Uma História Irracional dos Números Irracionais – parte II

1 Foto de capa. Pentagrama de Vénus. Creative Commons
Leia aqui a primeira parte de Uma História Irracional dos Números Irracionais

Pitágoras na Babilónia e no Egipto

“Cada antigo culto religioso, ou melhor, filosófico, era constituído por um ensinamento esotérico ou secreto, e um culto exotérico (externo e público). Para além disso, é bem conhecido o facto de os MISTÉRIOS dos antigos abrangerem em todas as nações tanto os MISTÉRIOS “Maiores” (secretos), quanto os “Menores” (públicos); por exemplo, nas famosas solenidades chamadas Eleusínias, na Grécia. Desde os Hierofantes da Samotrácia, Egipto, e os Brâmanes iniciados da Índia Antiga, até aos Rabinos Hebraicos tardios, todos eles, por temor à profanação, mantiveram as suas verdadeiras crenças, bona fide, secretas.”

– H.P. Blavatsky 1

Devido ao segredo da Escola Pitagórica, não podemos afirmar com segurança o que Pitágoras não sabia. Podemos, sim, tentar desvendar quais os conhecimentos que era provável possuir, e a sua proveniência. Os dados biográficos de Pitágoras dão as pistas necessárias para clarificar este mistério.

Isócrates deixou-nos que:

“Pitágoras, depois de visitar o Egipto e fazer-se discípulo dos egípcios, introduziu pela primeira vez entre os gregos esta outra filosofia.”

– Isócrates 2

Mais tarde, no mesmo sentido, acrescenta Estrabão (c. 64 a.C. – 24 d.C.):

“Pitágoras, ao ver crescer a tirania, abandonou Samos e foi para o Egipto e para a Babilónia, motivado por desejos de aprender.”

– Estrabão 3

Retomando Clemente, encontramos que:

“Alexandre, no seu livro Sobre os Símbolos Pitagóricos, relata que Pitágoras foi um discípulo de Nazarathus o Assírio.”

– Clemente 4

Diógenes Laércio confirma:

“Esteve, pois, no Egipto, onde precisamente Polícrates o recomendou a Amasis por meio de uma carta. E aprendeu a fundo a língua dos Egípcios, segundo disse Antifonte no seu Acerca dos proeminentes na virtude, e visitou os Caldeus e os Magos.”

– Diógenes Laércio 5

E novamente Jâmblico:

“Passou vinte e dois anos no Egipto, nos santuários, junto aos astrónomos e geómetras, e iniciando-se em todos os mistérios divinos, até que, tendo sido feito prisioneiro por Cambises, foi trasladado à Babilónia. Ali passou o tempo com os magos, com prazer para ele e para eles. Foi instruído pelos magos de tudo o que veneravam, de modo que chegou a aprender à perfeição o culto dos deuses, assim como também o supremo dos números, da música e das demais ciências.”

– Jâmblico 6

O ponto que nos importa recuperar é a presença de Pitágoras entre os Magos da Babilónia para aprender os seus mistérios, nomeadamente aqueles pertencentes à ciência dos números e da geometria.

Começando pelo dualismo – típico do Zoroastrianismo – informa-nos Aristóteles que formava uma parte importante da cosmovisão pitagórica 7. A tabela dos opostos é disso o melhor exemplo. Partindo dos opostos originais, o Limite e o Ilimitado, a tabela desenvolve-se para gerar um conjunto de 10 opostos:

TABELA DOS OPOSTOS

LIMITEILIMITADO
ÍmparPar
UnoMúltiplo
DireitoEsquerdo
MasculinoFeminino
EstáticoMovente
RectoCurvo
LuzEscuridão
BomMau
QuadradoOblongo

Passando ao famosíssimo teorema que leva o nome de Pitágoras, torna-se já demasiado duvidoso, a esta altura das investigações, considerar este Filósofo como aquele que o descobriu pela primeira vez. É verdade que muitas descobertas surgem de forma independente de várias pessoas, mas tendo Pitágoras viajado à Babilónia, e tendo aqueles povos conhecimento do teorema havia já vários séculos, o mais plausível é que o tivesse obtido junto dos Magos, bem como muitos outros conhecimentos.

