Sobre os Números IV

E se é de tal natureza que, por vezes, não está presente e por vezes ausente, mas está sempre com essa coisa, se essa coisa é substância, o atributo também será substância, e não menos substância do que aquela. Mas se não nos for concedido que seja substância, em todo o caso será não-concebida sem o seu acto, não por essa razão o acto deixará de ser simultâneo com aquela, embora colocado pela nossa mente como se fosse posterior. Mas se a coisa não pode ser concebida sem aquele atributo - por exemplo, o homem não pode ser concebido sem a sua unidade - então o atributo não é posterior à coisa, mas simultâneo, ou é anterior, para que por ele possa existir. Pois bem, dizemos que a Unidade e o Número são anteriores aos Seres.
Plotinos

Enéada 6 10-12

O Ser era, então, um Número estável na sua multiplicidade quando despertou múltiplo, e era uma espécie de preparação para os Seres, uma prefiguração e uma espécie de hénadas mantendo espaço para os Seres que haveriam de se instalar nelas. Porque mesmo agora se diz: «Quero tal quantidade de ouro ou de casas». O ouro é uno, mas o que se pretende não é converter o número em ouro, mas o ouro em número, e possuindo já o número, trata-se de impô-lo ao ouro, para que o ouro se torne ser, acidentalmente, de tal quantidade. Mas se os Seres se tivessem originado antes do Número, e o Número fosse algo sobreposto mentalmente à medida que a mente que numera realizasse tantos movimentos como os Seres numerados, seriam tantos quantos são casualmente, e não por intenção. Se, então, não é casual que existam tantos, a causa disto é que o Número exista antes que sejam tantos. E isto quer dizer que, como o Número já existia, por isso é que os Seres originados participaram do «muitos», e cada um participou na Unidade para ser uno. Agora, cada um é ser graças ao Ser – já que o mesmo Ser está a ser graças a si mesmo – mas é uno graças à Unidade. E cada um é um só se a unidade presente neles é multiplicidade justamente, como é una a Tríade; e todo o conjunto dos Seres é uno não como uma unidade monádica, mas como é uma dezena de milhar ou algum outro Número. Porque quem diz «já há dez mil coisas», se aquele que numera diz «dez   mil», vem a dizer que se predica dez mil graças às coisas em si, porque mostram o seu número como mostram as suas cores, mas porque a mente diz que são tantas. Porque se a mente não o dissesse, não saberia quantos são. E como vai dizê-lo? Sabendo contar. E saberá contar se conhecer o Número. E conhecerá o Número se o Número existir; mas desconhecer a quantidade daquela natureza é absurdo, ou melhor, impossível.

Portanto, do mesmo modo se alguém diz “coisas boas”, ou se refere a coisas boas por si mesmas, ou se refere ao bem como acidente, e se se refere ao Bem primário, está a falar da  primeira Hipóstase, mas se se refere a coisas em que o bem é um acidente, deve haver uma Natureza do Bem para que o bem possa ser um acidente noutros, a causa que produziu o bem noutro deve ser o próprio Bem em si ou uma realidade que produziu o bem na sua própria natureza; pois também, quem enuncia dos Seres um número, por exemplo «dezena», ou se refira à Dezena auto-subsistente, ou, se ele se refere a coisas em que a dezena é um acidente, será forçado a enunciar a Dezena auto-subsistente, que não seja outra coisa que Dezena. Se, então, ele enuncia dos Seres a dezena, a força é que os próprios Seres sejam a dezena ou que, anteriormente aos Seres, exista outra Dezena que não é nem mais nem menos que Dezena.

Há que admitir, portanto, que, em geral, todos os atributos que são enunciados de uma coisa ou chegam a essa coisa de outro ou são um acto dessa coisa. E se é de tal natureza que, por vezes, não está presente e por vezes ausente, mas está sempre com essa coisa, se essa coisa é substância, o atributo também será substância, e não menos substância do que aquela. Mas se não nos for concedido que seja substância, em todo o caso será não-concebida sem o seu acto, não por essa razão o acto deixará de ser simultâneo com aquela, embora colocado pela nossa mente como se fosse posterior. Mas se a coisa não pode ser concebida sem aquele atributo – por exemplo, o homem não pode ser concebido sem a sua unidade – então o atributo não é posterior à coisa, mas simultâneo, ou é anterior, para que por ele possa existir. Pois bem, dizemos que a Unidade e o Número são anteriores aos Seres.

Mas se alguém disser que a Dezena não é outra coisa que dez unidades, a resposta é que, se ele admite que a Unidade existe, porquê deveria admitir que só existe uma só Unidade, mas não já dez? Assim como o um que tem existência real, porquê os outros também não deveriam tê-la? Não há razão para que essa única Unidade seja emparelhada com qualquer um dos Seres. Se assim for, cada um dos Seres restantes deixaria de ser uno. Mas se cada um dos seres restantes tem que ser uno, é porque a Unidade é comum, isto é, uma única natureza baseada em muitos, que nós dissemos que tinha que existir em si mesmo, mesmo antes de ser percebida em muitos.

Agora, se a Unidade existe em tal coisa e depois reaparece noutra, se esta segunda Unidade também existe, deixará de ser uma única Unidade que tenha existência real; haverá uma multiplicidade de Unidades. Mas se se supõe que só existe a primeira Unidade, uma de duas: ou associada ao Ser Supremo ou associada ao Uno supremo e absoluto. Se ao Ser supremo, as outras Unidades só o serão só de nome e não estarão coordenadas à primeira. Além disso, o número constará de monadas dissemelhantes; as monadas diferirão e diferirão enquanto monadas. Mas se é suposto estar associada ao Uno supremo, que necessidade tem o Uno supremo, para ser uno, desta monada? Se, então, ambas as suposições são impossíveis, deve haver uma Unidade que não seja mais do que a Unidade por si só, isolada em virtude da sua própria Essência antes que cada Ser seja enunciado e pensado como uno.

Se também deve haver a Unidade isolada da coisa que se diz ser una, por que não haveria também outra Unidade? E se cada uma existir separadamente, haverá uma multiplicidade de Monadas, que também serão uma multiplicidade de Unidades. Mas suponhamos que a natureza as vai como que, engendrando sucessivamente, melhor dito, que as tenha engendrado já, sem deter-se em cada uma das que engendrava, produzindo uma espécie de série continua de Unidades: se as circunscreve e se detém logo na sua marcha, gerará os números menores; mas se se mover por mais tempo, fará com que os Números maiores subsistam não noutros sujeitos, mas nos próprios movimentos. E é assim que a natureza acasala cada multiplicidade e cada um dos Seres aos seus respectivos Números, sabendo que, se cada Ser não encaixasse no seu número respectivo, ou não existiria de todo ou seria outra coisa, algo desajustado, não numerado e sem razão.


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Plotino. Domínio público

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Imagem de Udo Reitter por Pixabay

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