Sobre os Números V

Bem, então, pensar que a noção da unidade vem da substância, já que a substância e o objeto sensível é um homem ou qualquer outro animal ou mesmo uma pedra, como pode ser razoável, se uma coisa é o que parece - o homem - e outra e não a mesma unidade?
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Enéada 6-6, 13-15

Caso contrário, a mente não predicaria a unidade do não-homem. Além disso, do mesmo modo, no caso de “para a direita” e semelhantes, a mente não diz “aqui” em virtude de um movimento vão, mas porque vê uma posição diferente, também neste caso ela diz “uno” porque ele vê algo real. Não é uma impressão vazia; não prega a unidade de algo inexistente. Certamente não é porque ele está sozinho e não há outro, porque ao dizer “e não há outro”, ele já alude a outro. Além disso, o outro e o diferente é posterior. Porque se a mente não estiver apoiada na unidade, não dirá “outro” ou “diferente”, e quando diz “sozinho”, refere-se a um único. Portanto, diz “uno” em vez de “sozinho”. Além disso, o predicante, antes de predicar a unidade do outro, já é um, e o objeto do predicador, antes que alguém predique ou pense nisso, já é uno. Porque ou é uno ou é mais que uno e múltiplo, e se é múltiplo, é necessariamente uno antes. De fato, quando o predicador diz “múltiplos”, ele quer dizer “mais de um”; e ele concebe um exército como uma multidão de homens armados e coordenados em unidade, e sendo uma multidão, não permite que seja uma multidão.

Isso deixa claro, mesmo neste caso, que a mente, vendo de forma perspicaz a unidade resultante da ordem, congrega na unidade a natureza do múltiplo. E é que mesmo neste caso a unidade não é falsa, pois não é no caso duma casa, a unidade resultante de muitas pedras. Numa casa, porém, a unidade é maior. Se, pois, numa coisa contínua a unidade é maior, e ainda maior em uma coisa indivisa, é claro que isso se deve à existência e realidade de uma natureza de Unidade.

De fato, entre os não-seres não pode haver graus, mas da mesma forma que, ao predicar a substância de cada uma das coisas sensíveis e predicando-a também dos inteligíveis, aplicamos esta categoria aos inteligíveis em um sentido mais próprio, colocando assim os graus de mais e menos e de mais ou menos próprios no âmbito dos seres, e da mesma forma que o ser existe em maior grau na substância, mesmo no sensível, do que em outros géneros, assim também, vendo que a unidade existe em maior ou menor grau e mais ou menos propriamente diferindo em graus, tanto nos próprios sensíveis quanto nos inteligíveis, devemos reconhecer que a unidade existe em todos esses modos, mas com referência, no entanto, apenas a um termo. Mas, assim como a substância e o ser são algo inteligível e não sensível, mesmo quando o sensível participa deles, assim também a unidade inerente do sensível pode, sim, ser concebida como unidade por participação, mas a mente a percebe, não obstante, como inteligível e de maneira inteligível. De modo que por unidade entende outra que não vê. Logo conhecia-a de antemão. Mas se conhecia de antemão que a Unidade é “um isto”, é porque é a mesma coisa que o Ser. E assim, quando a mente diz “algo”, diz “um”; quando ela diz “um par”, diz “dois”; quando ela diz “algumas”, diz “muitas”.

Se, então, não é possível pensar algo sem um, ou sem dois, ou sem algum número, como pode deixar de existir aquilo sem o qual não é possível pensar ou dizer algo? Porque dizer que o que não existe, se não existe, não se pode nem pensar nem dizer nada, não é possível, mas o que é necessário em cada caso, para a formação de todo pensamento ou linguagem, deve existir antes da linguagem e da pensamento, porque assim é, que pode ser utilizado para a formação dos mesmos. Mas se for necessário, além disso, para a existência de cada substância – já que não há ser algum que não seja uno – existirá antes da substância e será um gerador da substância. E é por isso que é “Um-ser”, e não primeiro Ser e depois Um: porque no “Ser-e-Uno” haveria multiplicidade, enquanto no Uno, o Ser não está incluído, salvo que o Uno produziu o Ser em virtude de uma propensão a gerá-lo. E o termo “isto” não é um termo vazio: denota uma realidade designada pelo seu próprio nome, uma coisa presente: substância ou algum outro ser. Portanto, “isto” não significa algo vazio, nem é uma impressão da mente sobre algo inexistente, mas sim uma realidade subjacente. É como se alguém pronunciasse o nome próprio da própria coisa,

À objeção da comparação com termos relativos, pode-se razoavelmente responder que o uno não é tal que, por sofrer de outro sem sofrê-lo, perde sua própria natureza, mas que, se for para ser expulso de sua unidade, deve ter sofrido privação da unidade por ter sido dividida em duas ou mais. Se, então, uma mesma massa torna-se duas dividindo-se sem perecer como massa, é claro que, além da substância e adicionado a ela, estava nela a unidade, que aquela perdeu por a ter destruído na divisão. O que, então, numa mesma coisa umas vezes está presente e noutras não, como não havemos de o classificar entre os seres, onde quer que o seja? Sim, concedamos que lhes seja acessório, mas ainda que acessório, existe por si tanto nos sensíveis como nos posteriores dentre os inteligíveis, posto que aparece primeiro como Uno e logo como Ser.