Existem várias placas, algumas delas datadas de pelo menos 1700 a.C. – como a Plimpton 322 da Universidade de Columbia – que evidenciam conhecimento da Regra Diagonal, ou Teorema de Pitágoras, pelos babilónios. 8

Tábua de argila Plimpton 322, a tábua trigonométrica mais antiga conhecida. Domínio Público

A tábua 3049 da coleção Schøyen é talvez mais explícita, pois não contém apenas triplos pitagóricos, como a Plimpton 322, mas sim a resolução tridimensional da regra pitagórica.

Placa 3049 da Coleção Schøyen

Podemos, desta forma, ficar mais seguros de que Pitágoras trouxe consigo conhecimentos da Babilónia que acabaram por ficar associados a ele. Vemos assim que chamar Teorema de Pitágoras à fórmula da regra diagonal não é sinónimo de que Pitágoras seja o seu descobridor.

Quanto aos números irracionais, não podemos ainda encontrar uma prova definitiva de que os babilónios já tinham esse conhecimento. Temos, no entanto, aproximações muito rigorosas da raiz de 2, e também a evidência de que sabiam esse cálculo representar apenas uma aproximação. Com efeito, datada da mesma altura que a tábua Plimpton 322, encontramos também a tábua catalogada como YBC 7289 pela Universidade de Yale, que mostra um quadrado cruzado pelas suas duas diagonais, acompanhadas de uma série de números cuneiformes na notação hexadecimal, própria dos babilónios 9. Essas anotações correspondem a uma aproximação correta da √2 até à sexta casa decimal:

Tábua YBC 7289 da Universidade de Yale. Creative Commons

Esta tábua contém um cálculo para a raiz de 2 baseado numa série de aproximações sucessivas, a qual, se a continuássemos indefinidamente, nunca obteria um resultado final (o que seria impossível, por definição, num número irracional). Contudo, neste caso, não temos a certeza que os Babilónios o tivessem comprovado.

Por outro lado, foi já avançado por alguns investigadores – ainda que um pouco rebuscadamente – que os babilónios já continham nos seus registos a prova da existência da irracionalidade. 10

Além da prova apresentada por esses autores, podemos também recorrer a outras evidências indiretas. Foi já demonstrado, através um cruzamento entre os conhecimentos de que dispomos da Babilónia e da Grécia clássica, de que muitas das ferramentas teóricas utilizadas por Euclides para a demonstração das suas definições e proposições dos Elementos, estavam já contidas na tradição babilónica. 11 Ou seja, Euclides utiliza inúmeras formulações e regras matemáticas, presentes nos textos cuneiformes, dos quais não há registo na tradição pitagórica. Dado o número de definições envolvidas, isto não pode ser o resultado de mera coincidência, mas foi certamente uma herança de Euclides, através dos pitagóricos ou de outras fontes, dos conhecimentos babilónicos.
O que acontece é que os gregos adaptaram aqueles conhecimentos, traduzindo em termos geométricos os conhecimentos algébricos da babilónia. Por exemplo, além do teorema de Pitágoras, todas as equações normalizadas encontradas em textos cuneiformes, as soluções de sistemas de equações de primeiro e segundo grau, com mais de uma variável, deixaram o seu rasto nas demonstrações geométricas gregas. 12

O pentagrama, chave do mistério?

Retrocedamos um passo, e consideremos o seguinte: em nenhum momento os relatos sobre a divulgação da irracionalidade, antes de Euclides, se vê associada à diagonal do quadrado. A única relação que temos, se é que existe, é com o dodecaedro, que é um dos cinco sólidos referidos no Timeu de Platão, texto que é, por sinal, o de índole mais pitagórica daquele filósofo. A indevida divulgação da inscrição do dodecaedro numa esfera, por Hípaso, é aliás uma das acusações que lhe é atribuída para ter sido expulso da escola pitagórica. Como sabemos, o dodecaedro é contruído por doze pentágonos. Por sinal, o pentagrama – que circunscreve um pentágono – era um dos símbolos mais importantes para os pitagóricos.

