“Não fales sem luz sobre os pitagóricos.” – Jâmblico1
“Jovens, venerai em silêncio o que direi…” – Diógenes Laércio2
Existe uma antiga lenda, muito conhecida pelos interessados na História da Matemática, que conta ter Hípaso de Metaponto morrido afogado no mar por descobrir os números irracionais. A lenda, da qual existem várias versões, antigas e modernas, conta mais ou menos o seguinte:
Os membros da Escola Pitagórica faziam culto aos números, os quais acreditavam estar por detrás de todas as coisas do universo. Todas as coisas podiam ser entendidas, portanto, compreendendo os números inteiros e as relações (razões) entre eles. Certo dia, estando Hípaso a contemplar as estrelas, talvez a bordo de um barco, deu-se conta de um facto curioso: não era possível encontrar a raiz de 2 através de uma razão entre dois números inteiros. Estava assim descoberto o primeiro número irracional.
Os pitagóricos (supostamente) consideraram esta descoberta tão contrária à sua visão do mundo que, estando no barco com Hípaso, o deitaram borda fora, afogando-o3. Há até quem chegue ao ponto de colocar o próprio Pitágoras, “para sua grande vergonha”, a condenar à morte o pobre Hípaso pela sua herética descoberta4.
Não é por acaso que chamamos a esta história de lenda, pois isto permite-nos colocar alguma ressalva nestes relatos, baseados em distorções que se afastam das mais antigas descrições que temos disponíveis. A lenda foi publicada em diversas obras e, especialmente, num artigo de 1945 que serviu de base a todo um conjunto de elucubrações posteriores, chamado precisamente “A descoberta da Incomensurabilidade por Hípaso de Metaponto”5. Diversos autores, apesar de tudo, tentaram conter o afirmado naquele artigo, fazendo notar que isso não está dito em nenhum texto clássico, advindo aquela conclusão da confusão entre vários relatos separados entre si.6
Vamos recorrer às fontes clássicas para tentar reconstruir a história, esperando fundamentar as seguintes conclusões:
Quanto à antiguidade da descoberta pelos gregos dos números irracionais, podemos referir-nos a Platão como a mais antiga referência credível ao tema, no seu livro Teeteto7, onde nos conta que Teodoro de Cirene (c. 470 – 399 a.C.) mostrou a prova da irracionalidade de
É Euclides (c. 325 – 270 a.C.) quem apresenta a demonstração geral da incomensurabilidade, incluindo a irracionalidade da √2, no livro X dos seus Elementos. No final do livro, Euclides cita As Leis de Platão, onde este filósofo afirma que a irracionalidade dos números é um conhecimento que diferencia os homens dos brutos. Mas diz também que “este teorema era de grande interesse entre os antigos Filósofos.” Que filósofos seriam esses?
Na sua forma abreviada, a prova da irracionalidade é assim apresentada por Euclides:
Consideremos que a diagonal AC e o lado AB de um quadrado ABCD são comensuráveis.
Digamos, então, que a razão entre eles, AC : AB, na sua forma mais reduzida, é m : n.
De
Pelo teorema de Pitágoras, como AC2 = 2AB2, isto leva a que m2 = 2n2.
Portanto m2 é par (é o resultado de um número inteiro multiplicado por 2).
Como um número ímpar ao quadrado daria sempre um número ímpar, então, m também tem que ser par.
Uma vez que m e n não têm nenhum fator comum, e como m é par, resulta que n é ímpar (se ambos fossem pares, teriam pelo menos o 2 como fator comum).
Mas, como m é par, pode ser escrito como
Então, pelo mesmo raciocínio anterior, n tem que ser par, o que é impossível.
Portanto, a diagonal AC e o lado AB não são comensuráveis.
Resumindo, temos nas hipóteses de partida:
Para 1. ser verdadeira, m e n seriam ambos pares e sem fatores comuns, ou seja, 2. seria absurdo.
Chama-se a este um tipo de demonstração por contradição ou “redução ao absurdo”, e vemos que Euclides coloca no centro da demonstração a divisão dos números em pares e ímpares, típica do pensamento pitagórico. Esta é, aliás, a única demonstração euclidiana que recorre à dicotomia par – ímpar.
Como fica, então, Hípaso relacionado com a irracionalidade? Aristóteles não associa Hípaso às doutrinas pitagóricas, e muito menos à irracionalidade, dizendo apenas o seguinte:
“Anaxímenes e Diógenes antepõem o ar à água como princípio máximo dos corpos simples, enquanto o fogo o é para Hípaso de Metaponto e Heráclito de Éfeso.” – Aristóteles.9
Um relato deixado por Diógenes Laércio (180 – 240) informa-nos também que Demócrito (460 – 370 a.C.) teria escrito um livro sobre as linhas e sólidos irracionais, pelo que apoia assim a irracionalidade dos números já ter sido demonstrada na sua época, antes de Euclides10. Mas nada fala, ao mencionar Hípaso, em relação à descoberta dos irracionais.
