Este instante de indefinição, mas no qual já aparece uma intenção é o que se simboliza como o momento prévio ao primeiro ponto que aparecerá no círculo definido. Mas não nos adiantemos, vamos passo a passo.
Primeiro está a escuridão, ainda que só assim seja para os nossos olhos limitados. Na realidade seria a Luz Absoluta, mas vamos representá-lo como o Ignoto, o Desconhecido, o Absoluto, a Escuridão Primogénita:
E nessa escuridão, desde essa primeira intenção apenas insinuada, surge um círculo mas sem definição, em que o representaremos como um círculo branco com linhas descontínuas sobre esse fundo escuro:
O círculo, como já dissemos, simboliza o tempo infinito e é o contentor universal. É um círculo indefinido porque é o nada para os nossos sentidos. É o “0” inicial. Não tem limites nem centro, não tem partes definidas. Como isso é difícil de conceber para a minha mente humana, necessito apoiar-me em símbolos que me permitam “imaginar” ou seja fazer-me uma imagem dele. Essa é precisamente uma das funções dos símbolos, a de servir de ponte entre a nossa intuição e a nossa necessidade prática de nos referirmos a algo concreto. Mais um passo, e esquecemo-nos do fundo escuro, porque agora é a única realidade para nós que começa a perfilar-se:
E no momento em que a intenção se concretiza, o plano do círculo fecha-se, delimitando assim o teatro de operações, e por essa mesma razão, aparece o centro: o germe, aquele de onde tudo surgirá: a semente do Uno:
O ponto ativo central é o gerador de todo o Universo das coisas: noutras palavras, havia um Germe não manifesto dentro do Círculo Não Manifestado, mas um instante depois aparece como um Centro Manifestado de um Círculo Manifestado, a partir daí o seu dinamismo cria o universo das Coisas. A partir de agora temos o “Uno” com o significado da “Unidade deste Universo”, e o Germe ou Ponto Indivisível e Ativo que o cria.
As Estâncias de Dzyan continuam a descrição destes instantes em que se pôs em movimento o novo universo manifestado:
A Escuridão irradia a Luz, e a Luz emite um Raio solitário nas Águas até ao Abismo da Mãe. O Raio trespassa o Ovo Virgem; O Raio faz estremecer o Ovo Eterno, e desprende o Germe no Eterno, que se condensa no Ovo do Mundo.
Estes parágrafos foram resgatados no séc. XIX, ainda que a sua origem seja muito mais remota. Através dessa linguagem aparentemente obscura encontramos uma descrição desses primeiros momentos. Efetivamente, desde a primeira escuridão vemos surgir a luz. Esta luz refere-se à Inteligência do Logos, o Pensamento Divino, quem atua sobre a Mãe, ou raiz da Matéria, dando o lugar à formação de todo o Universo.
Para aqueles não tão familiarizados com a filosofia e com a linguagem mística, basta entender a velha trindade de Theos, Chaos e Kosmos, na sua forma grega. Theos, ainda que traduzido às vezes como Deus, refere-se ao movimento, como Platão nos mostra no seu diálogo Crátilo, de onde deriva esta palavra do verbo theein (θέειν), “mover”, ou seja, o dinamismo do Pensamento Divino. Chaos (χάος), refere-se ao “vazio, abismo, precipício” quer dizer é aquele que é um receptáculo informe, que ainda não recebeu a impressão da forma. Theos atuando sobre o Chaos, dá lugar ao Cosmos (κόσμος) a Ordem, o Arranjo bem ordenado, ou seja, o Mundo.
Da mesma maneira, um Artista (Pensamento Divino) tem na sua mente uma Ideia, que plasma sobre o barro (Chaos), para dar lugar à Obra (Cosmos).
Esse primeiro Raio, de Inteligência Divina atuando sobre o Ovo ou Primeiro Círculo Fértil, faz desprender o Primeiro Germe, ou seja, que nasce dali, como a criança que se separa dos seus pais, e que não é eterno. A raiz é eterna, mas a sua manifestação, o Cosmos, é periódico e não eterno.
Esse primeiro Germe ativo, esse ponto central no círculo, põe-se em movimento. O seu primeiro movimento é de expansão, de dualidade. Surge assim o número dois, que se expressa agora num movimento “linear”, é o primeiro diâmetro que aparece no ovo da criação:
Com este primeiro movimento, traduz-se numa divisão do Círculo em duas partes. Como diz o texto bíblico:
“Bereshit bara Elohim et hashamayim ve’et ha’aretz”
“No Princípio1 (começo e origem) os Elohim2 (plural aumentativo) criaram (diferenciaram, separaram) os céus e a terra3 (o manifestado, mundo, país)”.
A ideia de que Deus criou o universo de nada (cretatio ex nihilo) tornou-se fundamental para o judaísmo, o cristianismo e o islão, mas não se enquadra diretamente no Génesis, nem em toda a Bíblia hebreia, e não é a opção preferida. Os autores sacerdotais do Génesis, que escreveram por volta de 500-400 a.C., não se preocuparam pelas origens da matéria (o material que Deus formou no cosmos habitável), mas sim pela fixação dos destinos.
Génesis 1:1 – Wikipédia
No Antigo Egipto, o começo do Mundo exemplifica-se através de um ovo posto por Geb, de onde surgem todos os seres. Um hino demonstra-nos desta forma:
Eis aqui, regozijo-me no meu estandarte, no meu assento. Sou o Criador do Escuridão, fazendo o meu lugar nos limites do Céu, O Governante do Infinito. Sou Filho da Terra, Surgido do Ovo do Mundo. Regozijo-me no Senhor do Palácio. O meu Ninho não se vê; Rompi o Ovo. Eu sou o Senhor de Milhões de Anos. Fiz o meu Ninho nos limites do céu, E desceu à terra como o ganso que expulsa todos os pecados. Papiro de Leiden
(continua)
Notas
1. Nota do autor) H.P. Blavatsky indica que mais do que o Princípio como começo, ela refere-se à Fonte ou Origem.
2.O Elohim: é um plural, e indica que os primeiros hebreus acreditavam em vários deuses. Na verdade, este termo é usado nas suas formas derivadas (El-) com um sufixo adicionado aos 7 deuses dos principais planetas, que na tradição judaico-cristã recebem nomes que terminam em El: Rafa-el, Mica-el, etc.
3. O termo traduzido por terra tem um significado mais amplo, refere-se ao “mundo”, ou seja, ao todo do que é criado e visível, em oposição ao incriado e invisível, os céus. *** A separação por um diâmetro horizontal divide assim o celeste do terrestre, o mundo material do mundo das causas.