Ora, através do pentagrama também é possível demonstrar geometricamente a irracionalidade e, como veremos, os conhecimentos para o fazer já estavam disponíveis para os primeiros pitagóricos, apesar de não termos a prova de que já o tivessem demonstrado (pelo menos, nenhuma além dos relatos que acusam Hípaso de divulgar um conhecimento interno da sua Escola).
Antes de apresentarmos essa demonstração, deixemos apenas a nota de que, também no Egipto e na Babilónia – onde Pitágoras terá recolhido ensinamentos – o pentagrama era utilizado com finalidades simbólicas desde muitos séculos antes, desenhado nos tectos dos templos Egípcios e representando na Mesopotâmia as quatro dimensões do espaço mais a região celeste. 13

Representações do pentagrama na Mesopotâmia. 14
a. inscrições em Uruk IV, c. 3000 a.C. 
b. vaso pintado de Jemdet Nasr, c. 2700 a.C. 
c. conta de colar de Jemdet Nasdr, c. 2700 a.C.
d. O pentagrama nas inscrições cuneiformes mais antigas.
1. De Fara, c. 2600 a.C.
2. De Sargão, 2300 a.C.
3. Sinal nas inscrições Assírias tardias.
Pentagramas na cobertura astronómica do túmulo de Senenmut em Tebas, Egipto. Domínio Público

Podemos então deduzir que Pitágoras, tendo sido iniciado nos mistérios caldeus e entrado nos santuários interiores egípcios, combinou ambas as doutrinas na sua filosofia, adaptando-a numa nova forma:

“Toda a teoria das linhas [de Pitágoras] parece depender dos egípcios. Por outro lado, dizem que a investigação do cálculo e dos números é um feito dos fenícios. Porque a especulação dos fenómenos celestes foi atribuída por alguns, por igual a egípcios e a caldeus.”
– Jâmblico 15

Com base naquele que viria a tornar-se um dos símbolos por excelência dos pitagóricos, a estrela de cinco pontas, é também possível obter uma prova simples da incomensurabilidade. Vejamos como.

Pentagrama

Talvez não seja coincidência que os relatos tanto mencionem a divulgação do dodecaedro como da irracionalidade, parecendo indicar que há uma relação entre as duas hipóteses. Ao completar esta estrela de cinco pontas, os pitagóricos puderam constatar que no seu interior fica desenhado o pentágono regular, figura com doze das quais se constrói o dodecaedro, o mesmo sólido que foi relacionado com a revelação de Hípaso. Ao unirmos todos os vértices desse pentágono, gera-se outro pentagrama no seu interior, com o seu respetivo pentágono mais pequeno, cujo raciocínio geométrico poderia continuar indefinidamente.

Apresentaremos agora, então, uma prova 16 da irracionalidade baseada nesta figura, utilizando conhecimentos matemáticos que estavam disponíveis no tempo de Pitágoras, como é o caso das propriedades do triângulo isósceles e da soma dos ângulos de um triângulo (atribuído a Tales, anterior a Pitágoras), bem como o método da subtração mútua, pela qual se obtém ao maior divisor comum (atribuído por Eudemo a Pitágoras). 17

Não seria difícil verificar o surgimento de triângulos isósceles através da cadeia de estrelas, sendo que

AB = AQ = QM = BR

e

BM = MR = CR.

Ou seja, pelas propriedades dos triângulos isósceles, os lados do pentágono interior podem ser sempre obtidos pelas dimensões do pentagrama maior, e vice-versa.

Suponhamos que existe um segmento mais pequeno m que divide tanto AB como BN.