Clemente de Alexandria (c. 150 – 215) conta uma história, sob o nome de Hiparco o Pitagórico, semelhante àquela que mais tarde veremos associada a Hípaso:
“Diz-se que Hiparco o Pitagórico foi expulso da escola, por ter publicado as teorias Pitagóricas. E uma tumba foi erigida para ele como se já estivesse morto.” 11
Será Hiparco posteriormente confundido com Hípaso? Ou foi um lapso de Clemente, estando a citar de uma carta de Lísis a Hiparco?
Não estamos seguros, mas Jâmblico (c. 245 – 325), cerca de 800 anos depois da época de Pitágoras, escreve que o divulgador foi Hípaso, e a doutrina divulgada estaria relacionada com o dodecaedro:
“Sobre Hípaso diz-se que ele era um dos Pitagóricos, mas que, devido a que tinha publicado e escrito pela primeira vez a constituição da esfera dos doze pentágonos, ele pereceu no mar pelo sacrilégio cometido; e teve a fama de ser o descobridor, embora tudo fosse “daquele Homem” (assim, com efeito, chamavam eles a Pitágoras e não com o seu nome).”12
É de salientar que, neste ponto, Jâmblico apenas menciona a esfera de doze pentágonos, ou seja, o dodecaedro, mas não refere a irracionalidade. Também é importante realçar que Jâmblico atribui a origem de todos aqueles conhecimentos a Pitágoras, e não a Hípaso.
Em outro local, o mesmo autor retoma a mesma história, com alguns acrescentos, possivelmente baseados em Clemente, ou numa fonte comum:
“Dizem que o primeiro a revelar a natureza da mensurabilidade e imensurabilidade entre os (considerados) indignos de participar em tais teorias foi desadorado de tal forma que não só foi expulso da comunidade e da vida em comum, mas até lhe construíram uma sepultura, como se tivesse realmente morrido para a vida, como alguém que partiu do mundo dos humanos. Outros dizem que a divindade estava desagradada com aqueles que divulgaram as (doutrinas) de Pitágoras; que, por causa do sacrilégio cometido, pereceu no mar aquele que revelou como se inscrevia numa esfera a constituição do dodecaedro. Mas alguns dizem que isto sucedeu ao que explicou acerca da irracionalidade e da imensurabilidade.”13
Os comentários (que chegaram a nós escritos em árabe) feitos por Papo de Alexandria (290 – 350) aos Elementos contêm mais um relato, sem mencionar Hípaso, de que aquele que divulgou os irracionais morreu num naufrágio:
“É sabido que o primeiro a tornar pública a teoria dos irracionais pereceria num naufrágio, e isso porque o inexpressável e inimaginável deveria sempre ter permanecido oculto. Em consequência, o culpável, que fortuitamente tocou e revelou este aspecto das coisas viventes, foi trasladado ao seu lugar de origem, onde é flagelado à perpetuidade pelas ondas.”14
Em nenhum dos relatos é afirmado, como faz crer a inflamada imaginação de tantos autores contemporâneos, que tenham sido os pitagóricos, e muito menos Pitágoras, a atentar contra a vida de Hípaso. Pelo contrário, na menção direta a Hípaso (ou Hiparco), apenas aparece que ele foi expulso da comunidade, bem como a construção de uma sepultura, que é obviamente simbólica. Quanto ao afogamento no mar, também não é referido em lugar algum que tenha sido um homicídio, mas sim que “pereceu no mar” ou num “naufrágio”, ou seja, morreu afogado, e não é demasiado especular que isso, tendo acontecido por acidente, pudesse ser interpretado por alguns pitagóricos como uma punição divina pela indevida divulgação de um ensinamento secreto.
Papo – certamente com base em autores anteriores15 – interpreta o seu próprio relato da seguinte forma:
“O mais provável é que isto seja uma parábola pela qual eles trataram de expressar a sua convicção de que é melhor, por um lado, ocultar (ou velar) todo o número não quadrático, ou irracional, ou inconcebível no universo; por outro lado, que a alma que, por erro ou por descuido descobre ou revela algo daquela natureza que esteja neste mundo, vagueia depois no mundo da não-identidade, imerso na corrente daquilo que vem a ser e é efémero, onde não há padrão de medida.” – Papo16
Papo parece ter compreendido que a linguagem simbólica e por parábolas era o mais comum nos pitagóricos, veiculando com isso ensinamentos profundos e mistéricos. Neste caso, parecem afirmar com a parábola do naufrágio que aquilo que é irracional (alogon) é melhor ficar secreto ou não-dito (alogon), sob pena de ficar com a sua alma mergulhada no mar do renascimento (o mundo material), levada pelas suas caóticas correntes.
