Poderia alguém dizer: “Estes Números a que chamamos primários e verdadeiros, onde os colocarias? Em que género de Seres? Todos pensam que pertencem à quantidade, e vós mesmo anteriormente fez menção à quantidade estimando que devíeis colocar o descontínuo de igual modo que o contínuo entre os seres. Incluis, por outro lado, que estes Números são anteriores aos Seres e dizeis que há outros, distintos daqueles, aos quais chamais numerantes. Dizei-nos, pois, como reconciliais estas coisas, pois é grande a dificuldade que encerram: o uno que há nos sensíveis é quantidade? Ou só o uno repetido muitas vezes é quantidade, enquanto o uno só é o princípio de quantidade e não a quantidade? E se o princípio de quantidade é do mesmo género que a quantidade ou é outra coisa? É justo que nos elucideis sobre estes problemas.
– Pois bem, sobre isto comecemos por dizer que quando – há que começar a falar dos sensíveis – quando, pois, tomas uma coisa juntamente com outra dizes “dois”, por exemplo, um cão e um homem ou dois homens, ou somas mais e dizes “dez” ou “uma dezena de homens”, este número não é uma substância, sem sequer das do mundo sensível, senão puramente quantidade. E se divides a dezena nas suas unidades e consideras estas unidades como partes da dezena, com isso produzes e estabeleces um princípio de quantidade. Porque a unidade que é uma das unidades da dezena não é o Uno em si. Mas quando dizes que o Homem em si mesmo é um Número, por exemplo, uma Díade, animal e racional, aqui já não existe um só aspeto, mas sim dois: enquanto averiguas e contas, dás origem a uma quantidade; mas enquanto os objetos são duas coisas e cada um dos dois é uno, se cada uno de estes dois unos é constitutivo da substância e a unidade está presente em cada um dos dois, estás a falar de um Número distinto, do substancial. Esta Díade não é posterior à coisa e não se limita a declarar a quantidade exterior da coisa, mas sim a que está dentro da substância e é constitutiva da natureza da coisa. Porque, neste caso, não originas um número mediante uma sequência, revendo coisas que existam por si mesmas e não são constituídas por serem contadas. O ato de somar um homem a outro, em que pode tal contribuir para a sua substância? Nem sequer há uma unidade, como há num coro, sem que essa dezena de homens tenha a sua existência em ti, que fazes a conta, mas estes dez homens que contas, como não estão coordenados na unidade, nem sequer se pode falar de uma dezena. A dezena fá-la tu no ato de contar; é dezena, é uma quantidade, mas no coro ou no exército há algo exterior a ti. E em ti, como está? O número que há dentro de ti antes de contar é de distinta natureza, enquanto o resultante da exteriorização daquele, comparado com o que há em ti, é um ato ou de aqueles números inteiros ou de acordo com aqueles: ao ir contando, vais engendrando um número, e no ato de contar, vais dando origem à existência da uma quantidade, do mesmo modo que, ao ir caminhando, vais dando origem à existência de um movimento.
– Porquê, pois, que o interior de nós é de distinta natureza?
– Pois porque forma parte da nossa substância, que “participa” – disse Platão do número “e da harmonia”, e é por sua vez número e harmonia. Porque – como diz um autor – não é nem corpo nem magnitude. Logo a alma é número, pelo que é substância. Contudo, o número que forma parte do corpo é substância ao modo de um corpo, enquanto os que formam parte da alma são substâncias a modo de almas. E, em geral, nos inteligíveis, se é verdade que o Vivente em si a partir daí é multiplicidade, por exemplo uma Tríade, esta Tríade, que não é todavia a do Vivente em si, mas sim meramente está no Ser, é princípio de substância. De outra forma, se contas “animal” e “belo” cada uma destas duas coisas estão no uno, mas tu geras um número em ti, e atualizas uma quantidade, uma díade. Mas se contas a Virtude como quatro – e a Virtude é, efetivamente, uma tétrade, uma espécie de unidade quadripartida – como unidade-tétrade, à maneira de substrato, então és tu que te ajustas com aquela tétrade que há em ti.
– E o que dizer do chamado “número ilimitado”? Porque os raciocínios anteriores impõem limite ao número.
– No de que nele o conceito da Linha em si não está incluída a noção adicional de limite.
– Então, o que está para lá da Linha? Onde está?
– Certamente, é posterior ao Número, porque na Linha pode-se ver o uno; a Linha, efetivamente, parte se um só ponto e estende-se numa só dimensão.
Contudo, a dimensão carece de medida quantitativa. E esta Linha onde está? Só no pensamento, que é – digamos – delimitador?
– Não, é ao mesmo tempo um objeto real, só que intelectivo. Todas as coisas em si, são intelectivas.
– E esse objeto real, como é?
– O mesmo se deve perguntar acerca da superfície do sólido e de todas as figuras: onde existem e como? Porque não somos nós os que inventamos as figuras. Prova disto, é que a figura do universo é anterior a nós, como o são também todas as outras figuras naturais que existem nos seres naturais, os quais forçosamente existem, anteriormente aos corpos, desprovidos de figuras e a título de Figuras primárias. Não são configurações existentes nos sujeitos distintos delas, mas sim que, pertencendo-lhes a si mesmas, não necessitam estender-se. As coisas estendidas pertencem a sujeitos distintos delas.