Então, m divide BM = BN – AB bem como, pelas igualdades acima, m também divide BR e CR. Então, m divide BC = BR – CR.

Este mesmo raciocínio pode ser continuado agora para o pentagrama mais pequeno, mostrando que m também divide CD. E continuando de pentagrama em pentagrama, chegamos à conclusão que m também tem que dividir os lados dos triângulos cada vez mais pequenos que vão surgindo no interior da figura. Portanto, eventualmente, m irá ter que dividir uma medida menor que ela própria, o que é uma contradição.

Não existe, portanto, nenhuma medida que possa ser comum a AB e a BN.

Sabemos hoje que isto é assim, e chamamos à proporção BN/AB de número de ouro, razão dourada, ou φ.
Não é, de facto, difícil deduzir o número irracional φ dos triângulos isósceles similares contidos no pentagrama. Fazendo de a o comprimento AB e b o comprimento BN, uma vez que os triângulos ABO e AON são similares,

Mas a=AB e b=BN=AO, portanto

Se

então a equação acima fica

Resolvendo para x, obtemos

Seria este, então, o número irracional secreto dos pitagóricos?

Não sabemos de forma segura. Apenas sabemos que tinham segredos, e que esses segredos estavam inspirados numa sabedoria profunda partilhada com outras culturas, nos mistérios das quais foi iniciado Pitágoras.

A proporção dourada é encontrada no Partenon 18, nas grandes pirâmides do Egipto 19, na Tábua de Shamash da Babilónia 20, e um pouco por toda a natureza, como reflexo do pensamento divino que imprime harmonia e beleza a tudo o que existe.

Poderiam os Pitagóricos desconhecer tudo isto?

As proporções douradas na tábua de Shamash. Creative Commons

Referências e notas:

  1. H.P. Blavatsky, A Chave para a Teosofia, Edições Nova Acrópole, 2019, p. 34.
  2. Isócrates, op. cit. 28. Citado de Los Filósofos Presocráticos, vol. I, Gredos.
  3. Estrabão, Geografia, XIV 16, 637-63. Citado de Los Filósofos Presocráticos, vol. I, Gredos.
  4. Clemente de Alexandria, Stromata, I 15.
  5. Diógenes Laércio, Vidas. VIII 3.
  6. Jâmblico, Vida Pitagórica, 19.
  7. Aristóteles, Metafísica, I 5, 986a
  8. Daniel F. Mansfield, N.J. Wildberger, Plimpton 322 is Babylonian exact sexagesimal trigonometry, Historia Mathematica, Volume 44, Issue 4, 2017, p. 395-419.
  9. D. H. Fowler and E. R. Robson, Square root approximations in Old Babylonianmathematics: YBC 7289 in context, Historia Mathematica 25 (1998), 366–378.
  10. Altschuler, B. M., & Altschuler, E. L. Proof of the Irrationality of the Square Root of 2 Contained in Babylonian Geometry Problem Tablets. Parabola Volume 53, Issue 3, 2017.
  11. Waerden, B. L. Van Der, Science Awakening, 1975.
  12. Waerden, op. cit., p. 125
  13. Vogel, C.J., Pythagoras and the Early Pythagorism, 1966, p. 292.
  14. Vogel, op. cit., p. 292.
  15. Jâmblico, Vida Pitagórica, 158.
  16. Demonstração retirada de James R. Choike, The Pentagram and the Discovery of an Irrational Number, The Two-Year College Mathematics Journal, Vol. 11, No. 5 (Nov., 1980), pp. 312-316 (5 pages)
  17. Ver de von Fritz K., op. cit., p. 257
  18. Gary Meisner, The Golden Ratios of the Parthenon. 2020
  19. Gary Meisner, Phi, Pi and the Great Pyramid of Egypt at Giza, 2012
  20. Olsen, Scott, The Golden Section: Nature’s Greatest Secret. Glastonbury: Wooden Books. 2006, p. 3
  21. Ver a página https://www.goldennumber.net/

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