A revelação merecedora do funeral simbólico era tanto mais grave por consistir, certamente, uma quebra do juramento de silêncio que todos os pitagóricos efetuavam ao passar de Acusmáticos para Matemáticos. Esta divisão é explicada por Porfírio (233 – 305), na sua Vida de Pitágoras:
“Com efeito, era dupla a forma de ensinamento. Alguns dos que ingressavam eram chamados matemáticos, e outros acusmáticos. Matemáticos eram os que se compenetravam mais a fundo e eram instruídos com rigor acerca do fundamento da ciência. Os acusmáticos, por outro lado, atendiam só às instruções compendiadas dos livros, sem uma descrição rigorosa.” – Porfírio17
A existência de um círculo interno é também afirmada por Diógenes:
“Durante cinco anos guardavam silêncio, só escutavam os discursos, e nunca viam Pitágoras até que aprovassem o exame; aí tornavam-se membros da sua casa e podiam vê-lo.” – Diógenes Laércio18
Havia, portanto, dois círculos entre os pitagóricos. Um introdutório, para os noviços provacionistas (ou seja, os que estavam em prova), e um mais interno, acessível depois de passarem as provas.
É também importante assinalar que é explícita a referência de Jâmblico a Hípaso como pitagórico, ou seja, pertencia aos seus membros internos e, portanto, teria feito o juramento de segredo. A função de Hípaso, então, seria a de ensinar os acusmáticos, ou seja, tinha conhecimento interno, mas ensinava no círculo externo:
“Entre os pitagóricos havia duas formas de filosofia, levada por duas classes, os Acusmáticos e os Matemáticos. Os últimos eram universalmente reconhecidos como Pitagóricos por todos, apesar de os Matemáticos não admitirem o mesmo dos Acusmáticos, afirmando que estes obtinham as suas instruções não de Pitágoras, mas de Hípaso.” – Jâmblico19
Seria, portanto, absolutamente natural que Hípaso fosse expulso, caso tivessem os pitagóricos constatado que não mais podiam confiar nele. Essa é a razão, também, pela qual não há referências explícitas à proveniência dos conhecimentos em causa, uma vez que o objetivo dos pitagóricos era, precisamente, mantê-los secretos:
“O que dizia aos seus discípulos não há ninguém que o saiba com certeza, e guardavam entre si um estranho silêncio.” – Porfírio20
Também não é certo que Hípaso, pelos textos de que dispomos, tenha feito alguma das duas descobertas, tanto a do dodecaedro como a da irracionalidade. É reiterada a afirmação que a sua falha foi a de divulgar, mas não é explicitamente afirmado que ele descobriu uma coisa ou outra.
Talvez ajude considerar que os pitagóricos podiam julgar totalmente secundário o conhecimento de quem é o autor ou descobridor das teorias. O conhecimento não tem mais ou menos valor em função de quem o possui ou descobriu, mas sim em função da utilização que lhe podemos dar. Dariam, por isso mesmo, mais valor ao conhecimento que ao seu detentor. Não será um reflexo da nossa mentalidade, fruto de uma certa vaidade pessoal, considerar que há vantagem em ser o autor de um importante conhecimento? Não será, até, vaidade nossa como investigadores preocuparmo-nos tanto em dar um nome ao descobridor de uma teoria, ficando para nós o “título” de “descobridor do descobridor”?
Nada há de mais contrário ao espírito que podemos antever numa Escola de cariz iniciático como era a de Pitágoras, tal como está nitidamente descrito por Isócrates (436–338 a.C.) ao falar da Escola de Pitágoras:
“Os seus discípulos são mais admirados quando calam, do que aqueles que têm grande fama pela sua eloquência.” – Isócrates21
Não podemos, portanto, afirmar com certeza que algo era desconhecido dos Pitagóricos pelo simples facto de não o encontrarmos escrito em lado algum. Podemos, isso sim, tomar como certo que sabiam coisas das quais nada sabemos, porquanto o vínculo que mantinham com a Escola a que pertenciam dependia da manutenção do segredo.
Referências e notas:
[…] aqui a primeira parte de Uma História Irracional dos Números […]
Muito bom. Gostei da profundidade com que o assunto foi tratado, principalmente das fontes.