E se alguém dissesse ainda que o uno, sem nada padecer e pelo feito de ser lhe somar outro, já não seria um, mas dois, não falaria de forma correcta. Porque não é o uno que se fez dois – nem o uno ao qual o outro foi adicionado nem o uno que foi adicionado -, mas que cada um dos dois permanece uno como era, apenas que o dois é predicado de ambos juntos, enquanto o um é predicado de cada um dos dois enquanto eles permanecem separados. O dois e a díade, portanto, não consistem por natureza numa relação. Se o dois resultasse da união e a união se identificasse essencialmente com a produção do dois, o dois e a díade consistiriam indubitavelmente na tal relação. Mas, na verdade, o dois reaparece no fenómeno oposto, pois, quando se divide a coisa una, torna-se duas. O dois não é, portanto, nem união nem partição, para poder ser relação. E o mesmo raciocínio é válido para qualquer número. Porque quando é a relação que produz uma coisa, é impossível que a relação oposta produza a mesma coisa de maneira que essa coisa se identifique com a relação.

Qual é, então, a causa principal do número? Uma coisa é una pela presença do um e dois por causa da díade, assim como é branca por causa da presença do que é branco, bela por causa do que é belo e justa por causa do que é justo. Se não, nem mesmo estes predicados devem ser considerados reais, mas a causa, mesmo nestes, deverá ser atribuída a relações; assim, uma coisa será justa graças a uma determinada relação com coisas determinadas; bela, porque estamos em uma disposição determinada, sem que haja nada no próprio sujeito capaz de produzir tal disposição e sem que nada adventício se ligue ao que parece belo. Portanto, quando vires algo que qualificas como “um”, sem sombra de dúvida será também grande e belo, e poderás atribuir-lhe um número infindável de predicados. Da mesma forma, então, que grande e grandeza estavam nele, e doce e amargo e outras qualidades, por que não também unidade? Não é necessário pensar que existe toda a qualidade, qualquer qualidade, mas que a quantidade não se conta no número dos seres, nem que o contínuo é quantidade, mas o descontínuo não, ainda que o contínuo se valha do descontínuo como medida. Da mesma forma, então, que uma coisa é grande pela presença da grandeza, assim também ela é una pela presença da unidade e duas pela presença da díada; e assim por diante com os outros números. O problema de como é participação é o mesmo que o tão discutido problema da participação em qualquer uma das Formas. Agora, deve-se reconhecer que nas coisas descontínuas a dezena inerente às mesmas aparece de uma maneira, nas coisas contínuas de outra, e num conjunto de dez potências combinadas de outra; a gradação culmina nos inteligíveis, mas mesmo aí os verdadeiros números não são mais vistos nos outros, mas subsistem em si mesmos: a Dezena em si, e não o dez dos inteligíveis.

Dito isto e voltando ao ponto de partida, digamos que o Ser total, esse Ser verdadeiro, é ao mesmo tempo um Ser Perfeito, Inteligência e Vivente perfeito, são todos os seres vivos juntos. A sua unidade, este ser vivo que é o nosso universo, imita-o o melhor que pode com a sua unidade; porque a natureza do sensível, se é para ser sensível, escapa à unidade que está mais para lá. O Ser Vivo perfeito deve ser, portanto, Número Total. Porque se não fosse completo, seria deficiente em algum número; e se o número total de seres vivos não estivesse contido nele, não seria “Vida Perfeita”. O Número existe, então, antes de todos os  seres vivos e até mesmo do Ser Vivo perfeito. Assim, o homem e os outros seres vivos existem no inteligível enquanto são e enquanto o inteligível é Ser Vivo perfeito. E até o homem de cá faz parte do universo na medida em que o universo é um ser vivo, e cada indivíduo, na medida em que é ser vivo, existe ali, no Ser Vivo. Mas na Inteligência, enquanto Inteligência, as inteligências particulares existem como partes. Ora bem, mesmo estas têm o seu número; portanto, nem mesmo na Inteligência o Número existe primordialmente; ao nível da Inteligência, o Número é a soma das atividades da Inteligência e no que diz respeito à Inteligência: Justiça, Temperança e as outras virtudes, incluindo a Ciência e tudo o que a Inteligência possui e, porque a possui, é realmente Inteligência.

– Porque, então, a Ciência não existe num sujeito diferente dela?

Bem, porque lá o que sabe, o que pode saber e a Ciência são a mesma coisa e existem juntos. E o mesmo se diz dos outros inteligíveis. E é por isso que cada inteligível aí existe primariamente: aí a Justiça não é um acidente; é um acidente para a alma enquanto alma, porque essas coisas estão nela antes em potência; está em ação quando ela toma a Inteligência e une-se a ela.

Depois da Inteligência vem o Ser, e é aí que está o Número, a partir do qual o Ser gera os Seres que se movem segundo o Número, dando prioridade aos Números sobre a existência dos Seres, da mesma forma que o Uno do Ser se conecta o próprio Ser com o Primeiro, enquanto que os Números não se ligam aos demais Seres com o Primeiro. Basta, de fato, que o Ser esteja em conexão com ele. Mas o Ser, tornando-se Número. conecta os Seres consigo mesmo, já que como uno não se divide; a sua unidade permanente; mas, dividindo-se segundo a sua própria natureza em tantos seres quantos quiser, vê em quantos se divide, e assim engendra-os segundo o número, que portanto estava nele, visto que o ser é dividido pelas potências do número. e gera uma quantidade de Seres igual à do Número.

Assim, “o Princípio e Fonte” da existência dos Seres é o Número primário e verdadeiro. E por isso mesmo aqui no mundo, a génese de todos e de cada um dos seres faz-se com a ajuda dos números; e se um agente toma outro número, ou engendra outro ser, ou nada se origina. Estes são os números primários enquanto numerados; os números que estão noutras coisas já possuem os dois aspectos: derivados dos primários, são números numerados; mas porque medem as demais coisas são, para além disso, numerantes, tanto dos números quanto das coisas numeradas. Porque em virtude de que podem dizer, por exemplo, “dez” senão em virtude dos números neles presentes?


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Plotino. Domínio público

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Foto de Ray Hennessy na Unsplash

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