Sempre há, pois, no Ser uma Figura una, mas diversifica-se ou no Vivente ou anteriormente ao Vivente. Digo “diversifica-se” não porque se torne maior, mas sim porque a cada Ser reparte-se a sua respetiva figura, como se reparte também o Vivente. E assim, os Corpos para lá, se lhes atribui uma Figura, por exemplo, se quiseres, ao Fogo de lá, a Pirâmide de lá. E por isso o fogo de cá trata de imitá-lo, ainda que não o possa por culpa da matéria. E assim os demais corpos, analogamente, assim como costumamos falar dos corpos de cá.
– De qualquer modo, as Figuras estão no Vivente enquanto Vivente ou na Inteligência antes que no Vivente?
– As Figuras estão, certamente, no Vivente. Se, pois, a Inteligência estivera compreendida no Vivente, as Figuras existiriam primariamente no Vivente; mas se a Inteligência é anterior ao Vivente em hierarquia, existem primeiramente na Inteligência. Porém, se é verdade que o Vivente perfeito está também nas Almas, é porque a Inteligência é anterior.
– Mas Platão disse que “a Inteligência vê todas as coisas no Vivente perfeito”. Se as vê, pois, é posterior.
– É que, possivelmente, o que ele “vê” quer dizer que a existência do Vivente origina-se com a própria visão: a Inteligência não é distinta do inteligível, mas que para lá disso, todas as coisas são uma só, e assim a inteleção abarca a esfera exata, enquanto que o Vivente abarca a esfera do Vivente.
Mas para lá, o Número está limitado. Somos nós os que ideamos um número maior que o dado; e numerando deste modo, surge o ilimitado. Mas lá não podemos idear um número maior que o já ideado, pois já existe e nada há sido admitido nem será nada omitido como para poder se lhe juntar àquele.
Mas convém dizer que ainda lá, o Número é ilimitado em razão do que não está medido. Por quem? O que existe é já tudo, pois se é uno, junto e inteiro e não estando circunscrito por limite algum, senão sendo o que é por si mesmo. E é que, em geral, nenhum Ser está sujeito a limite. O limitado e o medido é o que se vê impedido de correr à ilimitação, o necessitado de medida. Mas os Seres de lá são todos Medidas; daí que todos sejam belos. Porque, enquanto Vivente, é belo; a sua é uma vida exímia; não lhe falta um ponto de vida; a sua não é uma vida misturada com morte; lá nada é mortal, nada morre; nem tampouco é espectral a vida do Vivente em si, mas sim, é a Vida primária, a mais nítida, com um viver diáfano – tal como é a Luz primária – do qual as Almas vivem lá e do qual surgem as que vivem cá. E ele sabe por que razão vive e onde vive. Porque aquilo de que vive é também para o que vive. Contudo, a Sabedoria de todas as coisas e a Inteligência universal, difundida sobre si, a si associada e a si unida, coroando-o de maior bondade e imbuindo-o de sabedoria, realça a majestade da sua beleza. É que mesmo assim a majestade e a beleza verdadeiras estão na vida sábia, ainda que a vejamos distorcidamente. Lá, por outro lado, deixa-se ver toda a pureza, porque proporciona ao espectador visão e força para viver mais vitalmente e, vivendo mais intensamente, ver e transformar-se no que vê. Porque cá o olhar dirige-se maioritariamente aos seres inanimados, e quando se dirige aos viventes, interpõe-se o que há de não vivo neles, e assim a sua vida interior está contaminada. Lá, pelo contrário, todos os Seres são viventes, inteiramente vivos e incontaminados. E sim há algo que tomas por não vivo, ainda que de isso mesmo salte um lampejo de vida. E assim contemplas a Substância que há neles, permeando-os e proporcionando-lhes uma vida imutável contra toda a mudança, se contemplas a Sapiência, a Sabedoria e a Ciência que há neles, rir-te-ás de toda a natureza daqui, sob a sua pretensão de substancialidade. Porque graças a essa Substância a Vida é perene e perene é a Inteligência, e os Seres estão assentes na Eternidade. Nada retira o Ser de si mesmo, nada o muda, nada o substitui. Porque nenhum outro ser há posterior a ele que o toque, e se o houvesse, estaria subordinado a si. E se houvesse algo contrário a si seria impassível à influência do próprio oposto. Se existisse um contrário, não havia sido produzido este nosso Ser, mas outro anterior a si e comum a ambos, e esse seria o Ser. Por isso disse Parménides com razão que o Ser é uno. E é imperturbável à influência de outro, não graças à sua solidão, mas porque é Ser. Porque só ao Ser vem o ser de si mesmo. Então como poderia alguém retirar-lhe o Ser ou qualquer outra de quantas coisas são atos do Ser e quantas derivam dele?
Porque enquanto exista, provém; mas existe para sempre; logo também aqueles. E é tal a sua grandeza em poder e beleza que fascina, e assim, todas as coisas suspensas dele, contentam-se com ter dele um vestígio e com ajuda deste, buscam o Bem. E todo este cosmos deseja viver e pensar para poder ser, e toda a sua alma e toda a inteligência deseja ser o que é. O Ser, por outro lado, basta-se a si mesmo.
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Plotino. Domínio público
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