaço e o tempo”.
Podemos observar como exemplo desse ponto abstracto o que sucede numa televisão: há um ponto que se move ao longo do ecrã criando um mundo de ilusão que nos parece estar composto de imagens reais.
Da mesma maneira, o nosso Universo mais é não que a expansão de uma ilusão provocada pelo movimento do ponto original, que está em todas as partes e nenhuma, criando assim o tempo, o espaço e a matéria:
“O Uno é o ponto indivisível não encontrado em parte alguma e percebido em todas as partes durante aqueles períodos…”
(The Secret Doctrine, vol. I, H.P. Blavatsky)
Bem, é criado o Espaço e começa o Tempo. Isto é o que dizem as antigas tradições e que afirmam também, do mesmo modo, as teorias modernas amplamente aceites do Big Bang. Mas a pergunta então que nos devemos colocar é: “Onde aparece o Big Bang? No seio de quê?” A ciência não tem resposta. Mas a tradição diz o seguinte: o Espaço diferenciado, ou seja, o espaço que habitamos e conhecemos, aparece no seio do Espaço Abstracto. Leiamos um pouco mais a tradição que a Grande Mestre Blavatsky recolheu de fontes antiquíssimas:
“Eis aqui, ó Lanu1, o Radiante Filho dos Dois, a Glória refulgente sem par, o Espaço Luminoso2, Filho do Negro Espaço3, que surge das Profundidades das grandes Águas Obscuras”.
Estas ideias foram representadas em símbolos, e como símbolo fundamental para o “Começo” escolheu-se o Círculo, mas este na realidade representa uma Esfera: para apreender o significado de um símbolo devemos observá-lo com a nossa mente analítica a partir de vários ângulos.
O círculo, considerado como uma linha contínua, não tem princípio nem fim, por conseguinte representa a duração infinita. Este círculo pode ser considerado como a projecção de uma esfera sobre um plano. E essa é exactamente a moderna definição de Universo, uma esfera mas com uma particularidade, trata-se na realidade de um Esferóide: uma esfera sem superfície externa (sem limites conhecidos) e, por conseguinte, sem centro, ou também uma esfera em que cada ponto da esfera é o centro. Podemos conceber ou imaginar isso?
Esta é uma curiosa ideia visto que me faz pensar que eu e qualquer outro é o Centro do Universo, ou pelo menos do nosso universo, e isso nos deveria convidar a ideia de tolerância visto que cada um, segundo a Ciência, vive um Universo particular ao mesmo que faz parte do Universo geral.
Notas
1 Discípulo
2 Espaço manifestado
3 Espaço abstracto
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